Vamos continuar falando de
Sócrates.
Sócrates era um divisor de águas
dentro do pensar filosófico antigo. Partimos do princípio de que a Filosofia
não começa em Atenas, mas já existia de maneira difusa, em várias outras
civilizações, milênios antes da grega.
Com Atenas, a Filosofia se autonomiza,
tornando-se nova forma de saber social, sem confusão com a literatura, a magia
ou a religião. Essa forma de elaboração do saber social, em Atenas, se
desenvolve primeiro como Filosofia da Natureza e, num segundo momento, como
Filosofia Social. Esse segundo momento começa exatamente com Sócrates. Ele é o
marco da transição da Filosofia da Natureza para a Social, sem que jamais deixe
de existir a primeira. A cosmovisão não deixou de ser uma preocupação entre os
pensadores.
De tal sorte que Sócrates se singulariza
porque ele vivia na cidade, na vida citadina, preocupando-se com as formas de
convivência, e notou-se que a cidade condena o homem ao social. Importou, a
partir daí, saber o destino da sociedade. Buscava uma função social para o
intelectual. A função social autônoma e crítica do intelectual serão os
iluministas no século XVIII. Esses são os primeiros intelectuais autônomos,
pois, até então, eram todos protegidos, de generais, de príncipes, de papas, de
comerciantes. Os mecenas patrocinavam a produção de conhecimento e do
pensamento crítico. Não havia mercado consumidor das letras e das artes. Assim,
para que Michelangelo e Leonardo da Vinci existissem, eles precisariam de um
patrono.
Quando se chega à sociedade
moderna, às vésperas da Revolução Francesa, esse patrocínio do conhecimento
perdeu força. Já há autonomia de vida urbana maior. Forma-se uma liberdade
quanto à sua capacidade de consumir, inclusive conhecimento. O mercado se torna
a regra da vida, alcançando a esfera das intelectualidades. Surgiu a indústria
da cultura, inclusive com pesquisa de mercado de gostos, para direcionar a
produção a diferentes classes. Foi o Barão de Voltaire, às portas da revolução,
que disse: “eu vim para dizer o que penso”. Sócrates, entretanto, estava a
milênios de distância, e já tinha o mesmo pensamento autônomo. Ele não devia a
nenhum padrinho, até por causa de sua origem pobre.
O que Sócrates pretende da
essência? Que todo e qualquer cidadão concorra para os objetivos da cidade, e
buscava instituir a corresponsabilidade. É, grosso modo, o que, por exemplo, a
OAB busca fazer hoje em dia: numa sociedade desorganizada, opinar sobre o que é
razoável e o que não é.
O ser, no mundo socrático, se
evidência por meio do magistério público, da condição de preceptor público. Preceptor
era um professor que, tradicionalmente, na
história do mundo, era voltado para a educação do chamado delfim, o filho do
rei teria que ser preparado para conduzir a sociedade, por meio do magistério. Alexandre
o Grande passou treze anos na companhia de Aristóteles, seu mestre, e inclusive
o convidou para as campanhas. Aristóteles recusou porque sabia que sua vocação
não era de guerreiro, mas de pensador.
As nações Europeias do século XVI
notaram que, naquele tempo, importava é a dominação do espaço, então se
lançaram ao oceano. Assim obteriam riqueza. Por isso os Estados nacionais, que
se organizaram tardiamente como a Alemanha e a Itália, se unificam para
redividir o mundo pouco depois. Itália demorou, e o último ato de unificação
foi da década de 20 do século XX, com o Tratado de Latrão.
A questão do espaço passou a ser
menos relevante. Veja Cingapura, por exemplo: nação muito próspera, mas seu
espaço aéreo pode ser cruzado em poucos minutos. Já o Brasil, com dimensões
continentais, está na contramão da história da tecnologia.
Sócrates, portanto, é exemplar no
que toca ao exercício do saber. As sociedades apodrecem, se decompõem. Pode ser
uma viagem de nascimento, vida e morte. Chegando nesse plateau, nada garante que irão permanecer nesse topo para sempre. Veja
todos os impérios, do Romano ao Império Mongol de Genghis Khan. Para fora, os
Atenienses resistiram aos Persas, com seus vários lideres que queriam a
dominação universal. Mesmo hoje, com Mamoud Ahmadinejad! Até que Temístocles
derrotou os persas no mar na batalha de Salamina. Foi a batalha que salvou o
ocidente. Graças ao trirreme, navio de guerra dotado de um aríete na quilha sob
a proa considerado uma inovação tecnológica.
