Direito Civil

quinta-feira, 3 de março de 2011

Evolução histórica da família - continuação

Nós terminamos a aula de ontem falando sobre a família, em suas concepções históricas. Falamos sobre a família no Cristianismo. É o conceito que faz surgir o conceito ocidental de família.

Nas famílias romanas, os pais escolhiam os cônjuges para seus filhos. Uma prática que ainda hoje existe em algumas culturas, na árabe e na indiana. No mundo ocidental, a prevalência é a do casamento cristão, que surgiu, há cerca de 2000 anos, como alternativa ao casamento romano. Pugna pela existência de um só Deus, onipotente, e apenas em alguns momentos ele participa diretamente de cerimônias envolvendo o ser humano. Entre esses momentos está o casamento.

Temos um homem e uma mulher que são chamados a se manifestar perante um Sacerdote que é, agora, uma autoridade superior. Aqui a grande diferença é que não existe mais o pater familias, mas sim os futuros cônjuges, os noivos, que são obrigados a responder que “sim”, que querem o casamento. Nesse momento o Padre declara que, em nome de Deus, existe um vínculo matrimonial.

A pergunta de se os nubentes estão de livre e espontânea vontade dá um indício do início da teoria contratualista do casamento. É um contrato especial indissolúvel. Para outras correntes, especialmente a contratualista, o casamento é um contrato especial, por ser instituto de Direito de Família, mas permite seu término pelo divórcio.

O casamento cristão é interessante porque é o germe também de conceitos que vigem até hoje, como, por exemplo, o da fidelidade e infidelidade. Infidelidade é a quebra do sistema monogâmico.

Também é a fonte da indissolubilidade do casamento, isto é, os seres humanos se unem através do casamento, afirmado perante Deus, e essa União deve prevalecer em todas as situações que envolvem a vida do casal. É por isso que o sacerdote diz que o casamento vale, é indissolúvel, para os momentos de alegria, tristeza, saúde e doença, em todos os momentos da vida, até que a morte os separe. Essa é a indissolubilidade.

O conceito de insolubilidade e monogamia trouxe outro conceito: uma só carne, um só espírito. Quer dizer, é um homem e uma mulher que se unem materialmente e espiritualmente. Nem sempre foi assim. Mateus, evangelista, defendia o divórcio, especialmente nas hipóteses do adultério da mulher. Se a mulher era adúltera, ele defendia a permissão do divórcio. Essa corrente foi superada pela própria maioria dos apóstolos, pelos pregadores da doutrina, e não foi recepcionada no Código de Direito Canônico.

O CDC começa a ser discutido no ano de 1542, e termina em 1563. Vinte e um anos de elaboração, até expressar toda a doutrina católica através de normas ali estabelecidas. Essas normas do casamento cristão, através do Código Canônico, chegaram a Portugal, que o aprovou integralmente. É copiado pelo Estado português. Excluiu somente os temas tipicamente religiosos, próprios da Igreja Católica, por exemplo, a heresia. O Código Canônico, que regula o casamento cristão, institui uma série de impedimentos matrimoniais, que são os mesmos impedimentos ainda hoje vigentes em nosso Código Civil, que vamos falar dentro de algumas aulas. São as causas, as situações que impedem o casamento. A formação da família, então, tendo como obstáculo algumas situações. Por exemplo: casamento entre irmãos, ou entre sogra e genro, e daí o ditado: “sogra é para sempre”. Até ensinaram: ao casar, olhe bem para sua sogra.

Essa prevalência da vontade do casamento cristão, entretanto, não existiu sempre; pois a Igreja também incentivava os casamentos por interesse, como geopolíticos, econômicos e militares. Até hoje isso existe, mas houve uma época na Idade Média que era quase política oficial. O filho de um reino casava-se com a filha de um chefe de outro Estado, pois havia necessidade de uma aliança militar contra um terceiro. O próprio Vaticano tinha suas Forças Armadas, lutava em guerra contra outros reinos, e participava dessa linha das alianças.

Até hoje vemos nas monarquias modernas essa tendência ao casamento arranjado. À exceção da Inglaterra, em que temos a realeza confraternizando com a plebe.

A Igreja, ao estabelecer o Código Canônico, também desenvolveu um sistema que contorna o caráter da indissolubilidade do casamento. Foi na concepção cristã que surgiu também a ideia de que todos os seres humanos constroem e edificam uma sociedade conjugal. Os seres humanos formam relações independentemente de Deus. O que é indissolúvel é o vínculo matrimonial, o fio invisível que liga duas pessoas. A sociedade conjugal é construída pelos seres, pelos homens. A Igreja, na sociedade conjugal, admite a separação de corpos, que significa seu fim, mas mantendo, ainda, o vínculo matrimonial. Faz-se a partilha de bens, estabelece-se com quem ficará o filho, alimentos, e assim por diante. A separação de corpos era exclusivamente para o fim da sociedade conjugal, cada um indo para seu lar.

Na área cível, essa separação de corpos tinha como correspondente o desquite. Mas, de qualquer modo, o desquite era uma adaptação da separação de corpos estabelecida pela Igreja.

