Vamos explicitar os objetos
finalísticos de Rousseau.
Rousseau parte de um princípio tocando numa corda de alta
sensibilidade. É o
princípio de que a igualdade é moralmente desejável, uma realidade como
que
impositiva para quem pretenda ordenar de maneira diferenciada a vida
social.
Rousseau parte dessa constatação: uma coisa são as desigualdades
naturais, e
outras são as desigualdades sociais. Uns são brancos, outros pretos,
uns altos,
outros baixos. Contra essa desigualdade, o que há por fazer? Nada.
Entretanto,
outra coisa, a juízo de Rousseau, são as desigualdades sociais, que
resultam de
hierarquias e construções e estabelecimentos humanos. E, porque são
construções
e estabelecimentos humanos, são passíveis de mudanças, intervenções e
reformas.
O que é moralmente desejável é uma diminuição equitativa das distâncias
sociais. Isso porque ele não tem vínculo nenhum com os privilégios da
nobreza.
Está desembaraçado dos compromissos que teve Montesquieu, Voltaire e
Hobbes.
Vivia a aventura do mundo. Antecipou a locução de Karl Marx no século
seguinte:
quando não se é nada é que se pode ser tudo. Como Karl Marx irá
traduzir isso? Quem
não tem nada a perder a não ser sua miséria é que pode promover a
mudança
social. Quem tem a perder não faria de forma alguma essa aventura.
Sabemos desde Platão, com o Mito da
Caverna, que o homem
prefere a certeza na escravidão à liberdade na aventura. Rousseau
propõe
intervenção nas desigualdades, que são imorais. Não propõe um
igualitarismo
absoluto como sonhado por Marx, mas promove a diminuição das distâncias
sociais. E, ao propô-las, propõe uma nova igualdade possível: a que
resulte
numa sociedade em que não haja ninguém
tão potentado que possa comprar um miserável, e ninguém tão miserável
que tenha
que se vender a um potentado.
O que Rousseau propõe é uma
construção social que se
traduziria no século XXI de crescente ampliação das classes
médias. Em certo sentido, é a esta é a sociedade americana.
Ampliou
consideravelmente as classes medias no século XIX. Rousseau considera
que essa
é uma forma de diminuição das desigualdades sociais, a constituição de
uma pequena
burguesia rural e urbana. Aposta na média propriedade, nos médios
serviços, na
democracia quanto à propriedade no campo e na cidade para o
estabelecimento de
uma sociedade de classe média. Com isso ele ambiciona a diminuição das
distâncias
sociais, estabelecendo um novo equilíbrio social, rompendo com a lógica
dos
párias e dos potentados, do grande abismo social, estabelecimento da
média
propriedade democrática rural e urbana. Quanto mais propriedades,
melhor, na
visão de Rousseau, assim se dá fundamento ao novo equilíbrio social.
Objetos finalísticos em Rousseau: vita nova, como diria Dante: através de
uma cidadania organizada
que imprima em cada cidadão essas legendas: amar
a justiça, respeitar as leis e imolar, se necessário, sua vida a
seu dever. Esse é o objeto finalístico de Rousseau.
Como se defende esse novo contrato
social? Através, da religião civil.
Um esforço moral e cívico
que conquiste consciências, que conquiste cada cidadão e vincule cada
um a esse
espírito. Entretanto Rousseau carrega o veneno porque, no intuito de
defender o Contrato, lança mão de coisas perigosas: quem jurar defender
e abjurar
da
defesa, o destino deverá ser a pena de morte por trair o Contrato
Social.
Quando
diz isso, cria um instrumento de alta periculosidade porque o detentor
do poder
poderá se servir desse expediente para mantê-lo. Matar a democracia
para
mantê-la? Seria mais ou menos isso.
