Direito Civil

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Características gerais do Direito de Família e um pouco de história

Ontem começamos a falar sobre o Direito de Família. Terminamos tocando no tema das três acepções de família. Falamos que a acepção ampla da família é a base do nosso curso. Quando falamos em família aqui em sala de aula, estamos fazendo referência ao tipo amplo.

Nesse contexto, o professor gostaria de ressaltar que aplicamos essas acepções na união estável, pois é também uma forma de família. Não temos mais a antiga família legítima e a família ilegítima, esta com filhos havidos com a concubina. De qualquer maneira, não podemos imaginar que, quando havia o conceito de família legítima e o de família ilegítima, que não se pudesse se casar. Essa questão de ilegitimidade, inclusive, era motivo de discriminação nas escolas, que muitas vezes não aceitavam filhos de pai desconhecidos. Os próprios meninos discriminavam o “bastardinho”.

A evolução brasileira do Direito de Família foi bem-vinda, acabando paulatinamente com essas situações de exclusão. Temos que entender a existência dessas situações que diferem daquele modelo de outrora.

Mas o Direito de Família não se compõe de situações efêmeras; uma relação efêmera não tem tempo para constituir família. Exige tempo, publicidade, continuidade, vontade consciente de se ter um núcleo familiar. Tudo isso tem que ser considerado. O professor nos coloca isso porque, dentro das possibilidades que temos de entender a família, temos a questão do namoro, do anel de compromisso. É uma passagem entre a relação efêmera e a duradoura. Não surge do dia para a noite.

Quando entendemos assim, podemos falar em família no sentido amplo. Novas expressões vão sendo, aos poucos, introduzidas nessas relações. Irmãos de namorados vão sendo chamados de cunhados aos poucos. Sogro é assim chamado ainda em namoro, hoje em dia.

Princípios fundamentais do Direito de Família

Temos três princípios que regem a família, que são fundamentais. São eles:

O princípio da ratio, traduzido, significa “princípio da razão”. A razão do casamento, da existência do casamento, o vetor que orienta a convivência familiar. A ratio, portanto, é o princípio da affectio ou da afeição, ou afetividade.

Antes, falava-se que, para que se tivesse família, devia-se haver afeição entre homem e mulher. Com a Constituição de 1988, institucionalizou-se a união estável, que é uma forma de família sem casamento. Essa união existe porque os consortes querem que exista a família. O casamento, com toda essa projeção de que ele se deve pautar pelo amor, em tese é, no primeiro momento, norteado pelo amor mesmo. Mas, a partir daí, quando terminasse a afeição, os cônjuges tinham que continuar vinculados. Quando falamos em vinculados, e isso é algo que nos seguirá o curso inteiro, imaginamos um homem e uma mulher, que resolvem se casar. A relação, depois, se tornará uma sociedade conjugal. O que for construído por eles será da sociedade. O vínculo que se cria entre eles chama-se vínculo matrimonial. Esse modelo é o Cristão-Católico. O que acontece? O sacerdote, que preside a cerimonia de casamento, e que afirma: “Em nome de Deus, declaro-os casados.” O que Deus uniu o homem não separa. Esse vínculo, inclusive, é um sacramento, por isso não pode ser desfeito, e por isso a Igreja Católica não aceita o divórcio, pois seria a acepção do vínculo criado por Deus.

No momento da celebração, o amor existia. A affectio é relativa; se o casal se ama a vida inteira, ótimo, fiquem casados pelo resto da vida! Mas, lamentavelmente, isso é a minoria. Além desse vínculo, os seres humanos constroem uma sociedade conjugal, composta de patrimônio e filhos. A própria Igreja, em sua milenar sabedoria, sabe que está lidando com seres falíveis, daí ela admite a separação de corpos, que, na esfera civil, chamou-se de “desquite”. Mas o vínculo não se desfaz! Para a Igreja Católica, somente a intervenção divina pode quebrá-lo: a morte ou a decretação eclesiástica terminativa do casamento.

Até que, em 1977, no Brasil, foi promulgada a Lei do Divórcio, permitindo o rompimento civil do vínculo e contrair novo casamento. Daqui vem nosso Direito. Aqui surge a substituição do padre pelo juiz de paz, e Deus pela lei. Agora a frase é: “em nome da lei, declaro-os casados.”

