Direito Civil

quinta-feira, 02 de junho de 2011

Filiação – continuação

Filhos havidos no casamento

Vimos ontem as hipóteses de presunção de paternidade. Serão considerados por presunção filhos havidos no casamento. Recordem sempre que, quando falamos em presunção no casamento, a terminologia é “marido e esposa”, e não “homem e mulher”. Assim se caracteriza corretamente a situação de casamento.

É óbvio também que, se o pai marido assistir ao parto da esposa, a jurisprudência diz que há presunção de paternidade. A segunda hipótese de presunção é a feitura do registro de nascimento da criança pelo marido. Significa que, naquele momento, eles não têm dúvidas de que o marido é pai da criança.

Na realidade, quando dizemos “acompanhar o parto ou registrar a criança”, isso não acontece de imediato. Parto é o momento em que está havendo o nascimento, e o registro é feito logo após. Mas isso não significa que o marido esteja de mãos atadas quanto àquela criança do ponto de vista do reconhecimento de filiação. Se ele assistiu ao parto, levou a registro, ou nasceu dentro dos 180 dias, ou houve fecundação artificial, nessas situações o marido ainda tem à uma ação chamada negatória de paternidade. É uma ação imprescritível. Ele pode promover essa ação a qualquer tempo. Na ação negatória de paternidade o marido contesta o filho havido de sua esposa. Não acreditando o marido que o filho é seu, ele pode propor essa ação negatória de paternidade contra sua esposa.

Temos também uma ação investigatória de paternidade, a ação de reconhecimento de paternidade e a ação negatória de paternidade. O reconhecimento da paternidade é exclusiva do pai, que reconhece o filho. A negatória é exclusiva do marido, contra a esposa. E a investigação é promovida pelo filho, investigando uma paternidade.

Vejam, portanto, que temos um pai e um filho e, se ação vem de cima para baixo, isto é, o autor é o pai, temos uma ação de reconhecimento de paternidade. Se a ação é do filho contra o pai, de baixo para cima, temos uma ação de investigação de paternidade. E, se promovida pelo marido contra a esposa, temos uma ação negatória de paternidade.

Dentro deste contexto, quando falamos em “filhos havidos no casamento”, tratamos dessa ação negatória de paternidade. Essas são espécies de um gênero que é de investigação. Tudo é investigação; investigamos se há relação de filiação ou relação de paternidade.

Quando temos a ação negatória de paternidade, com relação ao marido, impugna-se a própria condição de filho. A esposa teve um filho, atribuiu esse filho ao marido e este, então, desconfia e quer impugnar essa condição de filho. Não quer que essa criança seja reconhecida como sua filha. Ao impugnar, o marido ajuíza essa ação negatória. Além da negatória propriamente dita, temos a impugnação de paternidade, com legitimidade de qualquer homem para negar a paternidade que lhe é atribuída. Também, claro, tem caráter investigatório.

Há três hipóteses em que se pode promover a impugnação ou a ação negatória. Atenção. Vamos ver estas situações e explicar em seguida.

Na falsidade, a esposa teve a criança, saiu da maternidade, foi ao cartório e registrou a criança como filha dela e do marido. E era mentira, pois a criança na verdade foi gerada pelo vizinhão. Falsidade ideológica. O mesmo ocorre no caso de mulher não casada que tem filho e registra um homem qualquer como pai da criança. Esse homem tem à mão a ação de impugnação de paternidade.

Segunda hipótese é a simulação de parto. O marido não quer ou não pode ter filho. Um dia a mulher avisa ao marido ou homem com quem teve um caso que está grávida. Coloca almofadas que progressivamente aumentam de tamanho, convida o sujeito a deitar em sua barriga para “ouvir o nenê” e até imagina estar ouvindo o “coração”. Na época do parto, ela some durante algumas semanas, dizendo que vai para a fazenda da prima da vizinha, e aparece com uma criança. Nesse caso temos uma ação negatória de paternidade. Normalmente isso só acontece com marido ou união estável.

A primeira hipótese, que teoricamente é mais complicada, é a falta de identidade entre a criança e a pessoa que traz a condição de filho. Isso tudo é para descrever a hipótese da substituição do bebê na maternidade. Ou uma situação equivalente a esta. A mulher vai à maternidade, tem uma criança, que nasce morta, e, de alguma forma, corrompendo ou ameaçando alguém, ou com conluio com enfermeiras, faz a troca da criança. Tira o bracelete e passa de um bebê para outro. Faz o teste do pezinho, tudo direitinho, como se fosse filho dela. É a troca de identidade entre o filho que faleceu e a criança granjeada na troca. É uma situação que ocorre com bastante frequência. Quantas vezes não ouvimos falar em situações como esta, inclusive aqui dentro do CEUB.

