Filosofia do Direito

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A Vontade Geral de Rousseau

“Ensinar é um privilégio, porque se interfere no destino das pessoas. Não se pode ocupar a cátedra para acertar as próprias contas com a vida.” – Professor Rossini Corrêa


Na aula que vem vamos falar em Revolução Francesa na Filosofia do Direito.

Vamos conversar hoje sobre um dos pontos de maior sensibilidade de Jean-Jacques Rousseau. Se perguntarmos onde está a essência do pensamento de Rousseau ela está aqui. Rousseau tem um determinado objeto finalístico em seu pensamento que vamos colocar à mesa ao final deste assunto, amanhã.

Devemos, no entanto, dizer antes de tudo, dizer que o conceito centralíssimo da Filosofia jurídico política de Rousseau reside na ideia de vontade geral. É um conceito que tem um quê de enigmático, intraduzível e de definitivo. A primeira coisa que Rousseau faz é dizer que a vontade geral diverge da vontade de todos. São coisas diferentes. Vontade geral é vontade majoritária. Vontade de todos é o que funda a ideia de totalidade, e se acontecesse estaria caminhando para o totalitarismo. A ideia de vontade de todos foram sociedades autoritárias, concentracionárias, em que uma parte avocou para si o direito de dizer a vontade de todos. São sociedades tirânicas. Fascismo: tudo pelo Estado, tudo para o Estado. Assim estaria representada a vontade total da sociedade. Essa foi a ordem jurídico-política criada por Mussolini. Não reservou ao cidadão nenhuma vontade. O mesmo para o comunismo.

Não é, a rigor, isso que Rousseau quer. Rousseau fala em volonté générale, que é a vontade de um núcleo majoritário da sociedade, que, numa relação de Estado e sociedade, que é desenhada dessa natureza, o Estado é verticalmente superior à sociedade; esse núcleo proposto por Rousseau pretende subverter essa pirâmide e dizer que, na verdade, esta relação faz da sociedade o ente superior e o Estado o ente inferior. E o indivíduo? Rousseau raciocina geométrica e aritmeticamente onde? A vontade geral não se confunde com vontade total; o indivíduo é integrante da vontade geral, e Rousseau tem uma fórmula que tem um quê de esotérica, enunciada da seguinte forma: “o indivíduo dissolve toda sua vontade para formação e integração da vontade geral, e sai da vontade geral individualmente mais fortificado que nunca. Aqui está a vontade geral, fortifico-a, e, quando me ausento dela, estou recuperado como indivíduo, fortificado pela energia que o coletivo despejou em mim.” É uma relação dialética de retro-alimentação. De tal sorte que Rousseau irá centrar uma questão definitiva para dizer da justeza do ordenamento jurídico em torno do indivíduo. Rousseau diz que o indivíduo só deve obedecer às leis que ele mesmo autorizou, desde a confecção até a efetivação. O indivíduo é juiz da ordem jurídica, que só deve se submeter às leis que ele mesmo autorizou, participando da produção, reconhecendo a legitimidade, introjetando-se no exercício da ética do consentimento.

O que Rousseau faz, acredita-se, é arquitetar o que viria a ser a democracia moderna. Tanto que na segunda metade do século XX emerge a agenda da democracia participativa. É uma reconceitualização da democracia. O argumento é puramente rousseauniano. É a devolução de poderes ao gerador do poder. Quem deve exercê-lo é a sociedade civil. Como se evidencia isso? Decidindo, de maneira participativa, sobre matéria orçamentária, interferindo ativamente na eleição das políticas públicas prioritárias, conferindo à sociedade organizada o poder de também dizer o Direito, e assim por diante. A sociedade se organiza e, de maneira organizada, coexerce todos os poderes e os controla. A questão crucial de Rousseau é o controle do poder pela sociedade civil organizada. Só assim a sociedade seria organizada.

