Vamos continuar o tema do regime de
bens. Falamos ontem
sobre a comunhão universal. Terminarmos com a leitura das exceções, ou
seja, os
bens, direitos e obrigações que não entram na comunhão.
Com a Lei do Divórcio de 77, ficou
estabelecido que o regime
legal seria, a partir dali, o regime da comunhão parcial de bens. O
regime da
comunhão parcial está disciplinado a partir do art. 1658 do Código
Civil...
CAPÍTULO III Do Regime de Comunhão Parcial Art. 1658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes. |
Na comunhão parcial, temos a convivência de patrimônios. Temos o
patrimônio próprio, particular
do marido, o patrimônio próprio ou particular da esposa, e o patrimônio
comum
em que eles são considerados meeiros. Neste, da mesma forma como na
comunhão
universal, os bens se comunicam. Reparem portanto que, se antes de se
casar o
sujeito tinha um automóvel, o automóvel continuará sendo dele. Se ela
tinha uma
casa, a casa é dela. Se ela tinha ações da Souza Cruz, as ações serão
dela, e
não se misturarão ao patrimônio do marido. Entretanto, se compraram uma
mansão
depois do casamento, a mansão é dos dois.
Notem que os patrimônios não podem
brigar entre si. Eles
convivem, e a convivência deveria ser, ao menos teoricamente, pacífica.
Mas
nós, seres humanos, gostamos de complicar as coisas, dando
interpretações pessoais
sobre os bens que temos. Por isso e outras coisas as Varas de Família
são tão
conturbadas.
Podemos entender o regime da comunhão
parcial a partir de
dois conceitos. Da experiência do professor, ele nos diz que, sempre
que
analisa o problema da partilha de bens na comunhão parcial, ele relê
esses dois
conceitos e 90% dos problemas são resolvidos com essa simples
releitura. Os
outros 10% são resolvidos na emoção entre cônjuges.
Os dois conceitos são os seguintes:
E
exclui os
bens:
O regime da comunhão parcial é também
chamado de regime da comunhão dos aquestos.
É a
palavra que designa os bens adquiridos pelo casal de forma onerosa. Os
dois
conceitos se completam. Incluem-se os bens adquiridos durante o
casamento a
título oneroso. Incluem-se também no patrimônio comum as benfeitorias e
os bens
doados ou deixados a ambos os cônjuges. Dentre os bens adquiridos por
causa
anterior ou alheia ao casamento temos, como exemplo, herança e doação.
Dentre
os bens adquiridos a título gratuito temos, dentro do conceito de
Clóvis
Beviláqua, além da doação e a herança, os bens sub-rogados.
Assim poderemos encaminhar quase
qualquer questão
relacionada à comunhão parcial. O professor se casou no regime da
comunhão
universal de bens e, no momento do casamento, ele tinha um Fusca e mais
nada. Sua
mulher é de uma família cristã católica e milionária. Os pais dela
faleceram um
dia. Recebeu, por causa anterior e alheia ao casamento, a herança, a
título
gratuito, e não havia cláusula que incluísse o marido (o professor)
nesse
patrimônio. Quando a herança entra no patrimônio dela, se não houver
cláusula
de incomunicabilidade, toda a herança se comunicará a ele, cônjuge.
Mas, se o professor fosse casado em
comunhão
parcial, a herança ficaria somente para sua mulher.
Os bens excluídos dos aquestos são os
bens adquiridos com os
valores recebidos pela cessão de outro bem do patrimônio particular de
um dos
cônjuges. O bem adquirido não pode sair do patrimônio particular.
Considere a
existência de um terreno dentre o patrimônio pessoal do marido antes do
casamento. Ele vende esse terreno por R$ 200 mil, e aplica o dinheiro.
Depois
de um tempo, ele toma o dinheiro resultante dessa aplicação e adquire
um
apartamento, que posteriormente é vendido por R$ 1 milhão, dinheiro que
também
é usado numa aplicação. Depois disso, ele compra uma mansão por R$ 1,2
milhão. Até
agora, desapareceu a aplicação derivada do terreno mais o apartamento e
surge a
mansão. Isso é sub-rogação. Existe uma relação de causa e efeito com o
que
havia e com o que há.