O sujeito descobre que a criança não é sua filha então ajuíza a ação negatória de paternidade ou de impugnação de paternidade. São essas as situações que nos levam a essa situação de negação ou impugnação de paternidade.

Com esse tipo de ação, encerramos este capitulo da filiação, dos filhos havidos no casamento.
 

Filhos havidos fora do casamento

A Constituição de 1988 assegura a igualdade entre os filhos. Apenas para visualizar, quando falamos em igualdade absoluta entre os filhos, imaginamos a seguinte situação: temos um casamento, e o marido tem uma relação adulterina com outra mulher. No casamento ele tem um filho, e na relação adulterina teve outro. Quando falamos em igualdade absoluta, falamos num sentido horizontal, isto é, entre irmãos. A igualdade é do irmão em relação ao ascendente comum, quer seja irmão germano, uterino ou consanguíneo. Eles têm direitos idênticos com relação ao pai. É óbvio que, na hipótese de sucessão, na sucessão da mulher com quem o sujeito é casado só o filho havido no casamento terá direito de se habilitar, e analogamente, somente o filho adulterino terá direito de se habilitar como sucessor se sua mãe, concubina, falecer.

Chamamos de igualdade horizontal porque esse conceito se modifica quando tratamos da relação vertical, de pai para filho ou de filho para pai. A diferença sutil é que, na família, no casamento, temos a presunção dessa filiação. Na relação fora do casamento, esta relação precisa ser declarada, reconhecida, sempre através de uma ação de investigação ou reconhecimento de paternidade. Ou se o pai registra o filho, ou a mãe, desde que sem falsidade ideológica. Se o pretenso pai questiona, ele propõe uma ação de impugnação.

Quando nós falamos do filho havido no casamento, nós falamos do jogo de presunções. Lembrem-se que falamos do casamento monogâmico, um só homem, uma só mulher, fidelidade, quebra do dever de fidelidade e adultério. Se temos o dever de fidelidade, presume-se o filho havido no casamento. A presunção se dá em função dessa característica do casamento que é a monogamia e a fidelidade.

Isso não existe fora do casamento. Por isso, nós mudamos um pouco quando apresentamos o tema. Vejam: voltando ao casamento e à presunção de que o filho é havido no casamento, temos o marido, a esposa e o filho. Temos duas realidades aqui: a realidade jurídica, que é a existência de um casamento mais a presunção da paternidade. Essa é a realidade jurídica. Temos também a realidade biológica, que se presume: a criança é filha desse homem e dessa mulher, marido e esposa. Realidade jurídica e realidade biológica coincidem. Quando o filho é havido fora do casamento, essas realidades não coincidem, e têm que ser provadas. Temos um homem e uma mulher sem casamento e uma criança. Precisa-se demonstrar, então, que houve essa relação, que essa relação fez surgir a criança, e que a criança é filha desse homem. Tudo tem que ser provado, e não há presunção. Assim, ao fazer a investigação de paternidade, essa criança tem que provar que esse pretenso pai teve essa relação com essa mulher (sua mãe) e que é pai dela. O mesmo na ação de reconhecimento de paternidade: o sujeito que acredita ser pai de determinada criança prova que houve a relação e que a criança é filha dele. A realidade jurídica e a realidade biológica só coincidirão ao final do processo, seja de reconhecimento ou de investigação. Ou seja, não existe a presunção na filiação de filhos havidos fora do casamento. Deve-se comprovar a relação de paternidade.

O professor fala em paternidade porque em 99% dos casos podemos duvidar dela. Mas há hipóteses em que se duvida da maternidade. Por exemplo: a mãe vai para o hospital para ter seu filho, que infelizmente nasce morto, mas aconteceu durante uma operação em que ela foi sedada, e o marido faz a troca dos bebês. Quando ela acorda, ela tem um bebê nos braços e não é o dela, que foi inserido. Nessa situação, poder-se-á ter uma investigação de maternidade, ou impugnação de maternidade. Falamos mais em paternidade porque esses casos de maternidade são raros. Como dissemos, “a maternidade é uma certeza; a paternidade é uma presunção.” É um brocardo, mas temos a exceção. É possível termos a ação de reconhecimento de maternidade, ou de impugnação de. Cuidado então para não pensar que é só homem que pode propor ação de reconhecimento ou só ele pode ser investigado, por causa dessa massiva incidência e processos dizerem respeito à paternidade e não à maternidade.

