Filosofia do Direito

quinta-feira, 3 de março de 2011

Sócrates

Vamos continuar falando de Sócrates.

Sócrates era um divisor de águas dentro do pensar filosófico antigo. Partimos do princípio de que a Filosofia não começa em Atenas, mas já existia de maneira difusa, em várias outras civilizações, milênios antes da grega.

Com Atenas, a Filosofia se autonomiza, tornando-se nova forma de saber social, sem confusão com a literatura, a magia ou a religião. Essa forma de elaboração do saber social, em Atenas, se desenvolve primeiro como Filosofia da Natureza e, num segundo momento, como Filosofia Social. Esse segundo momento começa exatamente com Sócrates. Ele é o marco da transição da Filosofia da Natureza para a Social, sem que jamais deixe de existir a primeira. A cosmovisão não deixou de ser uma preocupação entre os pensadores.

De tal sorte que Sócrates se singulariza porque ele vivia na cidade, na vida citadina, preocupando-se com as formas de convivência, e notou-se que a cidade condena o homem ao social. Importou, a partir daí, saber o destino da sociedade. Buscava uma função social para o intelectual. A função social autônoma e crítica do intelectual serão os iluministas no século XVIII. Esses são os primeiros intelectuais autônomos, pois, até então, eram todos protegidos, de generais, de príncipes, de papas, de comerciantes. Os mecenas patrocinavam a produção de conhecimento e do pensamento crítico. Não havia mercado consumidor das letras e das artes. Assim, para que Michelangelo e Leonardo da Vinci existissem, eles precisariam de um patrono.

Quando se chega à sociedade moderna, às vésperas da Revolução Francesa, esse patrocínio do conhecimento perdeu força. Já há autonomia de vida urbana maior. Forma-se uma liberdade quanto à sua capacidade de consumir, inclusive conhecimento. O mercado se torna a regra da vida, alcançando a esfera das intelectualidades. Surgiu a indústria da cultura, inclusive com pesquisa de mercado de gostos, para direcionar a produção a diferentes classes. Foi o Barão de Voltaire, às portas da revolução, que disse: “eu vim para dizer o que penso”. Sócrates, entretanto, estava a milênios de distância, e já tinha o mesmo pensamento autônomo. Ele não devia a nenhum padrinho, até por causa de sua origem pobre.

O que Sócrates pretende da essência? Que todo e qualquer cidadão concorra para os objetivos da cidade, e buscava instituir a corresponsabilidade. É, grosso modo, o que, por exemplo, a OAB busca fazer hoje em dia: numa sociedade desorganizada, opinar sobre o que é razoável e o que não é.

O ser, no mundo socrático, se evidência por meio do magistério público, da condição de preceptor público. Preceptor era um professor que, tradicionalmente, na história do mundo, era voltado para a educação do chamado delfim, o filho do rei teria que ser preparado para conduzir a sociedade, por meio do magistério. Alexandre o Grande passou treze anos na companhia de Aristóteles, seu mestre, e inclusive o convidou para as campanhas. Aristóteles recusou porque sabia que sua vocação não era de guerreiro, mas de pensador.

As nações Europeias do século XVI notaram que, naquele tempo, importava é a dominação do espaço, então se lançaram ao oceano. Assim obteriam riqueza. Por isso os Estados nacionais, que se organizaram tardiamente como a Alemanha e a Itália, se unificam para redividir o mundo pouco depois. Itália demorou, e o último ato de unificação foi da década de 20 do século XX, com o Tratado de Latrão.

A questão do espaço passou a ser menos relevante. Veja Cingapura, por exemplo: nação muito próspera, mas seu espaço aéreo pode ser cruzado em poucos minutos. Já o Brasil, com dimensões continentais, está na contramão da história da tecnologia.

Sócrates, portanto, é exemplar no que toca ao exercício do saber. As sociedades apodrecem, se decompõem. Pode ser uma viagem de nascimento, vida e morte. Chegando nesse plateau, nada garante que irão permanecer nesse topo para sempre. Veja todos os impérios, do Romano ao Império Mongol de Genghis Khan. Para fora, os Atenienses resistiram aos Persas, com seus vários lideres que queriam a dominação universal. Mesmo hoje, com Mamoud Ahmadinejad! Até que Temístocles derrotou os persas no mar na batalha de Salamina. Foi a batalha que salvou o ocidente. Graças ao trirreme, navio de guerra dotado de um aríete na quilha sob a proa considerado uma inovação tecnológica.