Menos de um ano atrás acabou o instituto da separação judicial, apontado como fonte de muito desgaste para casais que queriam se separar. Agora rompe-se o vínculo e a sociedade conjugal ao mesmo tempo.

Voltemos à affectio. Quando temos a possibilidade de terminar o vínculo conjugal, tem-se a possibilidade, desde já, de terminar o casamento. Finda a afetividade, pode-se findar também o vínculo matrimonial.

Agora temos a família sem casamento, que é a união estável. A união estável é fundamentalmente amor, afeição. Hoje tenho uma namorada, começo a frequentar a casa do meu sogro, e lá começo a dormir! Hoje isso já acontece. E daqui pode surgir uma união estável com minha namorada. O requisito é a afetividade. Finda a afeição, finda a união estável.

É interessante que a afeição está sendo colocada agora, neste exato momento, pois vamos ver vários casos em que o grande mote, o grande lema é “a afeição não distingue sexo”. Por que um homem não pode ter afeição por outro? É o que está se buscando hoje em dia. E é o requisito para justificar a criação da família. 

O segundo princípio é o da igualdade jurídica entre marido e mulher. A história da humanidade demonstra a prevalência masculina numa relação matrimonial. A própria Igreja é uma organização machista, pois a mulher não pode ascender na hierarquia da Igreja. De qualquer maneira, culturalmente, desde muitos séculos antes de Cristo o homem era o senhor da família. Aos poucos, a mulher foi assumindo sua condição aceita, sua condição de igualdade dentro da família. Essa luta começa especificamente com os direitos da concubina, a mulher que não era a esposa. A esposa não tem poder, mas tem a segurança do lar. A concubina não tinha nem poder nem segurança, pois não tinha nenhum direito. De repente começa a luta pelos direitos da concubina. Ela passou a ter direito a usar o nome do concubino. Somente a partir de 1977, com a Lei do Divórcio, foi permitido ao pai casado reconhecer o filho ilegítimo. Até esse ano o filho havido fora do casamento não poderia ser reconhecido porque o pai era casado. Passou a ser possível o reconhecimento em testamento cerrado. Isso só acabou com a Constituição de 1988, quando foi promovida a igualdade jurídica entre cônjuges.

Nessa mudança, a mulher era considerada relativamente incapaz, até 1962, com a mesma situação jurídica do índio, por exemplo. Ela precisava de assistência. Depois, com o Estatuto da Mulher Casada, ela foi alçada à condição de colaboradora do marido. O problema é que colaboradora é uma palavra de sentido ainda discriminatório. Já tinha a maioridade, mas ainda era inferior. Só com a Constituição temos a consagração da igualdade jurídica.

 

O terceiro princípio é o da igualdade jurídica entre os filhos. Antigamente havia os filhos naturais, os legítimos e os ilegítimos. Os naturais eram os filhos de pais não casados, mas que não se casavam por opção. Pais solteiros geravam o filho considerado “natural”. Quanto aos ilegítimos,  um dos pais era impedidos de se casar. Um casado, outro solteiro. O filho que daí adviesse seria considerado ilegítimo. E, por fim, os legítimos, que são os filhos resultantes do casamento. Isto tudo constava nos acertamentos da criança, e também nos relacionamentos das crianças com as outras. Filho ilegítimo era, de vez em quando, proibido de frequentar determinadas escolas. Com a Constituição de 1988, agora existe a vedação da discriminação entre filhos, qualquer que seja sua origem. Não pode haver discriminação entre irmãos. A Constituição assegura o reconhecimento dos filhos em qualquer circunstância. Filho é filho. Nada tem a ver com o estado civil dos pais. Nessa condição de filho, ele tem igualdade com seus irmãos. A Lei Maior foi inclusive além, colocando essa igualdade até mesmo nas relações incestuosas. A criança nascida do adultério não é responsável, portanto é juridicamente igual a todas as outras da família. Relação sexual entre mãe e filho, originando um filho-irmão, colocará no mundo uma criança em igualdade de condições jurídicas em relação aos outrora ditos “legítimos”.