Essa realidade biológica deve ser construída na relação fora do casamento. O reconhecimento de paternidade declara uma filiação fora do casamento, estabelecendo um parentesco biológico entre o pai e o filho havido fora da relação matrimonial. Essa ação de reconhecimento de paternidade não visa a criar uma paternidade, mas sim a declará-la. É uma ação declaratória de paternidade. Traz aquela realidade biológica para o mundo jurídico, para a realidade jurídica. Esse reconhecimento poderá ser voluntário ou compulsório. O voluntário se dá com a própria manifestação do pai, que aceita aquela criança como filho, isto é, ele promove o registro daquele filho, assiste o parto. Participa do nascimento da criança e isso significa que ele está voluntariamente reconhecendo aquela criança.

Em relação a esse reconhecimento voluntário, o professor nos lembra o que disse ontem: até 1977 era impossível o reconhecimento de filho adulterino, ilegítimo. Somente naquele ano houve a permissão do reconhecimento de filho ilegítimo, fora do casamento, através de testamento cerrado. O reconhecimento a qualquer tempo, em qualquer circunstância surge com a Constituição de 1988. O sujeito é casado, viúvo, divorciado, o que for, e, aí, tem filho fora do casamento e o reconhece. Reconhecer é um direito, assim como a criança tem o direito de ser reconhecida.

É um ato unilateral, porque o pai surge e voluntariamente reconhece a criança, sem necessidade da manifestação de mais ninguém.

Agora nós temos uma característica muito especial no reconhecimento de paternidade. O reconhecimento voluntário de paternidade é o ato unilateral, mas pode ser contestado pelo próprio filho. Art. 1614 do Código Civil de 2002:

Art. 1614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.

O filho maior não pode ser reconhecido sem seu consentimento, o filho menor pode impugnar o reconhecimento nos quatro anos que se seguirem a maioridade. Vejam: essa norma dá um poder muito grande ao filho que está sendo reconhecido. Isso porque ele, na no reconhecimento voluntário, pode contestar até quatro anos depois de atingida a maioridade, ou, quando maior, a lei determina que ele deve concordar com o reconhecimento no próprio processo. Temos que essa participação do filho em aceitar o reconhecimento se dá em qualquer hipótese, quer seja no reconhecimento voluntário, quer seja no reconhecimento judicial. Neste último o filho participa do processo e dá sua concordância.

Há uns dois anos tivemos uma situação que o professor nunca havia visto na vida: era uma vez um casal que tinha um filho, que já contava com 19 anos quando nasce uma menina. Essa menina foi registrada como filha do marido e da esposa, com presunção de paternidade, afinal, eram casados. Logo, temos dois irmãos, um homem e uma mulher bem mais nova. Quase 40 anos depois, o irmão ajuíza uma ação de reconhecimento de paternidade, dizendo que esta mulher não era sua irmã, mas, na realidade, sua filha. Ele contava a seguinte história: seu pai era Coronel do exército na época, e queria ascender ao posto de General. O militar tivera uma relação afetiva com uma prostituta e, desta relação, nasceu uma menina. Essa relação era muito conhecida, pois no Rio de Janeiro, onde aconteceu, na vila militar, todos sabiam. O pai, para não prejudicar sua própria carreira, isto é, não atrapalhar sua promoção, registrou a criança como sendo filha dele e de sua esposa. Um caso da chamada adoção à brasileira. O máximo que o pai teria que explicar era como ele tinha uma filha 19 anos depois do primeiro filho. Na época desses acontecimentos, não havia a tecnologia da inseminação.

Pois bem. O filho do casal de militares pediu o reconhecimento, e pediu que sua irmã fosse declarada sua filha. Esta é a primeira parte da história.

A história real, descoberta depois do processo, era: quando os pais faleceram, os irmãos de grande diferença de idade herdariam o patrimônio dos dois, em igualdade de condições. O pai nesse momento já era General. Eles herdaram, e o patrimônio foi dividido meio a meio. Eles até então eram considerados irmãos. O irmão estava doente. Solteiro e nessa condição, resolveu fazer a doação de sua metade para a irmã. Ela ficou com todo o patrimônio.

Não morreu; ele se recuperou.

Anos depois de curado, encontrou uma mulher, e se casou com ela. Tiveram um filho. E aí ele percebeu que todo o patrimônio que poderia ser do filho dele ele havia doado à irmã. Então, ao reconhecê-la como filha, ele traria o patrimônio para ele novamente, e, na eventual sucessão, esse patrimônio teria que ser dividido novamente entre os dois filhos: sua irmã e seu filho havido no novo casamento. Jogada de mestre! Trouxe a irmã para a condição de igualdade horizontal em relação ao filho, e a fortuna se restabeleceria, sendo dividida, então, entre os dois. Notem que, reconhecida a irmã como filha dele, essa herança advinda de seus pais militares poderia ser impugnada porque seria filho único, e todo o patrimônio seria dele.

