“Ensinar é um privilégio, porque se interfere no destino das pessoas. Não se pode ocupar a cátedra para acertar as próprias contas com a vida.” – Professor Rossini Corrêa
Na aula que vem vamos falar em Revolução Francesa na
Filosofia do Direito.
Vamos conversar hoje sobre um dos pontos de maior
sensibilidade de Jean-Jacques Rousseau. Se perguntarmos onde está a essência do
pensamento de Rousseau ela está aqui. Rousseau tem um determinado objeto
finalístico em seu pensamento que vamos colocar à mesa ao final deste assunto,
amanhã.
Devemos, no entanto, dizer antes de tudo, dizer que o
conceito centralíssimo da Filosofia jurídico política de Rousseau reside na
ideia de vontade geral. É um conceito que tem um quê de enigmático,
intraduzível e de definitivo. A primeira coisa que Rousseau faz é dizer que a vontade geral diverge da vontade de todos. São coisas diferentes.
Vontade geral é vontade majoritária. Vontade de todos é o que funda a ideia de
totalidade, e se acontecesse estaria caminhando para o totalitarismo. A ideia
de vontade de todos foram sociedades autoritárias, concentracionárias, em que
uma parte avocou para si o direito de dizer a vontade de todos. São sociedades
tirânicas. Fascismo: tudo pelo Estado, tudo para o Estado. Assim estaria
representada a vontade total da sociedade. Essa foi a ordem jurídico-política criada
por Mussolini. Não reservou ao cidadão nenhuma vontade. O mesmo para o
comunismo.
Não é, a rigor, isso que Rousseau quer. Rousseau fala em volonté générale, que é a vontade de um
núcleo majoritário da sociedade, que, numa relação de Estado e sociedade, que é
desenhada dessa natureza, o Estado é verticalmente superior à sociedade; esse
núcleo proposto por Rousseau pretende subverter essa pirâmide e dizer que, na
verdade, esta relação faz da sociedade o ente superior e o Estado o ente
inferior. E o indivíduo? Rousseau raciocina geométrica e aritmeticamente onde? A vontade geral não se confunde com vontade
total; o indivíduo é integrante da vontade geral, e Rousseau tem uma fórmula
que tem um quê de esotérica, enunciada da seguinte forma: “o indivíduo dissolve
toda sua vontade para formação e integração da vontade geral, e sai da vontade
geral individualmente mais fortificado que nunca. Aqui está a vontade geral,
fortifico-a, e, quando me ausento dela, estou recuperado como indivíduo,
fortificado pela energia que o coletivo despejou em mim.” É uma relação
dialética de retro-alimentação. De tal sorte que Rousseau irá centrar uma
questão definitiva para dizer da justeza do ordenamento jurídico em torno do
indivíduo. Rousseau diz que o indivíduo só deve obedecer às leis que ele mesmo
autorizou, desde a confecção até a efetivação. O indivíduo é juiz da ordem
jurídica, que só deve se submeter às leis que ele mesmo autorizou, participando
da produção, reconhecendo a legitimidade, introjetando-se no exercício da ética
do consentimento.
O que Rousseau faz, acredita-se, é arquitetar o que viria a
ser a democracia moderna. Tanto que na segunda metade do século XX emerge a
agenda da democracia participativa. É
uma reconceitualização da democracia. O argumento é puramente rousseauniano. É
a devolução de poderes ao gerador do poder. Quem deve exercê-lo é a sociedade
civil. Como se evidencia isso? Decidindo, de maneira participativa, sobre
matéria orçamentária, interferindo ativamente na eleição das políticas públicas
prioritárias, conferindo à sociedade organizada o poder de também dizer o
Direito, e assim por diante. A sociedade se organiza e, de maneira organizada,
coexerce todos os poderes e os controla. A questão crucial de Rousseau é o
controle do poder pela sociedade civil organizada. Só assim a sociedade seria
organizada.
