Direito Civil

quarta-feira, 30 de março de 2011

Paternidade socioafetiva e impedimentos de afinidades

  

Frase de José Alencar (17/10/1931 – 29/03/2011): “o homem que perde a honra perde a vida. O homem que não perde a honra vive para sempre.” Foi com essa frase que o professor foi dormir ontem à noite e com ela acordou pela manhã de hoje.

As manchetes nos jornais de hoje não poderiam tratar de outro assunto, inclusive no jornalismo radiodifundido. Os comentaristas se apressaram em enaltecer detalhes da carreira empresarial e política do ex-Vice Presidente, e, como estamos na era da interatividade, os ouvintes também foram instados a se manifestar. Um deles, para surpresa geral, disse: “nós, brasileiros, temos a mania de dignificar políticos mortos, independentemente de quem tenham sido, de qual partido ou orientação política tenham seguido, e de que crimes cometeram. É o que fez, por exemplo, o sujeito que se lembrou da frase acima, dita pelo Vice-Presidente. Mas, se olharmos detalhes da sua vida pessoal, veremos que ele podia ter e ser tudo, menos honrado.

O jornalista, então, perguntou ao ouvinte do que ele estava falando. Disse que se tratou da ocasião em que José Alencar se recusara a realizar um exame de DNA que comprovaria a paternidade de sua filha Rosemary de Morais. “Quem se recusa a assumir a paternidade, ou mesmo a fazer o teste, não pode ser chamado de honrado” – completou o ouvinte.

E como fica a questão do teste de DNA? É uma indagação que apimenta a discussão do Direito de Família. Sabemos que o Direito de Família não é simplesmente regrado pela legislação positivada, mas por valores morais carregados por nossa sociedade.

Paternidade é o tema da aula de hoje. Mais especificamente a paternidade socioafetiva.
 

Impedimentos de afinidades

Começamos falando sobre os impedimentos na aula passada, e vimos que não podem casar o cônjuge com os parentes consanguíneos em primeiro grau em linha reta do ex-cônjuge. É o inciso II do art. 1521 do Código Civil.

CAPÍTULO III

Dos Impedimentos

Art. 1521. Não podem casar:

[...]

II - os afins em linha reta; [...]

O sujeito se separa, e tem vontade de casar com a sogra ou enteada. Não poderá nunca mais. Nem mesmo se o casamento for anulado ou tiver nulidade absoluta declarada. São parentes por afinidade em primeiro grau em linha reta. Mesmo que ele se divorcie ou a mulher venha a falecer, esse impedimento continuará. Casamento entre cunhados é possível, pois são colaterais.

Aqui, a pergunta que se faz sobre o parentesco consanguíneo por afinidade é: há impedimento que proíba o casamento entre um rapaz com uma mulher que é amante de seu pai? Não, eles podem sim se casar, pois não há nenhum vínculo de parentesco entre os dois. O que há é uma situação de fato, não de parentesco. O concubinato não entra nem no conceito amplo de família. A questão é colocar as coisas no ponto de vista moral, da paz doméstica e familiar. Esse casamento irá afetar as relações familiares. As normas de Direito de Família têm forte componente de ordem moral. O que se adotará é um posicionamento quanto à regra do Direito molhado de ética e moral. Neste caso então, não poderia haver o casamento. Orlando Gomes defende essa posição, além de Pontes de Miranda. A maioria dos autores, entretanto, defende que eles podem se casar.
 

Impedimento por adoção

Tomemos uma criança com sua família biológica. Essa família entrega a criança para adoção. Surge outra família e a adota, criando com ela um parentesco civil. O menino que foi adotado se posiciona exatamente como os outros filhos dentro da família adotante. Não há discriminação nenhuma entre filhos adotados e filhos biológicos, que compartilhem o sangue dos pais. O efeito legal dado por nosso ordenamento é que desaparecem todos os vínculos da criança recém-adotada com sua família biológica. Muda-se a partir da certidão de nascimento. Para fins sucessórios, por exemplo, isso será relevante. Não pode a criança buscar entrar na herança dos pais biológicos. Os pais adotantes têm a responsabilidade alimentícia, e a criança também terá, quando crescer, para com a família que a adotou.

Só não desaparece porque subsiste um impedimento: o casamento com a mãe ou irmã biológica.

