Direito Civil

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O regime da comunhão parcial


Vamos continuar o tema do regime de bens. Falamos ontem sobre a comunhão universal. Terminarmos com a leitura das exceções, ou seja, os bens, direitos e obrigações que não entram na comunhão.

Com a Lei do Divórcio de 77, ficou estabelecido que o regime legal seria, a partir dali, o regime da comunhão parcial de bens. O regime da comunhão parcial está disciplinado a partir do art. 1658 do Código Civil...

CAPÍTULO III

Do Regime de Comunhão Parcial

Art. 1658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.

Quando falávamos da comunhão universal, falávamos em um só patrimônio, e que os cônjuges eram considerados meeiros desse patrimônio. Tudo ingressava para o patrimônio comum: os bens presentes e futuros. O que o noivo tinha no momento do casamento e o que viesse a ser conquistado durante o casamento. E tudo se comunicaria. Não se saberia mais o que era do marido e o que era da esposa. Essa é a síntese do regime da comunhão universal.

Na comunhão parcial, temos a convivência de patrimônios. Temos o patrimônio próprio, particular do marido, o patrimônio próprio ou particular da esposa, e o patrimônio comum em que eles são considerados meeiros. Neste, da mesma forma como na comunhão universal, os bens se comunicam. Reparem portanto que, se antes de se casar o sujeito tinha um automóvel, o automóvel continuará sendo dele. Se ela tinha uma casa, a casa é dela. Se ela tinha ações da Souza Cruz, as ações serão dela, e não se misturarão ao patrimônio do marido. Entretanto, se compraram uma mansão depois do casamento, a mansão é dos dois.

Notem que os patrimônios não podem brigar entre si. Eles convivem, e a convivência deveria ser, ao menos teoricamente, pacífica. Mas nós, seres humanos, gostamos de complicar as coisas, dando interpretações pessoais sobre os bens que temos. Por isso e outras coisas as Varas de Família são tão conturbadas.

Podemos entender o regime da comunhão parcial a partir de dois conceitos. Da experiência do professor, ele nos diz que, sempre que analisa o problema da partilha de bens na comunhão parcial, ele relê esses dois conceitos e 90% dos problemas são resolvidos com essa simples releitura. Os outros 10% são resolvidos na emoção entre cônjuges.

Os dois conceitos são os seguintes:

  1. Os bens adquiridos a título oneroso pelos cônjuges;
  2. As benfeitorias;
  3. Os bens doados ou deixados a ambos os cônjuges.

E exclui os bens:

  1. Possuídos ao casar,
  2. Adquiridos a título gratuito e
  3. Os sub-rogados.

O regime da comunhão parcial é também chamado de regime da comunhão dos aquestos. É a palavra que designa os bens adquiridos pelo casal de forma onerosa. Os dois conceitos se completam. Incluem-se os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso. Incluem-se também no patrimônio comum as benfeitorias e os bens doados ou deixados a ambos os cônjuges. Dentre os bens adquiridos por causa anterior ou alheia ao casamento temos, como exemplo, herança e doação. Dentre os bens adquiridos a título gratuito temos, dentro do conceito de Clóvis Beviláqua, além da doação e a herança, os bens sub-rogados.

Assim poderemos encaminhar quase qualquer questão relacionada à comunhão parcial. O professor se casou no regime da comunhão universal de bens e, no momento do casamento, ele tinha um Fusca e mais nada. Sua mulher é de uma família cristã católica e milionária. Os pais dela faleceram um dia. Recebeu, por causa anterior e alheia ao casamento, a herança, a título gratuito, e não havia cláusula que incluísse o marido (o professor) nesse patrimônio. Quando a herança entra no patrimônio dela, se não houver cláusula de incomunicabilidade, toda a herança se comunicará a ele, cônjuge. Mas, se o professor fosse casado em comunhão parcial, a herança ficaria somente para sua mulher.