Agora considere que a mansão custou
não 1,2, mas 1,5 milhão,
e foi adquirida na constância do casamento. Os 1,2 milhão o rapaz já
possuía
desde antes. Desse valor de R$ 1,5 pago na mansão, 0,3 milhão serão do
patrimônio comum. Prestações pagas antes são do patrimônio particular;
prestações pagas durante o casamento vão ao patrimônio comum. Reparem
que
temos, aqui, a maneira pela qual vamos fazer essa divisão.
A mulher, entretanto, tinha um
terreno antes do casamento. Depois
do casamento ela construiu uma casa nele. O terreno é dela, e a casa é benfeitoria. A
benfeitoria integrará o patrimônio comum, pois obtida presumidamente
com o
esforço comum (essa presunção é absoluta, juris
et de jure).¹ E se ela tiver vendido a casa,
evidentemente com o
terreno, e comprado dois lotes? O que se deverá fazer é apurar o valor
do
terreno, que ficará com ela. O valor da casa será patrimônio comum.
Não percam documentos! Inclusive é
bom fazer um inventário
dos bens no pacto antenupcial, se houver. Como na comunhão parcial não
se
exige, é bom fazer mesmo assim!
Com essas regrinhas, resolvem-se
todos os problemas da
comunhão parcial.
O professor disse que, no primeiro
casamento dele, ele saiu
com um automóvel Vectra e R$ 20 mil. Eles tinham uma advogada comum. Ao
separar, constituíram advogados separados. A advogada dele não aceitou
tão
pouco. Foi estabelecida então uma cláusula em que, se a mulher vendesse
os
bens, ela teria que dá-lo 10% do que fosse apurado na venda. Feito o
acordo de
separação com os 10%, a mulher dele infelizmente faleceu de câncer.
Eles já
estavam divorciados. Os únicos herdeiros eram os dois filhos, que
receberam o
patrimônio, e resolveram honrar os 10%. Disseram: “pai, não queremos
café e
gado. Vamos vender tudo e apuraremos o valor, respeitando teus 10%.”
Essa
decisão foi objeto de conversa, de troca de e-mails, depósitos
bancários, tudo
por acaso. Esse dinheiro, correspondente a 10% dos valores das vendas,
foi
integrado ao Vectra e aos 20 mil reais que já existiam.
Cada valor recebido era incluído na
declaração de Imposto de
Renda.
E a vida segue. Professor
eventualmente começou a namorar
outra vez, ficou noivo, mas agora os tempos eram outros, e o regime que
escolheu com sua segunda mulher no casamento vindouro era o da comunhão
parcial. Depois do casamento, com sua nova noiva, que era recém-formada
na Lei,
um novo patrimônio começou a ser constituído. Esse patrimônio foi um
automóvel
e um apartamento. O apartamento veio das aplicações constituídas pelas
“n” prestações
de 10% do acordo anterior.
A fila não parou. Veio a separação, e
não houve dúvida. O
valor do automóvel foi divido meio a meio. Acabou ficando com ela. E o
apartamento? Divide-se em duas porções: uma só do professor, e outra
comum. Aquela
parte caberia somente ao professor por conta da sub-rogação de bens
anteriores
ao presente casamento, que eram as prestações derivadas do acordo
anterior.
Digamos que o apartamento tenha sido
posteriormente vendido
por R$ 300 mil. 100 caberiam ao Flávio, outros 200 caberiam a (Flávio +
Esposa).
Desses 200 mil, verificou-se quanto já estava pago do financiamento e
quanto
faltava pagar. Se já tivessem sido pagos 150 mil, faltando 50, desses
50
caberiam 25 ao Flávio, e 25 à esposa. Sem problema.