Robespierre disse que Rousseau
escreveu o evangelho da nova
ordem social. A obra Do Contrato Social de 1772 passou longe
dos aparelhos
do
Estado. A obra “Emilio” ou “Da Educação” fez sucesso imediato. Dez anos
depois foi
condenado à morte, por volta de 1782, quando Do Contrato Social já será
um
sucesso. Haverá reedições francesas, holandesas, alemãs, inglesas,
italianas,
espanholas e portuguesas. Será o inspirador de certos segmentos da
Revolução
Francesa que irá acontecer em 1789, que é o embate entre a nova ordem e
o
antigo regime; mas a nova ordem não irá equacionar essas questões. A
França
viverá uma década de total turbulência social, econômica e política
consequente
da revolução. Entre 1789 e 1799 o caos se estabelece na França. A alta
burguesia financeira e industrial será agente da revolução. Os
girondinos serão
senhores da revolução. Os mãos-de-ferro foram as forças que fizeram a
revolução
com espírito mais democrático do que a alta burguesia. Sans-culottes,
burgueses menores, nobres decadentes, proletários,
afinal, reunidos, fizeram a revolução pela burguesia. O poder lhes foi
entregue
por essa força histórica e, daí nasceria, em tese, um mundo de
liberdade,
igualdade e fraternidade.
Foi necessário um complexo social
para que o antigo regime
sucumbisse.
Um decreto da Assembleia Nacional
ainda em junho de 1789 expropria
toda a propriedade feudal. Dizia: “a partir deste instante, toda
propriedade
feudal passa a ser pública, do Estado, ficando proibidas as percepções
de todas
as rendas que constituíram o feudalismo.” Significa dizer: o barão da
terra é
rentista, que percebe rendas, e todas entram na ilegalidade. Este
decreto da
Assembleia Nacional manda o feudalismo para o museu da história. E,
quando
expropria a propriedade que é o objeto da maior tutela desde o Direito
Romano, ela
é simplesmente expropriada. A propriedade feudal foi transferida pelo
Estado
para a alta burguesia. Não deu outra coisa que não fosse um mar de
sangue.
A nobreza francesa que não sucumbiu à
guilhotina se espalhou
para o mundo. Foram para a Inglaterra, Alemanha e até para o novo
mundo. Quando
caiu a monarquia em 1792, que resistiu tanto porque a alta burguesia
tentou
fazer uma composição de interesses e sustentou o rei por esses três
anos desde
julho de 1789. Os girondinos então caem, e todos vão para a guilhotina.
Foram atrás do cadáver de Rousseau e
levaram ao Panthéon. É
o espaço na França onde se enterraram os que exceleram em sua história.
Robespierre
foi quem liderou essa colocação de Jean-Jacques Rousseau no Panthéon
Sorbonne e
dizia que ali estava sendo celebrado o "escritor do novo evangelho da
humanidade".
Robespierre foi depois guilhotinado,
e em seguida houve um
terceiro momento da Revolução Francesa, com luta sangrenta entre
Jacobinos e Girondinos
de 94 a 99 do século XVIII, quando se dá a ascensão definitiva de
Napoleão
Bonaparte. Napoleão era demasiado jovem quando da Revolução.
Adolescente, era
obcecado em Rousseau. Até escreveu obras tomando o mesmo estilo. Mas,
na vida
ativa militar, foi um anti-Rousseau. Filtrou da revolução o que lhe
convinha.
A Revolução Francesa realiza a
primeira proclamação dos
direitos. Proclamam o universalismo em 1789, com a Declaração dos
Direitos do
Homem e do Cidadão, e ajudam a tornar o universalismo positivado em
1948, com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos. É o percurso do mundo dos
direitos. Depois
entendeu-se que não basta proclamar, mas deve-se partir para a
efetivação, para
a positivação. Direitos da criança e do adolescente, do consumidor,
todos
vieram da Organização das Nações Unidas.
O documento jurídico da Revolução
Francesa sintetiza o que
será a ordem jurídica a partir daí. É sobre ele que vamos falar agora.
A Declaração
dos
Direitos do Homem e do Cidadão
Vamos agora ler o preâmbulo da
Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, lembrando que em 1793 uma mulher foi guilhotinada
por ter
escrito uma Declaração da Mulher e da Cidadã. Olympe de Gouges (1748 –
1793).
Dizia que a revolução era patriarcal e não democrática. Para isso, ela
redigiu
um texto irônico, com normas como:
|
Preâmbulo da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão:
Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta Declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar seus direitos e deveres; de modo que seus atos do poder legislativo e do poder executivo, podendo ser a qualquer momento confrontados com o fim de toda instituição política, sejam mais respeitados, para que as reclamações dos cidadãos, fundamentadas em geral em princípios simples e incontestáveis, voltem-se sempre para a manutenção da Constituição e a felicidade geral. |
Ignorância, desprezo e esquecimento
do homem são as únicas
causas das desgraças públicas. Daí resolveram apresentar os direitos
naturais.