De toda forma, a casta que controlar o poder irá imprimir sua vontade em detrimento da vontade geral. Por isso que se diz que a sociedade civil organizada deve desconfiar permanentemente do poder do Estado. É absolutamente intemporal essa regra: quando for possível, o poder do Estado trairá. Sem controle, restabelecerá sua própria vontade como substitutivo da sociedade civil organizada. Podemos ter uma sociedade absolutamente pacifista, fundar um momento de poder com a ética do consentimento da sociedade, mas se a ela estiver desorganizada, a casta política poderá conduzir essa sociedade a uma situação de guerra completamente divergente para com sua vontade. Onde a democracia avançou o Estado é controlado pela sociedade. Há controle social sobre o poder do Estado. Contas públicas, por exemplo. Nada de verbas e atos secretos; tudo isso são formas de fraudar a sociedade civil organizada. Imagine uma gestão institucional de um dos poderes da República com atos secretos: isso vai contra toda a ideia mais elementar de Direito da sociedade.

Vontade geral é meio de realização. Não basta proclamar, devem-se efetivar direitos. Existe uma consciência moral que elege objetos finalísticos como representativos soberanos maiores, supremos da própria existência da ordem jurídica e política. A ordem jurídica e política existem para que e para quem? Para cumprir uma agenda de consciência moral que promova a vida. O que promove a vida é aquilo que pode se considerar o interesse comum da sociedade. O que promove a vida representa o interesse comum da sociedade. Como isso? um novo contrato social. Ele insurge contra o contrato social estabelecido de uma perspectiva única, que o professor vai falar depois.

Como se relaciona com esse novo contrato social? Vamos na aula de amanhã.

Vejamos os atributos da vontade geral.

A vontade geral é indivisível. Significa que Rousseau rasga com a divisão do poder de Montesquieu. O poder é uno, e o que existe é uma simples divisão do trabalho. Existe uma unidade institucional. Não há poderes, mas poder. Diverge da ideia da existência de cinco poderes, de Benjamin Constant; de três com Montesquieu e dois com Locke. Por isso chama a vontade geral de indivisível.

A vontade geral também é inflexível, porque Rousseau compreende o jogo político e a onda de pressão e contrapressão estabelecida na sociedade, de tendência e contratendência, de tempo e contratempo e considera que a vontade geral não pode ser concessiva, e não pode afirmar sua verdade hoje para amanhã não ser fiel a ela, ou para amanhã regatear contra sua verdade, para amanhã tergiversar para com ela. Crédula em si mesmo, a vontade geral deve ser constante quanto às suas postulações. Não deve se deixar flexibilizar a ponto de se tornar inconsistente, desautorizativa de si mesmo. Tem que ser vigorosa e não deve fazer concessões em torno do essencial.

Segundo Rousseau, outro atributo da vontade geral é que ela é infalível, porque o mundo é cercado pela dimensão teológica, e uma das coisas que virá depois de Rousseau e da Revolução Francesa é a ideia da infalibilidade papal. Tem no meio religioso, e lá se estabelece e renova o dogma da infalibidade papal. Rousseau reivindica que a vontade geral é infalível, e essa ideia em si mesmo é polêmica. A maioria, seja como expressão da vontade total ou da vontade geral, pode se enganar. Pode ser objeto de logro e engano. O fato de ser maioria não garante nem que o ambiente, por si só, seja democrático. Ou teríamos que dizer que o julgamento de Cristo foi democrático. E alguém lavou as mãos. Portanto, infalível, desde que não manipulada. Não pode estar a serviço de poderes espúrios. Essa reivindicação de Rousseau da infalibilidade da vontade geral é das mais polêmicas, mas ele quer criar uma referência, um paradigma que, entre 8 ou 80, escolhe 80. E, porque infalível, só pode ser verdadeira. A lógica formal funciona aqui.

Com este magma, núcleo fundamental, maneja sua visão de democracia social porque irá dizer que a vontade geral é a expressão do interesse comum. Por isso tem que fortificar esse conceito e fazer dele uma força movente de uma democracia, com poderes sociais agudos, dando o direito de controlar e direcionar o poder do Estado.

Como?

Povo, com um conceito recuperado agora com J.J. Gomes Canotilho: o povo político, que traduz os seus anseios mais profundos por meio da vontade geral, que é um repositório dos interesses comuns da sociedade. Os anseios do povo político desaguam nos interesses e fundam a soberania. A soberania é da sociedade, e não do Estado. Quem é o mandante, a sociedade ou o Estado? Para Rousseau, a sociedade. O outorgante também é a sociedade. Nisso consiste a diferença de Rousseau com todos os pensadores que o precederam. E o Estado mandado, e não mandante, é a maior mudança do argumento jurídico-político. Significa dizer que Rousseau quer passar de um modelo A para um modelo Z. instituir o modelo Z. Por isso soberano é a sociedade civil organizada e não o Estado.