Vemo-nos diante de situações criadas pelo ser humano, sempre, e sempre estamos diante de desafios jurídicos imensos, especialmente em relação às crianças que nada têm a ver com o ato que a gerou. A criança tem que ser protegida pelo Direito.

Há uns três ou quatro anos, o Correio Braziliense publicou uma série de reportagens falando dos vários aspectos da família de um pequeno lavrador cuja história era seríssima: ele morava num estado do Nordeste, e tinha uma pequena terra, com algumas cabeças de gado e poucas coisas a mais. Esse nordestino era casado e tinha bastantes filhos. Trabalhava na roça. A filha mais velha, todos os dias, às 10 da manhã, levava marmita para o pai comer no local de trabalho. Ela ficava e ajudava o pai na parte da tarde. Ela não trabalhava na casa com a mãe. Um dia, o pai resolveu tentar vir a Brasília. Conseguiu um quarto aqui, e, um dia, a filha mais velha resolve segui-lo e vir a Brasília, e foi morar com ele. A essa altura ela devia ter uns 16 anos. Iniciou-se um relacionamento sexual. Ela ficou grávida, e eles tiveram três ou quatro filhos. Vivem na maior felicidade, por incrível que pareça. A família que ficou no Nordeste recebia dinheiro mandado por eles.

Os filhos deles já estavam na escola, e a grande questão foi se as crianças sabiam dessa situação. Sabiam sim, e havia harmonia.

Pergunta-se: é uma situação para ser ignorada pelo Estado? Não, pois é uma família. A partir de 1988 todos são juridicamente iguais. É difícil o Poder Judiciário dizer, com base nos princípios da Constituição Federal resolver esse conflito, mas não tem muito para onde correr.

Esse é o princípio da igualdade jurídica. A igualdade tem que ser buscada em todas as situações, inclusive nas relações espúrias com os pais.

Esses são os princípios que presidem o Direito de Família.

O problema é determinar a natureza jurídica, as normas jurídicas do Direito de Família. As normas fazem do Direito de Família um Direito especial, diferenciado. Pela carga moral e ética envolvida, essa norma difere muito de uma compra e venda, da emissão de um cheque, que têm regras bem mais simples. O problema é a diferença de valores entre as pessoas, que pode levar a considerações diferentes sobre as relações familiares. A moral individual é diferenciada.

Não podemos esquecer isso. Por isso que, muitas vezes, e aí bate a crítica, que o legislador deveria estar à frente, e não na retaguarda, como no Brasil. Guarda compartilhada, por exemplo. Fazia um sucesso imenso nos países nórdicos. Depois foi para Inglaterra, para os Estados Unidos, e, então, para o Brasil. Hoje não é mais nem recomendada pelos próprios juízes. É que nossos valores, nossa moral, não comporta a ideia de guarda compartilhada. O ser humano brasileiro se separa ou divorcia, consensualmente, e iniciam o regime da guarda compartilhada. Quando o pai busca o filho na casa da mãe, aquele leva a namorada atual, o que provoca muito desconforto. E aí começam novas brigas. Esse problema não existe, pelo menos não nestas proporções, na Suécia ou Noruega. Ou então pai ir buscar o filho e ver o novo namorado da mãe do filho andando de cueca pela sala.

Há regras de Direito de Família que tem força cogente, e precede à vontade das partes. Daí o Juiz de Família tem poderes que outros não têm. Por exemplo, rever o valor da pensão alimentícia, cuja sentença que a fixa não transita em julgado.

Pode ter havido um recurso num processo de família que foi interposto intempestivamente. É rejeitado, claro, de ofício. Aí interpõe-se REsp perante o STJ alegando divergência de outros entendimentos. Pode-se arguir o poder especial que o juiz tem nessas circunstâncias. É melhor para os filhos e para a família, então a intempestividade ou a revelia são deixadas em segundo plano. Essas são as regras especiais do Direito de Família. São normas irrenunciáveis e intransferíveis. Ainda não foi possível a renúncia a uma norma de Direito de Família. Por isso, se alguém já viu um modelo de separação e partilha de bens, o cônjuge não pode renunciar alimentos, pois pode precisar deles a qualquer momento.

 

Três características do Direito de Família