Nós terminamos a aula de ontem
falando sobre a família, em suas concepções históricas. Falamos sobre a família
no Cristianismo. É o conceito que faz surgir o conceito ocidental de família.
Nas famílias romanas, os pais
escolhiam os cônjuges para seus filhos. Uma prática que ainda hoje existe em
algumas culturas, na árabe e na indiana. No mundo ocidental, a prevalência é a
do casamento cristão, que surgiu, há cerca de 2000 anos, como alternativa ao
casamento romano. Pugna pela existência de um só Deus, onipotente, e apenas em
alguns momentos ele participa diretamente de cerimônias envolvendo o ser
humano. Entre esses momentos está o casamento.
Temos um homem e uma mulher que
são chamados a se manifestar perante um Sacerdote que é, agora, uma
autoridade superior. Aqui a grande diferença é que não existe mais o pater familias,
mas sim os futuros cônjuges, os noivos, que são obrigados a responder que
“sim”, que querem o casamento. Nesse momento o Padre declara que, em nome de Deus, existe um vínculo
matrimonial.
A pergunta de se os nubentes
estão de livre e espontânea vontade dá um indício do início da teoria
contratualista do casamento. É um contrato especial indissolúvel. Para outras
correntes, especialmente a contratualista, o casamento é um contrato especial,
por ser instituto de Direito de Família, mas permite seu término pelo divórcio.
O casamento cristão é
interessante porque é o germe também de conceitos que vigem até hoje, como, por
exemplo, o da fidelidade e infidelidade. Infidelidade é a quebra do sistema
monogâmico.
Também é a fonte da
indissolubilidade do casamento, isto é, os seres humanos se unem através do
casamento, afirmado perante Deus, e essa União deve prevalecer em todas as
situações que envolvem a vida do casal. É por isso que o sacerdote diz que o
casamento vale, é indissolúvel, para os momentos de alegria, tristeza, saúde e
doença, em todos os momentos da vida, até que a morte os separe. Essa é a
indissolubilidade.
O conceito de insolubilidade e
monogamia trouxe outro conceito: uma só carne, um só espírito. Quer dizer, é um
homem e uma mulher que se unem materialmente e espiritualmente. Nem sempre foi
assim. Mateus, evangelista, defendia o divórcio, especialmente nas hipóteses do
adultério da mulher. Se a mulher era adúltera, ele defendia a permissão do
divórcio. Essa corrente foi superada pela própria maioria dos apóstolos, pelos
pregadores da doutrina, e não foi recepcionada no Código de Direito Canônico.
O CDC começa a ser discutido no
ano de 1542, e termina em 1563. Vinte e um anos de elaboração, até expressar
toda a doutrina católica através de normas ali estabelecidas. Essas normas do
casamento cristão, através do Código Canônico, chegaram a Portugal, que o
aprovou integralmente. É copiado pelo Estado português. Excluiu somente os
temas tipicamente religiosos, próprios da Igreja Católica, por exemplo, a
heresia. O Código Canônico, que regula o casamento cristão, institui uma série
de impedimentos matrimoniais, que são os mesmos impedimentos ainda hoje vigentes
em nosso Código Civil, que vamos falar dentro de algumas aulas. São as causas,
as situações que impedem o casamento. A formação da família, então, tendo como
obstáculo algumas situações. Por exemplo: casamento entre irmãos, ou entre
sogra e genro, e daí o ditado: “sogra é para sempre”. Até ensinaram: ao casar,
olhe bem para sua sogra.
Essa prevalência da vontade do
casamento cristão, entretanto, não existiu sempre; pois a Igreja também
incentivava os casamentos por interesse, como geopolíticos, econômicos e
militares. Até hoje isso existe, mas houve uma época na Idade Média que era
quase política oficial. O filho de um reino casava-se com a filha de um chefe
de outro Estado, pois havia necessidade de uma aliança militar contra um
terceiro. O próprio Vaticano tinha suas Forças Armadas, lutava em guerra contra
outros reinos, e participava dessa linha das alianças.
Até hoje vemos nas monarquias
modernas essa tendência ao casamento arranjado. À exceção da Inglaterra, em que
temos a realeza confraternizando com a plebe.
A Igreja, ao estabelecer o Código
Canônico, também desenvolveu um sistema que contorna o caráter da
indissolubilidade do casamento. Foi na concepção cristã que surgiu também a
ideia de que todos os seres humanos constroem e edificam uma sociedade
conjugal. Os seres humanos formam relações independentemente de Deus. O que é
indissolúvel é o vínculo matrimonial, o fio invisível que liga duas pessoas. A
sociedade conjugal é construída pelos seres, pelos homens. A Igreja, na
sociedade conjugal, admite a separação de
corpos, que significa seu fim, mas mantendo, ainda, o vínculo matrimonial.
Faz-se a partilha de bens, estabelece-se com quem ficará o filho, alimentos, e
assim por diante. A separação de corpos era exclusivamente para o fim da
sociedade conjugal, cada um indo para seu lar.