Significa que a Revolução Francesa não foi feita em nome de nenhum
direito
positivo. Até o dia, tudo apontava para a vitória do Direito Natural,
mas
verteu-se para o Direito Positivo. Depois de chegar ao poder a
burguesia vai
jogar ao mar o Direito Natural e estabelecerá esse ciclo do positivismo
jurídico que será selado, no século XX, por Hans Kelsen. Até o dia da
revolução
e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a burguesia age
segundo o
Direito natural. E aqui ela se reporta à ideia de direitos naturais
inalienáveis
e sagrados do homem. Por quê? Porque precisa conferir significação
maior ao
fato que irá afirmar e que essa nova Declaração tem um quê de divino,
pois precisa-se
de um fundamento para a ordem jurídica, e a revolução busca resolver a
ordem
jurídica com o mando do religioso. A ideia de Estado laico tem que ser
relativizada, porque todos os documentos apontam para a esfera do
divino para
sua afirmação.
Primeiro direitos, depois deveres.
Até então havia súditos,
que só experimentavam direitos com favor ou graça do príncipe. A ideia
aqui foi
antepor direitos aos deveres.
Felicidade de todos: mote
aristotélico! Ressonância remota
aqui desembarca. A ideia de que a felicidade é o objeto finalístico de
tudo.
Preservar a Constituição: a
Constituição passa a ser o
objeto jurídico de eleição da nova ordem do Estado moderno que se fará
Estado
Constitucional. Ter Constituição será uma grande diferença. Quem não
tiver
Constituição será bárbaro.
Vejam ainda que os atos dos Poderes
Legislativo e Judiciário
estão confrontados porque se confere legitimidade a cada cidadão para
verificar
se tais atos são compatíveis ou não com as finalidades da ordem
jurídico-política.
É direito da cidadania passar um filtro na inadequação de todo e
qualquer todo e
qualquer ato do Poder Executivo. Direito de
pedir contas aos dois poderes pela primeira vez na história da
humanidade.
Princípios simples e incontestáveis:
a nova ordem seria tão
transparente que até um poste poderia saber seus direitos. Isso ensejou
a que
Napoleão dissesse que o seu Código seria límpido, claro, breve no
enunciado,
assim ter-se-ia uma clara afirmação do direito. Mas Direito algum
jamais foi simples
assim, infelizmente.
Preservar a Constituição e a
felicidade de todos.
Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e declara...
Por conseguinte, a Assembleia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão: |
Art. I
Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum. |
Os homens, e não os franceses. Nascem
e permanecem livres e
iguais. Proclama-se a isonomia jurídica pela primeira vez na história
da
humanidade. Essa foi provavelmente a maior revolução dentro da
revolução
burguesa. Há duas igualdades aqui: uma, com dimensão formal e abstrata,
e
outra, com dimensão real e concreta. Esta última é a igualdade social e
econômica. A igualdade formal e abstrata é a igualdade jurídica. A
humanidade
lutava por essa igualdade jurídica desde que existe. Quem a proclama e
quem a
estabelece é a Revolução Francesa. Demanda mais igualdade social e
econômica,
mas isso é outro capítulo. Importante foi a conquista da igualdade
jurídica formal
abstrata.
Pequeno comentário: “Todos os homens
são iguais perante a
lei, mas desiguais perante o juiz.” ²
A igualdade jurídica é uma conquista
exponencial da
humanidade e o maior produto da Revolução Francesa. A partir de então
não se
terá mais nenhuma legitimidade para que se reivindique o nascimento
desigual e
permanência nesse estado.
Distinções sociais só podem ser
baseadas sobre a utilidade
comum: isso tem a ver com o pensamento igualitário de Jean-Jacques
Rousseau? Significa
que não cabiam mais privilégios, consanguinidade, precedência, e o que
quer que
fosse.
Art. II
O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. |
Direitos novamente referenciados como
naturais. Só há ordem
jurídica para a tutela e afirmação dos direitos naturais
imprescritíveis do
homem. Não há outro fundamento finalístico ou outra justificativa para
ordem
jurídica e política. Ou é um serviço aos direitos imprescritíveis e
naturais do
homem, ou não tem nenhuma justificativa para existir. Liberdade
proclamada por
John Locke, propriedade também, segurança por Thomas Hobbes, e
resistência à
opressão por São Tomás de Aquino no mundo medieval e Locke na
modernidade.