De toda forma, a casta que controlar o poder irá imprimir
sua vontade em detrimento da vontade geral. Por isso que se diz que a sociedade
civil organizada deve desconfiar permanentemente do poder do Estado. É
absolutamente intemporal essa regra: quando for possível, o poder do Estado
trairá. Sem controle, restabelecerá sua própria vontade como substitutivo da
sociedade civil organizada. Podemos ter uma sociedade absolutamente pacifista,
fundar um momento de poder com a ética do consentimento da sociedade, mas se a
ela estiver desorganizada, a casta política poderá conduzir essa sociedade a
uma situação de guerra completamente divergente para com sua vontade. Onde a
democracia avançou o Estado é controlado pela sociedade. Há controle social
sobre o poder do Estado. Contas públicas, por exemplo. Nada de verbas e atos
secretos; tudo isso são formas de fraudar a sociedade civil organizada. Imagine
uma gestão institucional de um dos poderes da República com atos secretos: isso
vai contra toda a ideia mais elementar de Direito da sociedade.
Vontade geral é meio de realização. Não basta proclamar,
devem-se efetivar direitos. Existe uma consciência moral que elege objetos
finalísticos como representativos soberanos maiores, supremos da própria
existência da ordem jurídica e política. A ordem jurídica e política existem
para que e para quem? Para cumprir uma agenda de consciência moral que promova
a vida. O que promove a vida é aquilo que pode se considerar o interesse comum
da sociedade. O que promove a vida representa o interesse comum da sociedade. Como
isso? um novo contrato social. Ele insurge
contra o contrato social estabelecido de uma perspectiva única, que o professor
vai falar depois.
Como se relaciona com esse novo contrato social? Vamos na
aula de amanhã.
Vejamos os atributos da vontade geral.
A vontade geral é indivisível.
Significa que Rousseau rasga com a divisão do poder de Montesquieu. O poder é
uno, e o que existe é uma simples divisão do trabalho. Existe uma unidade
institucional. Não há poderes, mas poder. Diverge da ideia da existência de cinco poderes, de Benjamin Constant; de três com
Montesquieu e dois com Locke. Por isso chama a vontade geral
de indivisível.
A vontade geral também é inflexível, porque Rousseau compreende o jogo político e a onda de
pressão e contrapressão estabelecida na sociedade, de tendência e
contratendência, de tempo e contratempo e considera que a vontade geral não
pode ser concessiva, e não pode afirmar sua verdade hoje para amanhã não ser
fiel a ela, ou para amanhã regatear contra sua
verdade, para amanhã tergiversar para com ela. Crédula em si mesmo, a vontade
geral deve ser constante quanto às suas postulações. Não deve se deixar
flexibilizar a ponto de se tornar inconsistente, desautorizativa de si mesmo. Tem
que ser vigorosa e não deve fazer concessões em torno do essencial.
Segundo Rousseau, outro atributo da vontade geral é que ela
é infalível, porque o mundo é
cercado pela dimensão teológica, e uma das coisas que virá depois de Rousseau e
da Revolução Francesa é a ideia da infalibilidade
papal. Tem no meio religioso, e lá se estabelece e renova o dogma da
infalibidade papal. Rousseau reivindica que a vontade geral é infalível, e essa
ideia em si mesmo é polêmica. A maioria, seja como expressão da vontade total
ou da vontade geral, pode se enganar. Pode ser objeto de logro e engano. O fato
de ser maioria não garante nem que o ambiente, por si só, seja democrático. Ou teríamos que
dizer que o julgamento de Cristo foi democrático. E alguém lavou as mãos. Portanto,
infalível, desde que não manipulada. Não pode estar a serviço de poderes
espúrios. Essa reivindicação de Rousseau da infalibilidade da vontade geral é
das mais polêmicas, mas ele quer criar uma referência, um paradigma que, entre
8 ou 80, escolhe 80. E, porque infalível, só pode ser verdadeira. A lógica formal funciona aqui.
Com este magma, núcleo fundamental, maneja sua visão de
democracia social porque irá dizer que a vontade geral é a expressão do interesse comum. Por isso tem que
fortificar esse conceito e fazer dele uma força movente de uma democracia, com
poderes sociais agudos, dando o direito de controlar e direcionar o poder do
Estado.
Como?
Povo, com um conceito recuperado agora com J.J. Gomes
Canotilho: o povo político, que
traduz os seus anseios mais profundos por meio da vontade geral, que é um
repositório dos interesses comuns da sociedade. Os anseios do povo político
desaguam nos interesses e fundam a soberania. A soberania é da sociedade, e não
do Estado. Quem é o mandante, a sociedade ou o Estado? Para Rousseau, a sociedade.