Quem é o soberano? O povo político na sociedade civil organizada. É ele quem autoriza a autoridade, para controlá-la. A autoridade é da sociedade civil organizada. A autoridade da sociedade é nada mais que um comissariado do povo. O presidente é um comissário do povo, o legislador, o ministro. Significa “comissionado pelo”. Essa expressão, que é de Rousseau, foi recuperada por Vladmir Lenin na Revolução Russa. Transformou essa expressão de Rousseau em moeda corrente na realidade político-jurídica na Revolução de 1917.

Governo para Rousseau é um corpo dirigente intermediário que se define por comissário do povo. Tem finalidades a cumprir, quais sejam: a realização dos propósitos soberanos da vontade geral. Aí está a questão. Quais são os propósitos soberanos da vontade geral? Estabelecer aquele “mundo em que não haja ninguém tão rico que possa comprar um miserável e ninguém tão miserável que tenha que se vender a um potentado” Um mundo em que vai encerrar numa outra legenda, que é o dever de cada um: amar a justiça. O objeto jurídico é o primeiro a que Rousseau se reporta. Respeitar as leis, e imolar, se necessário, sua vida a seu dever. Essa é a legenda áurea de Rousseau. Esses são os deveres de cada um.

Então esse propósito soberano da vontade geral está encerrado nas ideias de justiça, leis e dever. E aqui Rousseau fala em amar, respeitar e imolar como as atitudes necessárias para a defesa desses signos maiores do novo contrato social.

Quando o novo contrato social se estabelece? Rousseau então tira uma carta da manga e diz: este contrato social é o que poderia ter sido feito se a burguesia fosse verdadeira e comprometida com seu discurso jurídico-político. Como não é, esse contrato é utópico, no sentido grego e filosófico da expressão. Significa dizer: é uma utopia, não tem lugar ainda no mundo concreto. Se o mundo se transfigurar, se os homens se santificarem, e por isso a questão religiosa é premente e presente em Rousseau, e se forem objeto de qualificação da consciência, progressivamente poder-se-á chegar perto deste mundo. Se, e somente se, eles se purificarem e justificarem, e tiverem mais próximos de uma nova atitude ética e moral diferenciada. Por isso ele diz: a legenda final de seu pensamento converge para uma legenda crística: “meu Reino não é deste mundo”. Não está no aqui e no agora. Pode ser feito como uma promessa que se encontra no dever e no progresso moral da humanidade.

Rousseau diz que esse novo contrato social, que não está feito ainda, precisará ser defendido, porque o filósofo compreende que o mundo é de embates entre privilégios e direitos. Cada novo direito que se estabelece é um velho privilégio que se elide, que se suprime, que se tira de circulação social. Então, para que se tenha o estabelecimento de um novo contrato social substantivamente comprometido com o mundo dos direitos, é preciso que o mundo dos antigos e dos novos privilégios seja vencido. Como os privilégios ameaçados reagem à emergência de novos direitos? Reagindo da maneira mais absurda, e, muitas vezes, recorrendo à barbárie para que novos direitos não se estabeleçam. Vejam no mundo atual o líder líbio Muammar Gaddafi, por exemplo. Representa o mundo dos privilégios na Líbia. 

Rousseau sabe da existência de pessoas apegadas aos privilégios. É preciso então que se estabeleça uma religião civil para defender o novo contrato social sob pena de ser consumido na voragem da reação dos antigos e dos novos privilégios contra o advento e afirmação do novo contrato social. O novo contrato social só permanecerá e se desenvolverá se houver a blindagem de uma religião civil, do cidadão, defendendo-o, protegendo-o para que não seja afinal destruído pelos antigos e novos privilégios. Por isso é necessário que se fomente o desenvolvimento e a afirmação aguda e substantiva de uma religião civil, que é consciência e atitude individual e coletiva em defesa da vontade geral, em defesa no novo contrato social. Defende Rousseau que cada cidadão seja defensor da nova ordem frente aos antigos privilégios. Afinal, a vontade geral orquestrar a si mesma como um instrumento de apoio e defesa ou será derrogado, elidido, revogado, para que sobrevivam os antigos e novos privilégios.