Mas está muito fácil para ser
verdade, afinal, divórcios são
complicados. Neste caso em análise, os problemas surgiram quanto às benfeitorias. O bom advogado que ela
arrumou
resolveu bater em cima dessa tecla. Na casa que os dois resolveram
morar foi
posta até uma privada que tampava-se sozinha e silenciosamente; além de
que a
mulher resolveu tomar parte de um armário e, com um leve investimento
de cerca
de R$ 10 mil, construiu uma sapateira, para confortável e luxuosamente
acomodar
os sapatos de ambos. Havia uns cem pares naquela sapateira; dois deles
do
professor.
A tese do advogado dela é que o
professor deveria ter
colocado no registro do imóvel que parte do apartamento teria sido
oriunda de
recursos próprios dele. E o pior: ele achou isso maravilhoso,
porque
havia só um precedente. Desesperadamente, o professor fez pesquisa
jurisprudencial, e achou mais de 500 decisões, 499 em favor dele. O que
prevaleceu, entretanto, foi que, primeiro, o professor provou a
sub-rogação, e
juntou aos autos desde a certidão do primeiro casamento, feito no
regime da
comunhão universal, o acordo de separação, em que estavam incluídos os
10%, o
atestado de óbito da ex-esposa, a partilha dos bens, os e-mails
trocados com os
filhos em que se asseguravam os 10%, os avisos de depósitos, a
declaração do
banco em relação à aplicação, as cópias das declarações do IR, e a
declaração
do banco em relação à retirada do dinheiro daqueles 10%, e o cheque em
que foi
pago o apartamento. Assim ele deixou de levar a pior.
No registro de imóveis ou no contrato
de compra e venda ²,
incluiu-se a entrada de R$ 100 mil, através do cheque número tal, do
banco tal.
Tudo batia. Segundo, a lei não estabelece a obrigatoriedade. Uma
decisão
judicial não pode estabelecer uma restrição, um empecilho, um obstáculo
que a lei
não criou. Seria ver o Judiciário legislando. Nem a lei do regime de
bens
(Código Civil) nem a Lei 6015, dos registros públicos criaram tal
restrição.
Esse é o regime da comunhão parcial.
Dentro disso tudo que o professor
acabou de falar, quando
estivermos diante de uma partilha de bens ao final de um casamento
celebrado no
regime da comunhão parcial de bens, lembrem-se daquelas duas regrinhas
de Silvio
e Clovis. Elas ajudarão muito.
Isso também servirá para o Direito
das Sucessões. Lá
veremos, independente do regime, quais os direitos do cônjuge
sobrevivente, e
quais os direitos dos filhos. A viúva participa da divisão dos bens? Há
várias
correntes para resolver isso. A mesma coisa na partilha.
Continuando: excluem-se da comunhão
parcial:
Art. 1659. Excluem-se da comunhão: I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares; III - as obrigações anteriores ao casamento; IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal; V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge; VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes. |
Já falamos dos dois primeiros
incisos. Doação, sucessão ou
sub-rogados em seu lugar.
Inciso III: as obrigações anteriores
ao casamento não são
comunicáveis.
Inciso IV: é óbvio que o proveito do
tráfico de
entorpecentes praticado pelo marido estará incluído na comunhão.
Inciso V: quando temos um casamento
celebrado no regime da comunhão
parcial em vias de término, antes de começar um processo de separação
ou
divórcio, pedimos a separação de corpos. Nesse momento o juiz autoriza
a saída
do lar conjugal levando-se os bens de uso pessoal. A interpretação
neste caso é
restritiva. São os bens usados: roupas, sapatos, aparelhos de
higiene...
Admite-se levar uma televisão se há duas, uma geladeira se há duas...
Enfim,
para que se possa instalar. Livros: profissionais, que são mais fáceis
de
determinar de quem são. Instrumentos de profissão: se um dos dois é
médico e
carrega um desfibrilador, ele terá direito de levá-lo. Tapetes e
quadros não, a
não ser que o cônjuge que está saindo do lar seja pintor ou marchand!