Temístocles, com muita glória, se
tornou um problema para Atenas. Poderia aproveitar de seu prestígio para instaurar
uma nova moral. Mas, sem raízes nas facções políticas, ele termina não apenas fora
do circuito político mas também exilado de Atenas. Reconhecendo a grandeza de
Temístocles, os persas lhe oferecem asilo, uma ironia do destino! Temístocles
se tornou alguém do mesmo campo meritório de Napoleão Bonaparte, que, apesar de
vencer 43 batalhas das mais importantes da humanidade, acabou se tornando um
problema também. Mas este registrou sua façanha: o Código Civil Francês.
Os atenienses, aproveitando seu
prestigio por ter repelido os persas, aproveitaram para vender proteção a mais
de 150 outras cidades, cobrando impostos em troca de guarda. Instituiu-se a
corrupção. Levou à crise moral e decomposição dos costumes. Sócrates entende
então que devia-se acabar com o politeísmo, e levantou a bandeira da unidade de
Deus. Sócrates mesmo é oriundo do mundo do fazer, daqueles que não tinham
condições de ter o saber, de ter a percepção, o télos. Criticava os que cultuavam o ócio com dignidade, os que
gozavam de tempo livre e pouco fazer. Sócrates inclusive foi acusado de
ateísta, do ponto de vista da fé. Pegou os filhos das elites e ensinou-as, num
processo de reprodução da sociedade.
E é o que estamos fazendo aqui
nesta faculdade de Direito! Entraremos no processo de reprodução da sociedade.
Cada um assumirá um papel social.
Auguste Comte disse: os mortos
governam os vivos. É por eles que nós, vivos, somos ensinados. O mundo é muito
mais conservação do que mudança, ou também não haveria absolutamente nenhuma
regra. Cabe aos vivos dilatar as experiências sociais vividas pelos mortos. Não
se pode deixar interferir nessa formação negativamente, ou essa reprodução não
será possível.
Sócrates ficou, portanto,
conhecido como grande sábio, muito embora dizendo que tudo o que sabia era que nada sabia. O que ele fazia era estimular
a autoprodução de conhecimento por meio da maiêutica, que significa “parteira”:
parir a verdade, modelar a ética. É o método da dialogia, da interlocução, em
que se ouve, se aprende a ouvir, para que se possa intervir nas convicções
falaciosas dos outros. Daí seu combate vigoroso aos sofistas, um corrente de
retóricos que ensinava a juventude a se defender de toda e qualquer acusação
que lhe seja feita. Acreditava-se que o jovem não precisava ter raízes morais
profundas; bastava o traquejo. Sofistas estão para a Filosofia assim como a
prostituição está para o amor. Busca a inquirição para saber a procedência de
sua argumentação. Ele mostra, ao outro, que suas aparentes convicções não têm
absolutamente nenhuma sustentabilidade. Até o paroxismo, o ponto em que o outro
não tem mais como argumentar. O objetivo maior é mudar a consciência, mudar a
atitude. Foi acusado de ser corruptor da juventude, e foi levado ao Tribunal de
Atenas. Pediu aos discípulos que trouxessem todos os candidatos a advogado, e
foi dispensando, depois de um diálogo, um a um, pois eram todos sofistas. 561
jurados, e Sócrates resolveu fazer sua própria defesa. Com o tempo medido em
ampulheta, aproveitou para dar a última lição: quais os problemas da sociedade,
como a cidade deveria ser refundada, e qual a melhor forma de viver.
Na condenação, a ele foi dada a
possibilidade de escolher sua própria pena. Havia um templo chamado Pritaneu, e
para lá foi levado. Só tomou o cálice fatal de cicuta depois de passar por um
mês de rituais religiosos. Ao tomar cicuta, não morreu. Foi-se o Sócrates
histórico, nasceu o Sócrates mito.
Inspirados em Sócrates, no século
I d.C., estabeleceu-se um novo movimento chamado Patrística. Santo Agostinho é
o principal personagem. Criou uma doutrina para a fé no Cristianismo Católico.
A fé não deveria ser somente revelada, mas conhecida. O sagrado deveria ser
conhecido. O novo saber seria a Teologia,
que criou a doutrina católica. Quem auxilia a Teologia é a Filosofia.
Cristianizaram a Filosofia ateniense, começando por Sócrates.
A convergência entre Jesus Cristo
e Sócrates é que ambos eram mestres de refinada Filosofia sem nunca terem
escrito um livro, e criaram sinais intemporais para o homem, ambos condenados
pelo Estado.
Poucos dias antes da morte,
Sócrates foi procurado por um seguidor, que lhe disse: “Sócrates, vim contá-lo
o que estão falando de ti ali no porto.” Ao que o pensador respondeu: “Penses
bem no que vais falar. Primeiramente, veja se o que vais me dizer passa pela
peneira da bondade. Em seguida, veja se passa pela peneira da verdade, e, por
fim, pela da necessidade. E então, quais são as tuas novas?” O jovem lhe disse:
“mestre, não tenho nada a te dizer.”
Imagine como seria o mundo se
todos os atos humanos passassem por esse crivo!