Temístocles, com muita glória, se tornou um problema para Atenas. Poderia aproveitar de seu prestígio para instaurar uma nova moral. Mas, sem raízes nas facções políticas, ele termina não apenas fora do circuito político mas também exilado de Atenas. Reconhecendo a grandeza de Temístocles, os persas lhe oferecem asilo, uma ironia do destino! Temístocles se tornou alguém do mesmo campo meritório de Napoleão Bonaparte, que, apesar de vencer 43 batalhas das mais importantes da humanidade, acabou se tornando um problema também. Mas este registrou sua façanha: o Código Civil Francês.

Os atenienses, aproveitando seu prestigio por ter repelido os persas, aproveitaram para vender proteção a mais de 150 outras cidades, cobrando impostos em troca de guarda. Instituiu-se a corrupção. Levou à crise moral e decomposição dos costumes. Sócrates entende então que devia-se acabar com o politeísmo, e levantou a bandeira da unidade de Deus. Sócrates mesmo é oriundo do mundo do fazer, daqueles que não tinham condições de ter o saber, de ter a percepção, o télos. Criticava os que cultuavam o ócio com dignidade, os que gozavam de tempo livre e pouco fazer. Sócrates inclusive foi acusado de ateísta, do ponto de vista da fé. Pegou os filhos das elites e ensinou-as, num processo de reprodução da sociedade.

E é o que estamos fazendo aqui nesta faculdade de Direito! Entraremos no processo de reprodução da sociedade. Cada um assumirá um papel social.

Auguste Comte disse: os mortos governam os vivos. É por eles que nós, vivos, somos ensinados. O mundo é muito mais conservação do que mudança, ou também não haveria absolutamente nenhuma regra. Cabe aos vivos dilatar as experiências sociais vividas pelos mortos. Não se pode deixar interferir nessa formação negativamente, ou essa reprodução não será possível.

Sócrates ficou, portanto, conhecido como grande sábio, muito embora dizendo que tudo o que sabia era que nada sabia. O que ele fazia era estimular a autoprodução de conhecimento por meio da maiêutica, que significa “parteira”: parir a verdade, modelar a ética. É o método da dialogia, da interlocução, em que se ouve, se aprende a ouvir, para que se possa intervir nas convicções falaciosas dos outros. Daí seu combate vigoroso aos sofistas, um corrente de retóricos que ensinava a juventude a se defender de toda e qualquer acusação que lhe seja feita. Acreditava-se que o jovem não precisava ter raízes morais profundas; bastava o traquejo. Sofistas estão para a Filosofia assim como a prostituição está para o amor. Busca a inquirição para saber a procedência de sua argumentação. Ele mostra, ao outro, que suas aparentes convicções não têm absolutamente nenhuma sustentabilidade. Até o paroxismo, o ponto em que o outro não tem mais como argumentar. O objetivo maior é mudar a consciência, mudar a atitude. Foi acusado de ser corruptor da juventude, e foi levado ao Tribunal de Atenas. Pediu aos discípulos que trouxessem todos os candidatos a advogado, e foi dispensando, depois de um diálogo, um a um, pois eram todos sofistas. 561 jurados, e Sócrates resolveu fazer sua própria defesa. Com o tempo medido em ampulheta, aproveitou para dar a última lição: quais os problemas da sociedade, como a cidade deveria ser refundada, e qual a melhor forma de viver.

Na condenação, a ele foi dada a possibilidade de escolher sua própria pena. Havia um templo chamado Pritaneu, e para lá foi levado. Só tomou o cálice fatal de cicuta depois de passar por um mês de rituais religiosos. Ao tomar cicuta, não morreu. Foi-se o Sócrates histórico, nasceu o Sócrates mito. 

Inspirados em Sócrates, no século I d.C., estabeleceu-se um novo movimento chamado Patrística. Santo Agostinho é o principal personagem. Criou uma doutrina para a fé no Cristianismo Católico. A fé não deveria ser somente revelada, mas conhecida. O sagrado deveria ser conhecido. O novo saber seria a Teologia, que criou a doutrina católica. Quem auxilia a Teologia é a Filosofia. Cristianizaram a Filosofia ateniense, começando por Sócrates.

A convergência entre Jesus Cristo e Sócrates é que ambos eram mestres de refinada Filosofia sem nunca terem escrito um livro, e criaram sinais intemporais para o homem, ambos condenados pelo Estado.

Poucos dias antes da morte, Sócrates foi procurado por um seguidor, que lhe disse: “Sócrates, vim contá-lo o que estão falando de ti ali no porto.” Ao que o pensador respondeu: “Penses bem no que vais falar. Primeiramente, veja se o que vais me dizer passa pela peneira da bondade. Em seguida, veja se passa pela peneira da verdade, e, por fim, pela da necessidade. E então, quais são as tuas novas?” O jovem lhe disse: “mestre, não tenho nada a te dizer.”

Imagine como seria o mundo se todos os atos humanos passassem por esse crivo!