Na área cível, essa separação de
corpos tinha como correspondente o desquite.
Mas, de qualquer modo, o desquite era uma adaptação da separação de corpos
estabelecida pela Igreja.
Em momentos de muito extremismo,
em posições extremas da Igreja, mesmo a separação de corpos mantinha o dever de
fidelidade entre o marido e a esposa separados. Desquitava-se, mas tinha-se que
manter fidelidade conjugal ao ex-marido ou ex-esposa. Houve tentativa no
Brasil, inclusive, de fazer essa postura vingar, mas foi superada por ser
reputada antinatural.
Essas são as bases do casamento
cristão.
Em 1542 começou o Concilio de
Trento. Brasil já era colônia de Portugal. Quando o Estado português adota o
Código Canônico, isso passou a significar que este também passou a ser usado
para dirimir conflitos de família. Os primeiros brasileiros eram filhos de
portugueses, católicos fervorosos, e continuaram adotando o Código Canônico
como sendo o norte do ordenamento jurídico brasileiro nessa época.
Somente com a Proclamação da
República o Brasil se declara laico. A primeira Constituição republicana surge
em 1891. Naquele ano, a Constituição estabeleceu as seguintes palavras: “civil
o casamento, civil sua celebração.” Isso significa que o Brasil passou a ser um
Estado laico, já não tinha mais uma religião oficial, admitia-se o pluralismo
religioso no povo brasileiro, na realidade era somente para satisfazer uma
pequena parcela que não era católica.
A população brasileira, com a
celebração civil do casamento, ainda era católica praticante. Hoje temos mais
um catolicismo à brasileira. Passou-se a não mais aceitar como legal o
casamento religioso. Houve uma resistência da população brasileira a essa
determinação constitucional. E insistiam que o casamento válido era o feito na
Igreja, e não o feito perante o juiz de paz. Até hoje, no terceiro milênio, há
pessoas idealizando o casamento na Igreja, de véu e grinalda.
O governo, em 1893, foi obrigado
a editar um decreto prevendo pena de prisão para o Sacerdote que celebrasse uma
cerimonia de casamento. A resistência aumentou ainda mais. Ou o Estado cedia e
permitia, ou todos aceitavam o casamento civil. Houve uma opção política,
adotada cerca de 40 anos depois, com a Constituição de 1934. Pela primeira vez
surge a figura do casamento religioso com
efeitos civis, como forma de conciliar. A única exigência era que o
casamento religioso fosse levado a registro no cartório.
Nesse contexto há uma
contrapartida dentro da Igreja. Todas as religiões têm que ser registradas no
Ministério da Justiça, onde se devem depositar seu estatuto social. Os objetivos
da fé, o que se vai pregar no país. Todo grupo religioso que resolver se
transformar em religião terá que cumprir alguns requisitos. Um dos itens é o
respeito à lei civil que trata do casamento. Quando há um casamento religioso,
a estrutura é a mesma do casamento civil; o que pode se acrescentar são os
ingredientes religiosos. Também deve-se dizer que irá se dar uma determinada
interpretação da Bíblia em sua pregação religiosa.
No casamento católico, o
Sacerdote fala em nome de Deus. No casamento civil brasileiro, cujo modelo é o
mesmo, a figura do Sacerdote é substituída por um juiz de paz, que tem o poder
de declarar a existência do casamento em nome da lei, não de Deus. E aqui vem o
problema, pois a lei muda de acordo com o momento político que está sendo
vivido.
Não nos esqueçamos que essa forma
“em nome da lei” vem do positivismo francês do século XVIII, e nós fizemos a
adaptação do Código Canônico a partir da República para a lei civil. Os
institutos foram mantidos. Ninguém inventa a roda, pois já foi inventada.
Interessante é que, na Grécia e
em Roma, quem participava efetivamente do casamento eram os pater familias, sem
a presença de Deus, pois cada uma tinha seu próprio deus. A religião era
circunscrita ao lar, e cada uma cultuava um diferente deus. Não havia a figura
divina nem reis.
Na família brasileira, algumas
questões evoluíram ao longo do tempo. A questão da indissolubilidade, por
exemplo. O casamento era indissolúvel até 1977. O velho desquite se transformou
em separação judicial, amigável ou litigiosa. E se estabeleceram as regras, as
normas que levavam ao divórcio. Outro detalhe: como que se conseguiu aprovar o
divórcio no Brasil? Os estudos mostram que houve uma conjugação de alguns
fatores da maior importância. Primeiro, o cultural, isto é, a sociedade
brasileira estava cada vez mais preparada para o divórcio. Televisão, jornais,
grupos, jovens, exemplos internacionais já indicavam. A segunda vertente foi a
política, curiosíssima neste particular. Na década de 70, antes de 77, para
se mudar a Constituição a lei exigia uma maioria classificada de dois terços.
Isso até 1976. Quando se punham emendas constitucionais instituindo o divórcio
no Brasil, elas nunca obtiveram os dois terços nas votações. O número de
deputados favoráveis ao divórcio era crescente. Tínhamos, aqui, para a
aprovação, 20% de parlamentares, e num momento posterior tinham-se mais de 50%.