Por isso Rousseau aposta todas as fichas na formação dessa consciência moral e cívica que personifique a religião civil, e, assim, que se defenda afinal o novo contrato social, sob pena de seu desaparecimento.

No jogo entre privilégios e direitos, a maior possibilidade da sobrevivência de direitos reside na vigorosa afirmação de uma religião civil que realiza a blindagem do novo pacto social.

Se estabelecido, qual será o critério de verdade desse novo contrato social? Nisso Rousseau põe outra carta à mesa, que é puramente jurídica, que mostra o apreço que o Direito tem: o critério de verdade do novo contrato social, em sua afirmação, reprodução e desenvolvimento é promover uma transição de um mundo multimilenar em que os homens se colocaram acima da lei para um mundo novo em que a lei esteja colocada acima dos homens. Isso porque em todas as épocas da humanidade os homens pretenderam se colocar acima das leis. As leis são excelentes... para os outros. As ressalvas para transgressão, cada certeza de impunidade representa uma aspiração e uma evidência de que em todos os tempos a pretensão dos donos da vida foi a de se colocar acima das leis, e cumprirem o postulado romano, de que o rex, acima da lex, usa-a como instrumento de controle e punição do populus. Rousseau estabelece que o critério de verdade é aquele. Se se estabelecer um mundo em que os homens estejam efetivamente subordinados quanto à sua consciência e suas atividades às responsabilidades que derivam da lei, esse mundo será novo. Se, neste mundo, existirem aqueles que tenham porte para solapar leis, este mundo não será novo. A maior revolução da história da humanidade é uma ordem em que todos estejam subordinados à lei. Não haja mais aqueles que tornem sua vontade superior à vontade das leis.

Qual a vontade majoritária? Das leis, ou dos tradicionais ocupantes do poder? A das leis, que deve subordinar e disciplinar a todos, direcionando as pessoas, enfim, fazendo com que não haja margem para permissão para que alguns resistam com sua vontade acima das leis. Não é possível uma sociedade democrática com uma vocalização que diz: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.” Frase de Agamenon Magalhães, aliado de Getúlio Vargas. O poder tudo pode; se não pudesse, não seria poder, disse Agamenon. Lógica formal absolutamente falsa. Rousseau estabelece esta clivagem: se o mundo for novo, todos estarão com as vontades subordinadas à da lei. Se for uma reinvenção do arcaico, haverá promiscuidade entre pessoas e poder e alguns se colocarão acima das leis.

Rousseau diz que este mundo que propõe terá sua evidência quando os homens estiverem mais próximos de Deus. Quando avançarem em sua consciência moral, em sua purificação, e só então será possível. Por isso se aproxima da legenda crística: “meu Reino não é desde mundo”.

Por isso o pensamento iluminista está próximo: chegou ao rigor com o eclipse do Estado-nação soberano. A ascensão histórica de agora é a econômica-jurídica-política das comunidades de nações. O mundo iluminista encontrou seu fim aí.

A questão da Revolução Francesa é a que desafia a humanidade. Suas três bandeiras, liberdade, igualdade e fraternidade, foram fraudadas e a principal fraude se vinculou ao valor da fraternidade. O valor liberdade foi reduzido à liberdade de mercado; o de igualdade foi reduzido à igualdade formal e o de fraternidade foi totalmente esquecido. Por isso que a ideia de estabelecer uma nova agenda neste terceiro milênio para o mundo na esfera jurídica representa o desafio de fazer um mundo em que justiça e liberdade se encontrem, pois, no socialismo real, a liberdade morreu. No capitalismo selvagem, a justiça foi morta. O que se quer hoje é a terceira via, sob o signo maior da solidariedade. Isso tem tudo a ver com o argumento de Rousseau fundado na realização de uma consciência moral comprometida com a promoção da vida. Por isso que a agenda de Rousseau sobrevive. Rousseau foi ecologista, apólogo da democracia participativa, defendeu a liberdade, não a considerou discorde da igualdade, e também foi defensor da solidariedade. Por isso o sentido especial deste propósito:

  1. Amar a justiça,
  2. Respeitar leis, e
  3. Imolar, se necessário, sua vida em seu dever.

Eis a questão!