O outorgante também é a sociedade. Nisso consiste a diferença de Rousseau com
todos os pensadores que o precederam. E o Estado mandado, e não mandante, é a
maior mudança do argumento jurídico-político. Significa dizer que Rousseau quer
passar de um modelo A para um modelo Z. instituir o modelo Z. Por isso soberano
é a sociedade civil organizada e não o Estado.
Quem é o soberano? O povo político na sociedade civil
organizada. É ele quem autoriza a autoridade, para controlá-la. A autoridade é da
sociedade civil organizada. A autoridade da sociedade é nada mais que um
comissariado do povo. O presidente é um comissário do povo, o legislador, o ministro.
Significa “comissionado pelo”. Essa expressão, que é de Rousseau, foi
recuperada por Vladmir Lenin na Revolução Russa. Transformou essa expressão de
Rousseau em moeda corrente na realidade político-jurídica na Revolução de 1917.
Governo para Rousseau é um corpo dirigente intermediário que
se define por comissário do povo. Tem finalidades a cumprir, quais sejam: a
realização dos propósitos soberanos da vontade geral. Aí está a questão. Quais
são os propósitos soberanos da vontade geral? Estabelecer aquele “mundo em que não haja ninguém tão rico que possa comprar um
miserável e ninguém tão miserável que tenha que se vender a um potentado” Um mundo em que vai encerrar numa outra legenda,
que é o dever de cada um: amar a justiça. O objeto jurídico é o primeiro a que
Rousseau se reporta. Respeitar as leis, e imolar, se necessário, sua vida a seu
dever. Essa é a legenda áurea de Rousseau. Esses são os deveres de cada um.
Então esse propósito soberano da vontade geral está
encerrado nas ideias de justiça, leis e dever. E aqui Rousseau fala em amar,
respeitar e imolar como as atitudes necessárias para a defesa desses signos
maiores do novo contrato social.
Quando o novo contrato social se estabelece? Rousseau então tira
uma carta da manga e diz: este contrato social é o que poderia ter sido feito se a
burguesia fosse verdadeira e comprometida com seu discurso jurídico-político.
Como não é, esse contrato é utópico, no sentido grego e filosófico da
expressão. Significa dizer: é uma utopia, não tem lugar ainda no mundo
concreto. Se o mundo se transfigurar, se os homens se santificarem, e por isso a
questão religiosa é premente e presente em Rousseau, e se forem objeto de
qualificação da consciência, progressivamente poder-se-á chegar perto deste
mundo. Se, e somente se, eles se purificarem e justificarem, e tiverem mais
próximos de uma nova atitude ética e moral diferenciada. Por isso ele diz: a
legenda final de seu pensamento converge para uma legenda crística: “meu Reino
não é deste mundo”. Não está no aqui e no agora. Pode ser feito como uma
promessa que se encontra no dever e no progresso moral da humanidade.
Rousseau diz que esse novo contrato social, que não está feito ainda, precisará ser defendido, porque o filósofo compreende que o mundo é de embates entre privilégios e direitos. Cada novo direito que se estabelece é um velho privilégio que se elide, que se suprime, que se tira de circulação social. Então, para que se tenha o estabelecimento de um novo contrato social substantivamente comprometido com o mundo dos direitos, é preciso que o mundo dos antigos e dos novos privilégios seja vencido. Como os privilégios ameaçados reagem à emergência de novos direitos? Reagindo da maneira mais absurda, e, muitas vezes, recorrendo à barbárie para que novos direitos não se estabeleçam. Vejam no mundo atual o líder líbio Muammar Gaddafi, por exemplo. Representa o mundo dos privilégios na Líbia.
Rousseau sabe da existência de pessoas apegadas aos
privilégios. É preciso então que se estabeleça uma religião civil para defender o novo contrato social sob pena de ser
consumido na voragem da reação dos antigos e dos novos privilégios contra o
advento e afirmação do novo contrato social. O novo contrato social só
permanecerá e se desenvolverá se houver a blindagem de uma religião civil, do
cidadão, defendendo-o, protegendo-o para que não seja afinal destruído pelos
antigos e novos privilégios. Por isso é necessário que se fomente o desenvolvimento
e a afirmação aguda e substantiva de uma religião civil, que é consciência e
atitude individual e coletiva em defesa da vontade geral, em defesa no novo
contrato social. Defende Rousseau que cada cidadão seja defensor da nova ordem
frente aos antigos privilégios. Afinal, a vontade geral orquestrar a si mesma
como um instrumento de apoio e defesa ou será derrogado, elidido, revogado,
para que sobrevivam os antigos e novos privilégios.