Em momentos de muito extremismo, em posições extremas da Igreja, mesmo a separação de corpos mantinha o dever de fidelidade entre o marido e a esposa separados. Desquitava-se, mas tinha-se que manter fidelidade conjugal ao ex-marido ou ex-esposa. Houve tentativa no Brasil, inclusive, de fazer essa postura vingar, mas foi superada por ser reputada antinatural.

Essas são as bases do casamento cristão.

Em 1542 começou o Concilio de Trento. Brasil já era colônia de Portugal. Quando o Estado português adota o Código Canônico, isso passou a significar que este também passou a ser usado para dirimir conflitos de família. Os primeiros brasileiros eram filhos de portugueses, católicos fervorosos, e continuaram adotando o Código Canônico como sendo o norte do ordenamento jurídico brasileiro nessa época.

Somente com a Proclamação da República o Brasil se declara laico. A primeira Constituição republicana surge em 1891. Naquele ano, a Constituição estabeleceu as seguintes palavras: “civil o casamento, civil sua celebração.” Isso significa que o Brasil passou a ser um Estado laico, já não tinha mais uma religião oficial, admitia-se o pluralismo religioso no povo brasileiro, na realidade era somente para satisfazer uma pequena parcela que não era católica.

A população brasileira, com a celebração civil do casamento, ainda era católica praticante. Hoje temos mais um catolicismo à brasileira. Passou-se a não mais aceitar como legal o casamento religioso. Houve uma resistência da população brasileira a essa determinação constitucional. E insistiam que o casamento válido era o feito na Igreja, e não o feito perante o juiz de paz. Até hoje, no terceiro milênio, há pessoas idealizando o casamento na Igreja, de véu e grinalda.

O governo, em 1893, foi obrigado a editar um decreto prevendo pena de prisão para o Sacerdote que celebrasse uma cerimonia de casamento. A resistência aumentou ainda mais. Ou o Estado cedia e permitia, ou todos aceitavam o casamento civil. Houve uma opção política, adotada cerca de 40 anos depois, com a Constituição de 1934. Pela primeira vez surge a figura do casamento religioso com efeitos civis, como forma de conciliar. A única exigência era que o casamento religioso fosse levado a registro no cartório.

Nesse contexto há uma contrapartida dentro da Igreja. Todas as religiões têm que ser registradas no Ministério da Justiça, onde se devem depositar seu estatuto social. Os objetivos da fé, o que se vai pregar no país. Todo grupo religioso que resolver se transformar em religião terá que cumprir alguns requisitos. Um dos itens é o respeito à lei civil que trata do casamento. Quando há um casamento religioso, a estrutura é a mesma do casamento civil; o que pode se acrescentar são os ingredientes religiosos. Também deve-se dizer que irá se dar uma determinada interpretação da Bíblia em sua pregação religiosa.

No casamento católico, o Sacerdote fala em nome de Deus. No casamento civil brasileiro, cujo modelo é o mesmo, a figura do Sacerdote é substituída por um juiz de paz, que tem o poder de declarar a existência do casamento em nome da lei, não de Deus. E aqui vem o problema, pois a lei muda de acordo com o momento político que está sendo vivido.

Não nos esqueçamos que essa forma “em nome da lei” vem do positivismo francês do século XVIII, e nós fizemos a adaptação do Código Canônico a partir da República para a lei civil. Os institutos foram mantidos. Ninguém inventa a roda, pois já foi inventada.

Interessante é que, na Grécia e em Roma, quem participava efetivamente do casamento eram os pater familias, sem a presença de Deus, pois cada uma tinha seu próprio deus. A religião era circunscrita ao lar, e cada uma cultuava um diferente deus. Não havia a figura divina nem reis.

Na família brasileira, algumas questões evoluíram ao longo do tempo. A questão da indissolubilidade, por exemplo. O casamento era indissolúvel até 1977. O velho desquite se transformou em separação judicial, amigável ou litigiosa. E se estabeleceram as regras, as normas que levavam ao divórcio. Outro detalhe: como que se conseguiu aprovar o divórcio no Brasil? Os estudos mostram que houve uma conjugação de alguns fatores da maior importância. Primeiro, o cultural, isto é, a sociedade brasileira estava cada vez mais preparada para o divórcio. Televisão, jornais, grupos, jovens, exemplos internacionais já indicavam. A segunda vertente foi a política, curiosíssima neste particular. Na década de 70, antes de 77, para se mudar a Constituição a lei exigia uma maioria classificada de dois terços. Isso até 1976. Quando se punham emendas constitucionais instituindo o divórcio no Brasil, elas nunca obtiveram os dois terços nas votações. O número de deputados favoráveis ao divórcio era crescente. Tínhamos, aqui, para a aprovação, 20% de parlamentares, e num momento posterior tinham-se mais de 50%. Mas não passavam de dois terços. Em 1975, houve uma lavagem política, com a oposição, personificada pelo MDB, passou a ter muitos parlamentares, e a ARENA diminuiu. O governo militar presente na época manteve o resultado da eleição. A oposição elegeu um governador ou dois. A população disse: “chega de regime militar. Vamos mudar isso!” O governo acabou aceitando o resultado eleitoral e viu que ele próprio, através da ARENA, já não tinha aquela maioria esmagadora no Congresso Nacional. Antes de 76 eles tinham 90% do Congresso, e caíram para uma maioria de apenas 60%, aproximadamente. Foi uma diminuição expressiva.