Mas não passavam de dois terços. Em 1975, houve uma lavagem política, com a
oposição, personificada pelo MDB, passou a ter muitos parlamentares, e a ARENA
diminuiu. O governo militar presente na época manteve o resultado da eleição. A
oposição elegeu um governador ou dois. A população disse: “chega de regime
militar. Vamos mudar isso!” O governo acabou aceitando o resultado eleitoral e
viu que ele próprio, através da ARENA, já não tinha aquela maioria esmagadora
no Congresso Nacional. Antes de 76 eles tinham 90% do Congresso, e caíram para
uma maioria de apenas 60%, aproximadamente. Foi uma diminuição expressiva.
O que o governo fez foi mudar a
qualificação da maioria necessária para emendar a Constituição, de dois terços
para maioria absoluta. Bastavam os 50% + 1. Foi uma emenda de abril de 77 que
aprovou, por maioria absoluta, o divórcio.
A terceira vertente foi uma
coincidência, que nunca mais se viu em nosso país. Pela única vez em toda a
história republicana exercia a presidência uma pessoa que declaradamente não
era católica. Era Ernesto Geisel, um luterano. A Igreja Católica bateu às portas
do Planalto e foi surpreendida com a negativa de apoio de Geisel. Em dezembro
de 1977 foi editada a Lei 6515, instituindo o divórcio.
E não sem muita discussão. Uma
das concessões foi a seguinte: estabelecidos os prazos para se chegar ao
divórcio, passar necessariamente pela separação judicial, e, depois de dois
anos, fazer a conversão da separação em divórcio. Foram concessões
administradas politicamente. Uma delas estabelecia que divórcio só era permitido uma vez. Pode-se casar mais uma vez, sendo o segundo
casamento indissolúvel. Para aprovação da Lei 6515, acabou-se concordando. Dois
anos depois houve um impasse jurídico que jeitinho brasileiro nenhum conseguia
dar conta: um homem casado se divorcia. O segundo casamento seria indissolúvel.
Ele casa, depois, com uma jovem que se casava pela primeira vez. Veja o
impasse. Para o homem, o segundo casamento era indissolúvel. Mas não para ela,
que estava no primeiro casamento ainda! Não havia o que fazer, seria intrinsecamente
ilógico.
Nova mudança houve em 2010, com o
fim da separação judicial. Pode-se partir para o divórcio direto. Nesse
intervalo, foram editadas várias leis para facilitar o divórcio, prazos,
obstáculos, que estudaremos na hora em que formos falar do divórcio.
Outro tema da família brasileira
foi a Constituição de 1988 que acabou com a família ilegítima, ao estabelecer a
união estável como entidade familiar. A igualdade entre filhos, a possibilidade
de reconhecimento do filho incestuoso, e não apenas o filho adulterino. A
igualdade dos filhos, a longa evolução dos direitos da mulher, passando da
situação de inferioridade para a igualdade dentro do casamento. Tudo isso desde
1891 com a primeira Constituição republicana brasileira.
Significa que nosso processo de evolução
do Direito de Família tem apenas 120 anos, o que não é muita coisa.
Os temas que trabalharemos são:
Direito de Família e família em si. O professor irá cobrar inclusive a parte
histórica!
E vamos estudar, a partir de agora,
os institutos do Direito de Família. O eixo central ainda é o casamento. A
partir dele é que teremos outros institutos, a exemplo da união estável e do
regime de bens, o parentesco, o casamento nulo, anulável, e vários temas que
estão em nosso programa. Casamento é a grande instituição do Direito de Família
e não foi substituída até hoje. Tem concorrentes, mas ainda é o mais forte.
Aparentemente hoje o casamento
está inclusive revigorando. Jovens buscando o casamento ao invés da fanfarra.
Em nossa sala mesmo, quantos se manifestaram pelo casamento e não pela união
estável!
Até agora, essas dificuldades
para o divórcio faziam com que o casamento fosse uma relação relativamente
estável, trazendo segurança. O que não sabemos é, com essa possibilidade de
trocar de marido ou esposa a uma velocidade cada vez maior, não sabemos qual
será a repercussão disso dentro do grupo social no médio prazo.
O casamento é o contrato que
também respeita os mais solenes ritos e formalidades. O casamento respeita a
forma e o ritual. As palavras que declaram a existência do casamento são iguais
no Brasil inteiro, e a validade do casamento depende, entre outros itens, que
se cumpra exatamente aquilo que está no Código. O juiz de paz, ao declarar a
existência do casamento, não pode inovar. A palavra segue o ritual. A postura
das pessoas no altar. A própria cerimonia tem que respeitar determinadas
formas. O casamento será anulável, por exemplo, se for realizado a portas
fechadas. As portas têm que estar abertas e deverá ser permitido o ingresso de
qualquer pessoa. Só a festa é particular. Deixe o intruso assistir, mas
escolte-o até a porta!