Os bens excluídos dos aquestos são os bens adquiridos com os valores recebidos pela cessão de outro bem do patrimônio particular de um dos cônjuges. O bem adquirido não pode sair do patrimônio particular. Considere a existência de um terreno dentre o patrimônio pessoal do marido antes do casamento. Ele vende esse terreno por R$ 200 mil, e aplica o dinheiro. Depois de um tempo, ele toma o dinheiro resultante dessa aplicação e adquire um apartamento, que posteriormente é vendido por R$ 1 milhão, dinheiro que também é usado numa aplicação. Depois disso, ele compra uma mansão por R$ 1,2 milhão. Até agora, desapareceu a aplicação derivada do terreno mais o apartamento e surge a mansão. Isso é sub-rogação. Existe uma relação de causa e efeito com o que havia e com o que há.

Agora considere que a mansão custou não 1,2, mas 1,5 milhão, e foi adquirida na constância do casamento. Os 1,2 milhão o rapaz já possuía desde antes. Desse valor de R$ 1,5 pago na mansão, 0,3 milhão serão do patrimônio comum. Prestações pagas antes são do patrimônio particular; prestações pagas durante o casamento vão ao patrimônio comum. Reparem que temos, aqui, a maneira pela qual vamos fazer essa divisão.

A mulher, entretanto, tinha um terreno antes do casamento. Depois do casamento ela construiu uma casa nele. O terreno é dela, e a casa é benfeitoria. A benfeitoria integrará o patrimônio comum, pois obtida presumidamente com o esforço comum (essa presunção é absoluta, juris et de jure).¹ E se ela tiver vendido a casa, evidentemente com o terreno, e comprado dois lotes? O que se deverá fazer é apurar o valor do terreno, que ficará com ela. O valor da casa será patrimônio comum.

Não percam documentos! Inclusive é bom fazer um inventário dos bens no pacto antenupcial, se houver. Como na comunhão parcial não se exige, é bom fazer mesmo assim!

Com essas regrinhas, resolvem-se todos os problemas da comunhão parcial.

O professor disse que, no primeiro casamento dele, ele saiu com um automóvel Vectra e R$ 20 mil. Eles tinham uma advogada comum. Ao separar, constituíram advogados separados. A advogada dele não aceitou tão pouco. Foi estabelecida então uma cláusula em que, se a mulher vendesse os bens, ela teria que dá-lo 10% do que fosse apurado na venda. Feito o acordo de separação com os 10%, a mulher dele infelizmente faleceu de câncer. Eles já estavam divorciados. Os únicos herdeiros eram os dois filhos, que receberam o patrimônio, e resolveram honrar os 10%. Disseram: “pai, não queremos café e gado. Vamos vender tudo e apuraremos o valor, respeitando teus 10%.” Essa decisão foi objeto de conversa, de troca de e-mails, depósitos bancários, tudo por acaso. Esse dinheiro, correspondente a 10% dos valores das vendas, foi integrado ao Vectra e aos 20 mil reais que já existiam.

Cada valor recebido era incluído na declaração de Imposto de Renda.

E a vida segue. Professor eventualmente começou a namorar outra vez, ficou noivo, mas agora os tempos eram outros, e o regime que escolheu com sua segunda mulher no casamento vindouro era o da comunhão parcial. Depois do casamento, com sua nova noiva, que era recém-formada na Lei, um novo patrimônio começou a ser constituído. Esse patrimônio foi um automóvel e um apartamento. O apartamento veio das aplicações constituídas pelas “n” prestações de 10% do acordo anterior.

A fila não parou. Veio a separação, e não houve dúvida. O valor do automóvel foi divido meio a meio. Acabou ficando com ela. E o apartamento? Divide-se em duas porções: uma só do professor, e outra comum. Aquela parte caberia somente ao professor por conta da sub-rogação de bens anteriores ao presente casamento, que eram as prestações derivadas do acordo anterior.

Digamos que o apartamento tenha sido posteriormente vendido por R$ 300 mil. 100 caberiam ao Flávio, outros 200 caberiam a (Flávio + Esposa). Desses 200 mil, verificou-se quanto já estava pago do financiamento e quanto faltava pagar. Se já tivessem sido pagos 150 mil, faltando 50, desses 50 caberiam 25 ao Flávio, e 25 à esposa. Sem problema.