O que o governo fez foi mudar a qualificação da maioria necessária para emendar a Constituição, de dois terços para maioria absoluta. Bastavam os 50% + 1. Foi uma emenda de abril de 77 que aprovou, por maioria absoluta, o divórcio.

A terceira vertente foi uma coincidência, que nunca mais se viu em nosso país. Pela única vez em toda a história republicana exercia a presidência uma pessoa que declaradamente não era católica. Era Ernesto Geisel, um luterano. A Igreja Católica bateu às portas do Planalto e foi surpreendida com a negativa de apoio de Geisel. Em dezembro de 1977 foi editada a Lei 6515, instituindo o divórcio.

E não sem muita discussão. Uma das concessões foi a seguinte: estabelecidos os prazos para se chegar ao divórcio, passar necessariamente pela separação judicial, e, depois de dois anos, fazer a conversão da separação em divórcio. Foram concessões administradas politicamente. Uma delas estabelecia que divórcio só era permitido uma vez. Pode-se casar mais uma vez, sendo o segundo casamento indissolúvel. Para aprovação da Lei 6515, acabou-se concordando. Dois anos depois houve um impasse jurídico que jeitinho brasileiro nenhum conseguia dar conta: um homem casado se divorcia. O segundo casamento seria indissolúvel. Ele casa, depois, com uma jovem que se casava pela primeira vez. Veja o impasse. Para o homem, o segundo casamento era indissolúvel. Mas não para ela, que estava no primeiro casamento ainda! Não havia o que fazer, seria intrinsecamente ilógico.

Nova mudança houve em 2010, com o fim da separação judicial. Pode-se partir para o divórcio direto. Nesse intervalo, foram editadas várias leis para facilitar o divórcio, prazos, obstáculos, que estudaremos na hora em que formos falar do divórcio.
 
Outro tema da família brasileira foi a Constituição de 1988 que acabou com a família ilegítima, ao estabelecer a união estável como entidade familiar. A igualdade entre filhos, a possibilidade de reconhecimento do filho incestuoso, e não apenas o filho adulterino. A igualdade dos filhos, a longa evolução dos direitos da mulher, passando da situação de inferioridade para a igualdade dentro do casamento. Tudo isso desde 1891 com a primeira Constituição republicana brasileira.

Significa que nosso processo de evolução do Direito de Família tem apenas 120 anos, o que não é muita coisa.

Outro dado é que alguns teóricos afirmam que, tecnologicamente, a civilização humana progrediu mais nos últimos 40 anos do que nos 4000 anteriores. O comportamento também mudou, à medida que a globalização da informação também evoluiu. “Veja o que está acontecendo no mundo árabe neste momento!” Primeira guerra que começa pela Internet, com Twitter e Facebook. Não há ditador que dê conta dos computadores móveis. Não apenas a TV que transmite de qualquer parte do mundo, sem qualquer problema, mas esta tem intervenção maior do Estado. 

Os temas que trabalharemos são: Direito de Família e família em si. O professor irá cobrar inclusive a parte histórica!

E vamos estudar, a partir de agora, os institutos do Direito de Família. O eixo central ainda é o casamento. A partir dele é que teremos outros institutos, a exemplo da união estável e do regime de bens, o parentesco, o casamento nulo, anulável, e vários temas que estão em nosso programa. Casamento é a grande instituição do Direito de Família e não foi substituída até hoje. Tem concorrentes, mas ainda é o mais forte.

Aparentemente hoje o casamento está inclusive revigorando. Jovens buscando o casamento ao invés da fanfarra. Em nossa sala mesmo, quantos se manifestaram pelo casamento e não pela união estável!

Até agora, essas dificuldades para o divórcio faziam com que o casamento fosse uma relação relativamente estável, trazendo segurança. O que não sabemos é, com essa possibilidade de trocar de marido ou esposa a uma velocidade cada vez maior, não sabemos qual será a repercussão disso dentro do grupo social no médio prazo.

O casamento é o contrato que também respeita os mais solenes ritos e formalidades. O casamento respeita a forma e o ritual. As palavras que declaram a existência do casamento são iguais no Brasil inteiro, e a validade do casamento depende, entre outros itens, que se cumpra exatamente aquilo que está no Código. O juiz de paz, ao declarar a existência do casamento, não pode inovar. A palavra segue o ritual. A postura das pessoas no altar. A própria cerimonia tem que respeitar determinadas formas. O casamento será anulável, por exemplo, se for realizado a portas fechadas. As portas têm que estar abertas e deverá ser permitido o ingresso de qualquer pessoa. Só a festa é particular. Deixe o intruso assistir, mas escolte-o até a porta!