Observação: a regra da proibição da prática de atos jurídicos eivados de condição, termo e encargo é absoluta. Antes de a família biológica entregar sua criança para adoção, ela ainda não praticou nenhum ato importante ao Direito de Família, muito menos fez nascer vínculos entre a criança que ela cogita entregar à adoção e a eventual família adotante. Por isso poderíamos imaginar que, nesse momento ainda, ela pudesse estabelecer um encargo. Por exemplo: “não entreguei a vocês meu filho ainda, e só o farei se vocês se comprometerem a matriculá-lo na Escola ABC das Crianças”. Essa é uma visão negocial, contratual do ato de entregar a criança à adoção. Seria temporalmente diferente de entregá-la, acompanhar de perto o crescimento da criança, notar que ela não está tendo boa educação e, nesse momento, tentar a mãe biológica intervir, interpelando a família adotante. É exatamente isso o que não pode, haja vista a quebra da relação com a família biológica, e consequente perda do poder familiar. Mas nem o estabelecimento prévio do encargo é permitido pois ele repercutiria na família adotante, gerando-lhe obrigações, portanto é um ato afeto ao Direito de Família.

Vamos além: há situações em que o juiz proibiu a mãe biológica de chegar perto da família adotante. De repente a mãe biológica pode ter uma crise de consciência e saudade. Ela começou a ter vontade de falar com o filho. Aí perguntamos: “é maldade! Como impedir que a mãe biológica tenha contato com seu próprio filho?” O desaparecimento é do ponto de vista jurídico apenas. Há o sangue, ainda. Mas, neste caso, o que se procura preservar mais uma vez é a paz doméstica. Temos uma criança que é inserida num contexto novo e, o que mais se precisa é incentivar essa integração, fazer com que realmente dê certo. E dificilmente dará certo se houver a mãe biológica presente.

O professor tem um conhecido com quatro filhos biológicos e uma adotada. É filha de uma passadeira que não tinha condições de sobrevivência e que, quando a menina era pequena, sua mãe ofereceu-a à família do sujeito. Aceitaram, mas desde logo disseram que seria uma adoção plena. A menina foi crescendo, com apoio afetivo dos irmãos, até que um dia, aproximadamente aos 12 anos, recebeu a notícia de que não era filha biológica. Foi um pequeno choque, mas a menina compreendeu. Só que, quando a primeira discordância ocorreu entre a mãe adotiva e a menina, em que aquela deu ordens a esta, não cumpridas, a menina jogou na cara que a mulher com quem discutia não era sua mãe e exigia voltar à casa de sua mãe biológica. A mãe adotiva concordou prontamente, e arrumou sua mala. A menina pediu para voltar dentro de uma semana.

Ontem o professor recebeu a parcela final de um processo de 2006. Naquele ano aparecera no escritório dele uma mulher, com seus filhos e primos. Ela era faxineira, tinha um quiosque de balas, faturava pouco, era separada depois divorciada, vivendo sozinha com os filhos; de vez em quando arrumava um namorado, que na maioria das vezes bebia. O tempo passou e, em 2001, ela, que jogava um único joguinho na Mega Sena, ganhou 15 milhões de reais sozinha. Coincidentemente nessa hora o namorado apareceu. Ajuizou ação de reconhecimento de união estável, dissolução e partilha dos bens.

Esses são os impedimentos por adoção.
 

Impedimentos por vínculo

Nosso Código Civil, no art. 1521, arrola as pessoas já casadas como impedidas de casar.

Art. 1521. Não podem casar:

[...]

VI - as pessoas casadas;

Se o sujeito se casar uma vez no civil e dez vezes no religioso, não haverá problema para o Direito. O que não pode ocorrer é a recíproca.

Há alguns anos havia a questão do impedimento por vínculo, que decorre do caráter monogâmico de nosso casamento. Desde as antiguidades, o mundo ocidental cristão optou pela monogamia no casamento. Os gregos e romanos eram monogâmicos. O Cristianismo que se instalou em Roma também. Um só homem, uma só mulher. Relações sexuais permitidas somente dentro do casamento que, de acordo com o conceito de Clóvis Beviláqua, legitima das relações sexuais. O impedimento por vínculo, então, simboliza a quebra do princípio da monogamia.

Isso no tempo passado, porque a quebra era considerada por duas maneiras: ou pelo surgimento de um amante, ou pelo novo casamento com uma pessoa já casada. Aos poucos o adultério foi perdendo esse conceito de quebra da monogamia e deixando de ser crime, até que foi descriminalizado. Passou a ser considerado um problema na cabeça de cada um, de foro íntimo.

Pessoas casadas casarem é crime de bigamia. Já tocamos neste tema anteriormente em duas ocasiões. Primeiramente, quando tratamos da ausência, instituto que existe para fins patrimoniais. Depois falamos da justificação judicial na declaração da morte presumida, com suas consequências. Mas a bigamia ocorre, e isso significa que não pode existir um segundo casamento de pessoa ainda casada. O crime de bigamia é apenado com reclusão de 2 a 6 anos.