Mas está muito fácil para ser verdade, afinal, divórcios são complicados. Neste caso em análise, os problemas surgiram quanto às benfeitorias. O bom advogado que ela arrumou resolveu bater em cima dessa tecla. Na casa que os dois resolveram morar foi posta até uma privada que tampava-se sozinha e silenciosamente; além de que a mulher resolveu tomar parte de um armário e, com um leve investimento de cerca de R$ 10 mil, construiu uma sapateira, para confortável e luxuosamente acomodar os sapatos de ambos. Havia uns cem pares naquela sapateira; dois deles do professor.

A tese do advogado dela é que o professor deveria ter colocado no registro do imóvel que parte do apartamento teria sido oriunda de recursos próprios dele. E o pior: ele achou isso maravilhoso, porque havia só um precedente. Desesperadamente, o professor fez pesquisa jurisprudencial, e achou mais de 500 decisões, 499 em favor dele. O que prevaleceu, entretanto, foi que, primeiro, o professor provou a sub-rogação, e juntou aos autos desde a certidão do primeiro casamento, feito no regime da comunhão universal, o acordo de separação, em que estavam incluídos os 10%, o atestado de óbito da ex-esposa, a partilha dos bens, os e-mails trocados com os filhos em que se asseguravam os 10%, os avisos de depósitos, a declaração do banco em relação à aplicação, as cópias das declarações do IR, e a declaração do banco em relação à retirada do dinheiro daqueles 10%, e o cheque em que foi pago o apartamento. Assim ele deixou de levar a pior.

No registro de imóveis ou no contrato de compra e venda ², incluiu-se a entrada de R$ 100 mil, através do cheque número tal, do banco tal. Tudo batia. Segundo, a lei não estabelece a obrigatoriedade. Uma decisão judicial não pode estabelecer uma restrição, um empecilho, um obstáculo que a lei não criou. Seria ver o Judiciário legislando. Nem a lei do regime de bens (Código Civil) nem a Lei 6015, dos registros públicos criaram tal restrição.

Esse é o regime da comunhão parcial.

Dentro disso tudo que o professor acabou de falar, quando estivermos diante de uma partilha de bens ao final de um casamento celebrado no regime da comunhão parcial de bens, lembrem-se daquelas duas regrinhas de Silvio e Clovis. Elas ajudarão muito.

Isso também servirá para o Direito das Sucessões. Lá veremos, independente do regime, quais os direitos do cônjuge sobrevivente, e quais os direitos dos filhos. A viúva participa da divisão dos bens? Há várias correntes para resolver isso. A mesma coisa na partilha.

Continuando: excluem-se da comunhão parcial:

Art. 1659. Excluem-se da comunhão:

I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;

II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;

III - as obrigações anteriores ao casamento;

IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;

V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;

VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.

Já falamos dos dois primeiros incisos. Doação, sucessão ou sub-rogados em seu lugar.

Inciso III: as obrigações anteriores ao casamento não são comunicáveis.

Inciso IV: é óbvio que o proveito do tráfico de entorpecentes praticado pelo marido estará incluído na comunhão.

Inciso V: quando temos um casamento celebrado no regime da comunhão parcial em vias de término, antes de começar um processo de separação ou divórcio, pedimos a separação de corpos. Nesse momento o juiz autoriza a saída do lar conjugal levando-se os bens de uso pessoal. A interpretação neste caso é restritiva. São os bens usados: roupas, sapatos, aparelhos de higiene... Admite-se levar uma televisão se há duas, uma geladeira se há duas... Enfim, para que se possa instalar. Livros: profissionais, que são mais fáceis de determinar de quem são. Instrumentos de profissão: se um dos dois é médico e carrega um desfibrilador, ele terá direito de levá-lo. Tapetes e quadros não, a não ser que o cônjuge que está saindo do lar seja pintor ou marchand!