Quando o sujeito ajuizou essa ação de reconhecimento de paternidade, a mulher procurou o professor, e contou-lhe a primeira parte da história, que era tudo o que sabia até então. Contou que ela era filha do General, foi reconhecida e estava no processo, e que ele tinha relação com a prostituta, que era filha de seu irmão, sem ter com ele uma relação incestuosa. Era uma situação de adoção à brasileira.

Num primeiro momento, ela devia ser realmente filha dele, porque ele pediu que fosse feito o teste de DNA. Professor recomendou: “para ter certeza, faça o teste, dará negativo!” – “E se der positivo?” – questiona a cliente. “Neste caso você será filha dele.” – responde o professor. A cliente replica: “e quais as consequências?”

O professor continuou explicando à cliente que, naquele caso, não é que o patrimônio voltaria para seu irmão que queria se tornar pai, mas sim é antecipação da legítima (a porção de bens do sucedido reservada aos herdeiros necessários). Aí entramos com a paternidade socioafetiva. E colocaram também o art. 1614, que acabamos de ler, reforçando a paternidade socioafetiva, dizendo que ela não reconhecia o irmão como seu pai; e também que ela não aceitava seu irmão como seu pai. E também, em qualquer hipótese, acreditava que seu pai era um General, quer fosse pai biológico, quer fosse pai afetivo, e que em sua vida inteira ela teve apoio do pai afetivo e que cuidava dela. Assim advogado e cliente resgataram 40 anos de história familiar o que o casal de militares fazia para sua filha. Ela fez um trabalho de investigação muito bom. E se recusou a fazer o teste de DNA! Se tivesse um pai, seria o General. Na dúvida, quando há a recusa de teste de DNA, os tribunais dão presunção de paternidade. Quando se recusa a fazer o teste de DNA, forma-se presunção de que aquela criança é filha do autor da ação de reconhecimento. Mesmo assim ela não fez.

O que se fez foi pôr na balança a paternidade socioafetiva e a presunção da paternidade biológica. Tiraram da manga o art. 1614. Foi ao Judiciário e o juiz decidiu em favor da paternidade biológica, reconhecendo-a, por presunção, pela negativa. É a jurisprudência. Virou filha! E, aí, apelamos. Teve uma frase do juiz que o professor considerou de grande mau gosto. O pai era então o irmão e, ao declarar a paternidade do irmão, o juiz mandou mudar o registro de nascimento. Mas, nesse instante, se não falha a memória do professor, o juiz se lembrou de que iria colocar “filha de fulano e sicrana”. E fatalmente criaria uma relação incestuosa, tirando o nome do General e deixando a Generala 1 como mãe. E que, se quisesse descobrir sua mãe, ela que ingressasse com uma ação de investigação de maternidade. Neste caso teríamos uma mulher de 40 anos de idade, e uma prostituta depois desses 40 anos, no Rio de Janeiro. Vejam a sugestão do juiz! Na apelação, o TJRJ manteve a presunção de paternidade, mantendo a primazia da paternidade biológica. O que restou fazer? REsp! No recurso especial, assentou-se novamente na paternidade socioafetiva e nesse art. 1614 do Código Civil. O STJ aqui conheceu do recurso, não pela paternidade socioafetiva, mas pela violação ao art. 1614, entendendo ter incidido a previsão da alínea “a” do inciso III do art. 105 Constituição. Finalmente, o STJ reconheceu e deu provimento ao recurso especial, reconhecendo a paternidade socioafetiva combinada com o art. 1614. O maior de idade pode ser reconhecido com sua anuência. O filho maior não pode ser reconhecido sem seu consentimento. Foi pela presunção de paternidade, pela recusa dela.

Foi um dos processos mais interessantes em que o professor atuou, além de ter sido um caso concretíssimo de paternidade socioafetiva e anuência do filho.

Se ela aceitasse o exame e comprovasse ser filha do irmão, a briga que daí adviria seria quase sem precedentes. Ter-se-ia que recorrer aos entendimentos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reconheceu desde cedo a paternidade socioafetiva, prevalecendo sobre a filiação biológica. A doutrina é toda pela paternidade socioafetiva, e a frase é: “pai é quem cria”.

Esse é o reconhecimento voluntário.
 

Reconhecimento compulsório

Temos aqui uma possibilidade de, através do Poder Judiciário, fazer surgir essa relação de filiação entre um homem e uma criança. O que o professor quer que saibamos é que, na ação de reconhecimento de paternidade, qualquer pessoa ou empresa que tenha legítimo interesse pode participar do processo para contestar a ação de paternidade.

Dentro deste contexto temos a ação de reconhecimento de paternidade.

Esgotaremos o tema na próxima aula com a investigação de paternidade. E vamos terminar nosso curso.


  1. Nome vulgarmente dado à mulher do General. Mas nada impede que a mulher também fosse General!