Inciso VI: sempre dá confusão. Será
que se exclui da
comunhão o salário recebido por cada cônjuge? Em nosso tempo, é
evidente que
não. Mas temos a interpretação dada pelo Poder Judiciário com relação a
esse
provento recebido. Temos salário e honorários advocatícios para usar
como
exemplo, mas peguemos o salário, que é mais fácil de ser imaginado.
Flávio
assina um contrato com o CEUB para receber a módica quantia de R$ 80
mil por
mês. Portanto e óbvio, ele recebe a cada 30 dias. No momento em que o
CEUB lhe
deposita, o dinheiro vai ao patrimônio comum que tem com sua consorte.
Enquanto
Flávio está trabalhando, portanto na fluência do período aquisitivo do
salário,
este é intocável. Antes do depósito, o salário é intocável. Digamos,
então, que
o professor se separe no dia 25 do mês. Como o salário ainda não
entrou, ele é
intocável, isto é, não entra na comunhão. Se ele se separar no dia 10,
sabendo
que o salário caiu em sua conta no dia 5, o advogado de sua ex
certamente irá
pedir o bloqueio de metade desse valor.
Uma discussão que se tem é se os
acertos trabalhistas,
recebidos numa eventual resilição desse contrato de trabalho, são
partilháveis?
Sim. O que não se partilha é FGTS. Isso porque o Fundo de Garantia do
Tempo de
Serviço tem por característica não poder ser tocado. Ele é tirado de um
percentual do salário antes de ser
depositado.
E outra parte é colocada pelo empregador, que também nada tem com a
vida do
empregado. Reparem que não foi “contaminado”, não foi “comunizado”, não
virou
patrimônio comum. Ficou literalmente só do empregado, por isso não é
partilhado. É aqui que temos, na jurisprudência, essa diferenciação.
Inciso VII: previdência e rendimentos
de militares.
Vamos adiante.
Art. 1660. Entram na comunhão: I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior; III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges; IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge; V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. |
Inciso II: loteria, por exemplo. Em
Minas Gerais, um casal
do interior, de uma cidade de médio porte se separava, consensualmente,
quando
que, no meio do processo de separação, o sujeito ganha na Mega Sena.
Resolveu
ir a outra cidade receber. Trocou de carro, e alguém percebeu.
Mas
sem
problemas. Outros meses se passaram e outro carro aparece. A
curiosidade falou
mais alto. A mulher comunicou ao juiz durante os 90 dias que o sujeito
tinha
para ir à Caixa receber o prêmio.
Outra vez entrou no escritório do
professor uma senhora humilde
que vivia de um
quiosque montado à beira da via EPTG. Analfabeta, assinava somente o
nome. Em
2005, ela ganhou R$ 15 milhões na Mega Sena. Já contamos antes o caso
dela, em
que dificilmente alguém ficaria sem saber. Seu “amigo”, com quem tivera
algumas
relações sexuais, juntamente com o filho deste, ajuizaram ação de
reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com
partilha de bens. Felizmente o
interesseiro não
logrou êxito.
Inciso III: em favor de ambos
os cônjuges.
Inciso IV: este inciso também está
contido no conceito de
Beviláqua.
Inciso V: aqui entra a definição de
frutos. A pergunta é:
aluguel é fruto? Sim, é fruto civil. É uma solução que passa novamente
pelo
Direito das Coisas. Os frutos podem ser naturais, industriais ou civis.
Aqui
entram na comunhão os frutos civis e os naturais. Não entram,
entretanto, os frutos
a receber!
Vamos ler mais três artigos.
Art. 1661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição
tiver por título uma causa anterior ao casamento. Art. 1662. No regime da comunhão parcial, presumem-se adquiridos na constância do casamento os bens móveis, quando não se provar que o foram em data anterior. Art. 1663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges. § 1º As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido. § 2º A anuência de ambos os cônjuges é necessária para os atos, a título gratuito, que impliquem cessão do uso ou gozo dos bens comuns. § 3º Em caso de malversação dos bens, o juiz poderá atribuir a administração a apenas um dos cônjuges. |