Inciso VI: sempre dá confusão. Será que se exclui da comunhão o salário recebido por cada cônjuge? Em nosso tempo, é evidente que não. Mas temos a interpretação dada pelo Poder Judiciário com relação a esse provento recebido. Temos salário e honorários advocatícios para usar como exemplo, mas peguemos o salário, que é mais fácil de ser imaginado. Flávio assina um contrato com o CEUB para receber a módica quantia de R$ 80 mil por mês. Portanto e óbvio, ele recebe a cada 30 dias. No momento em que o CEUB lhe deposita, o dinheiro vai ao patrimônio comum que tem com sua consorte. Enquanto Flávio está trabalhando, portanto na fluência do período aquisitivo do salário, este é intocável. Antes do depósito, o salário é intocável. Digamos, então, que o professor se separe no dia 25 do mês. Como o salário ainda não entrou, ele é intocável, isto é, não entra na comunhão. Se ele se separar no dia 10, sabendo que o salário caiu em sua conta no dia 5, o advogado de sua ex certamente irá pedir o bloqueio de metade desse valor.

Uma discussão que se tem é se os acertos trabalhistas, recebidos numa eventual resilição desse contrato de trabalho, são partilháveis? Sim. O que não se partilha é FGTS. Isso porque o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço tem por característica não poder ser tocado. Ele é tirado de um percentual do salário antes de ser depositado. E outra parte é colocada pelo empregador, que também nada tem com a vida do empregado. Reparem que não foi “contaminado”, não foi “comunizado”, não virou patrimônio comum. Ficou literalmente só do empregado, por isso não é partilhado. É aqui que temos, na jurisprudência, essa diferenciação.

Inciso VII: previdência e rendimentos de militares.

Vamos adiante.

Art. 1660. Entram na comunhão:

I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;

II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior;

III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;

IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;

V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.

Inciso I: vejam a adequação ao conceito de Beviláqua.

Inciso II: loteria, por exemplo. Em Minas Gerais, um casal do interior, de uma cidade de médio porte se separava, consensualmente, quando que, no meio do processo de separação, o sujeito ganha na Mega Sena. Resolveu ir a outra cidade receber. Trocou de carro, e alguém percebeu. Mas sem problemas. Outros meses se passaram e outro carro aparece. A curiosidade falou mais alto. A mulher comunicou ao juiz durante os 90 dias que o sujeito tinha para ir à Caixa receber o prêmio.

Outra vez entrou no escritório do professor uma senhora humilde que vivia de um quiosque montado à beira da via EPTG. Analfabeta, assinava somente o nome. Em 2005, ela ganhou R$ 15 milhões na Mega Sena. Já contamos antes o caso dela, em que dificilmente alguém ficaria sem saber. Seu “amigo”, com quem tivera algumas relações sexuais, juntamente com o filho deste, ajuizaram ação de reconhecimento e dissolução de união estável cumulada com partilha de bens. Felizmente o interesseiro não logrou êxito.

Inciso III: em favor de ambos os cônjuges.

Inciso IV: este inciso também está contido no conceito de Beviláqua.

Inciso V: aqui entra a definição de frutos. A pergunta é: aluguel é fruto? Sim, é fruto civil. É uma solução que passa novamente pelo Direito das Coisas. Os frutos podem ser naturais, industriais ou civis. Aqui entram na comunhão os frutos civis e os naturais. Não entram, entretanto, os frutos a receber!

Vamos ler mais três artigos.

Art. 1661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.

 
Art. 1662. No regime da comunhão parcial, presumem-se adquiridos na constância do casamento os bens móveis, quando não se provar que o foram em data anterior.
 

Art. 1663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges.

§ 1º As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido.

§ 2º A anuência de ambos os cônjuges é necessária para os atos, a título gratuito, que impliquem cessão do uso ou gozo dos bens comuns.

§ 3º Em caso de malversação dos bens, o juiz poderá atribuir a administração a apenas um dos cônjuges.

  1. Adicionei essa parte depois de ler trecho da obra de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald – Direito das Famílias, 3ª edição.
  2. O professor não se lembra exatamente em qual dos dois.