Bigamia

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

Depois temos, no art. 1521, inciso VII, que não podem se casar...

...o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Primeira coisa a se chamar atenção aqui é o crime de homicídio, e não de outra natureza. E basta a tentativa. E mais, deve haver condenação. Esse impedimento posto pelo legislador teve aqui mais uma vez a ideia de preservar a paz doméstica. Na realidade não existe nenhum impedimento ou ético que impeça a viúva de casar com o sujeito que tentou matar seu marido. Mas imagine a criança ter que conviver com o homem que matou seu pai.

Observação: não se fala em homicídio culposo aqui.

Nisso, o impedimento permanecerá mesmo que o sujeito tenha cumprido a pena. Não existe a ideia de que, pagando pelo crime, ele não pode mais ser “apenado em sentido amplo”, para com a sociedade. O impedimento continuará. E continuará mesmo que o criminoso seja perdoado.

Situações ocorrem, entretanto. Por exemplo, há um sujeito que mata por crime doloso o marido de uma mulher de quem gosta, é preso, passa dois anos, e a viúva aprende o que é perdão. Resolve visitá-lo na prisão, trocam cartas, criam laços e ela resolve esperar ansiosa pelo dia em que o assassino é posto em liberdade. Mas não poderá haver nem união estável, muito menos casamento entre eles. Se houver, será nulo.

Notem o art. 1522:

Art. 1522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer pessoa capaz.

Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo.

Ministério Público inclusive. Basta levantar a mão. Se o impedimento não for oposto até o momento da celebração do casamento, ele continuará existindo. Poderá ser suscitado depois, em qualquer tempo, mas deixará de ser impedimento, se tornando hipótese de nulidade absoluta do casamento.

Depois temos os impedimentos dirimentes privados, que levam ao casamento anulável.

Art. 1550. É anulável o casamento:

I - de quem não completou a idade mínima para casar;

II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;

III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;

IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;

V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;

VI - por incompetência da autoridade celebrante.

Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente decretada.

Aqui falamos em casamento celebrado com vício na vontade dos noivos.

Inciso II: sem autorização, o juiz pode supri-la.

Inciso III: o vício de vontade propriamente dito.

Art. 1556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.

Art. 1557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;

II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal;

III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;

IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.

Art. 1558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares.

Erro essencial sobre a pessoa do cônjuge. Conta a partir do momento em que o(a) noivo(a) sabe da existência daquela situação. Se sabia antes casamento e mesmo assim se casou, então não há vício e o casamento se realiza. Se, no entanto, o noivo tomou conhecimento do vício depois de realizar o casamento, ou ele se silencia e se adapta e o casamento se convalesce, prescrevendo o direito de arguir aquele vício, ou o conhecimento do vício torna a vida insuportável, o que pode ser causa de anulação.

Se a mulher souber que seu noivo está com HIV, ela poderá se adaptar, caso queira, redobrando os cuidados, ou, caso não se sinta bem, poderá pedir a anulação. Prescreve o direito de arguir, lembrem-se. Prazos prescricionais veremos depois.

Honra: atingimento da pessoa individualmente considerada. Boa fama: a situação em que, dentro do núcleo social em que vivem, a fama do marido já extravasou os limites das quatro paredes do casal, então é uma situação social que não pode ser ignorada.

Temos uma moça que se casou com um bom rapaz, e descobre depois que o marido é rei do tráfico. Se ela conhecesse essa situação, ela poderia não se casar. Se se casou e descobriu depois, ela poderá pedir a anulação do casamento, se ela, realmente, achar que não deve continuar casada. Mas poderá se confortar em relação à situação, especialmente por conta dos bônus da atividade do marido. Pode ser que, ao mesmo tempo, o marido, traficante, descubra que a mulher é a rainha do prostibulo. Também poderá pedir anulação a partir do momento em que tomar conhecimento, sem nenhum problema.

Isso tudo para efeito de anulação do casamento. O divórcio pode ser pedido a qualquer momento.

Inciso II: qualquer crime que tornar insuportável a vida a dois. A moça sabe que, depois do casamento, o marido praticou pedofilia, o que é, na verdade, o crime de estupro de vulnerável. Ela não pode conviver com um pedófilo. Mas há crimes e crimes e ela pode, por exemplo, descobrir que o marido está sendo processado por sonegação fiscal. Lamentavelmente está na cultura brasileira o esporte da sonegação, e diferentemente veremos alguém pedir anulação do casamento por causa de sonegação praticada pelo cônjuge.

Concluindo temos ignorância de defeito físico anterior ao casamento. É o caso da AIDS, por exemplo.

Hoje, com os avanços da medicina, é difícil ter um defeito físico irremediável.