Por isso Rousseau aposta todas as fichas na formação dessa
consciência moral e cívica que personifique a religião civil, e, assim, que se
defenda afinal o novo contrato social, sob pena de seu desaparecimento.
No jogo entre privilégios e direitos, a maior possibilidade
da sobrevivência de direitos reside na vigorosa afirmação de uma religião civil
que realiza a blindagem do novo pacto social.
Se estabelecido, qual será o critério de verdade desse novo
contrato social? Nisso Rousseau põe outra carta à mesa, que é puramente
jurídica, que mostra o apreço que o Direito tem: o critério de verdade do novo
contrato social, em sua afirmação, reprodução e desenvolvimento é promover uma transição de um mundo
multimilenar em que os homens se colocaram acima da lei para um mundo novo em
que a lei esteja colocada acima dos homens. Isso porque em todas as épocas
da humanidade os homens pretenderam se colocar acima das leis. As leis são
excelentes... para os outros. As ressalvas para transgressão, cada certeza de
impunidade representa uma aspiração e uma evidência de que em todos os tempos a
pretensão dos donos da vida foi a de se colocar acima das leis, e cumprirem o
postulado romano, de que o rex, acima
da lex, usa-a como instrumento de
controle e punição do populus. Rousseau
estabelece que o critério de verdade é aquele. Se se estabelecer um mundo em
que os homens estejam efetivamente subordinados quanto à sua consciência e suas
atividades às responsabilidades que derivam da lei, esse mundo será novo. Se,
neste mundo, existirem aqueles que tenham porte para solapar leis, este mundo
não será novo. A maior revolução da história da humanidade é uma ordem em que
todos estejam subordinados à lei. Não haja mais aqueles que tornem sua vontade
superior à vontade das leis.
Qual a vontade majoritária? Das leis, ou dos tradicionais
ocupantes do poder? A das leis, que deve subordinar e disciplinar a todos,
direcionando as pessoas, enfim, fazendo com que não haja margem para permissão
para que alguns resistam com sua vontade acima das leis. Não é possível uma
sociedade democrática com uma vocalização que diz: “para os amigos, tudo; para
os inimigos, a lei.” Frase de Agamenon Magalhães, aliado de Getúlio Vargas. O poder
tudo pode; se não pudesse, não seria poder, disse Agamenon. Lógica formal
absolutamente falsa. Rousseau estabelece esta clivagem: se o mundo for novo,
todos estarão com as vontades subordinadas à da lei. Se for uma reinvenção do
arcaico, haverá promiscuidade entre pessoas e poder e alguns se colocarão acima
das leis.
Rousseau diz que este mundo que propõe terá sua evidência
quando os homens estiverem mais próximos de Deus. Quando avançarem em sua
consciência moral, em sua purificação, e só então será possível. Por isso se
aproxima da legenda crística: “meu Reino não é desde mundo”.
Por isso o pensamento iluminista está próximo: chegou ao
rigor com o eclipse do Estado-nação soberano. A ascensão histórica de agora é a
econômica-jurídica-política das comunidades de nações. O mundo iluminista
encontrou seu fim aí.
A questão da Revolução Francesa é a que desafia a humanidade.
Suas três bandeiras, liberdade, igualdade e fraternidade, foram fraudadas e a
principal fraude se vinculou ao valor da fraternidade. O valor liberdade foi
reduzido à liberdade de mercado; o de igualdade foi reduzido à igualdade formal
e o de fraternidade foi totalmente esquecido. Por isso que a ideia de
estabelecer uma nova agenda neste terceiro milênio para o mundo na esfera
jurídica representa o desafio de fazer um mundo em que justiça e liberdade se
encontrem, pois, no socialismo real, a liberdade morreu. No capitalismo
selvagem, a justiça foi morta. O que se quer hoje é a terceira via, sob o signo
maior da solidariedade. Isso tem tudo
a ver com o argumento de Rousseau fundado na realização de uma consciência
moral comprometida com a promoção da vida. Por isso que a agenda de Rousseau
sobrevive. Rousseau foi ecologista, apólogo da democracia participativa,
defendeu a liberdade, não a considerou discorde da igualdade, e também foi
defensor da solidariedade. Por isso o sentido especial deste propósito:
Eis a questão!