Encontro pleno da Filosofia com o
Direito.
Art. III
O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma instituição nem nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela. |
Que da nação declaradamente não
decorra: o que se está
dizendo é que entre nação e Estado o fundamento de todos os poderes
reside na
nação e não no Estado, e nenhum indivíduo, corporação, casta pode se
assenhorar
do poder do Estado para reclamar poderes autônomos, legitimação
autônoma,
autoridade autônoma. Ou deriva da nação, ou não tem nenhuma
legitimidade. Quem
disse que a sociedade civil era detentora da soberania? Rousseau. Ela
deveria
desconfiar a todo o momento do poder do Estado. A verdade não é que o
Estado é
mais relevante que a sociedade, mas o contrário.
O fundamento decorre declaradamente
da nação. Inspiração
clara de Jean-Jacques Rousseau.
Art. IV
A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei. |
Vejam, aqui, a relevância e ousadia
do art. IV. Diz o que é
liberdade. Isso se tornou um princípio jurídico. Inspiração de tudo
isso é de
Kant, autor dessa pérola de sabedoria difusa da humanidade. Teu direito termina onde o meu começa. Tu
queres ouvir música, mas eu quero dormir. A música é possível
até certa
hora. Harmonia jurídica tem que se estabelecer aqui. a orquestração da
convivência da sociedade tem que se dar pelo Direito.
Art. V
A lei só pode proibir as ações prejudiciais à sociedade. Tudo o que não for proibido por lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena. |
Princípio da reserva legal! Está
ancorado aqui na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão. Anuncia toda a ordem jurídica da
humanidade
na pós-modernidade. O objeto central da normatividade social passa a
ser a lei.
Lei, e não equidade. ¹
No silêncio da lei, há um permissivo.
A ordenança legal gera
a obrigação.
Art. VI
A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer para sua formação, pessoalmente ou através de seus representantes. Ela deve ser a mesma para todos, seja aos que protege, seja aos que pune. Todos os cidadãos sendo iguais aos seus olhos são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção, além de suas virtudes e seus talentos. |
A lei é a expressão da vontade geral.
Volonté générale de Jean-Jacques
Rousseau. Aquela efetivação da
consciência moral que Rousseau prometia ganha um emblema. É a lei.
todos os
cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de seus
representantes. Democracia representativa de John Locke. Devo ser
obrigado a
obedecer às leis de cuja elaboração participei.
Deve ser igual para todos, seja
protegendo, seja punindo.
Lugares empregos públicos: privilégio
feudal tem formalmente
um ponto final aqui. Todos os cidadãos estão igualmente habilitados
para todos
os lugares e empregos públicos, conforme suas capacidades e, sem outra
distinção, seus talentos. Estabelece-se legalmente o princípio do
mérito, que
será parte da vocalização dos liberais ingleses, sobretudo, de John
Locke a
John Stuart Mill (1806 – 1873). Princípios liberais em que os liberais
pugnaram
pela educação pública e gratuita, pela igualdade.
Art. VII
Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as formas que ela prescreveu. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistência. |
Vamos por partes. Nenhum homem pode
ser acusado, detido ou
preso... o que é isso? Devido processo legal! Quem o defende no
pensamento
jurídico iluminista? Cesare Beccaria, em Dos Delitos e Das Penas.
Cesare
desembarca aqui. Foi como sua monografia ao final do curso! Tinha 22 ou
23 anos
quando escreveu a obra!.
“Aqueles que expedem, fazem executar
ou executam ordens arbitrárias”
significa que ninguém pode falar que estava somente cumprindo ordens.
Ordem
injusta e arbitrária que configura crime contra a humanidade foi feita
para ser
desobedecida.
Que princípio temos in fine? Imagine
alguém com prisão
decretada que não se entrega. Este sujeito está praticando o crime de
desobediência.
Art. VIII
A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. |
Princípio da anterioridade. Ao mesmo
tempo, quem inspira
esse artigo é Beccaria. Busca a ponderação entre delito e pena, o
humanismo
penal e evitar
penas despóticas. A anterioridade
é inspiração de Thomas Hobbes.
Art. IX
Todo homem é presumido inocente até ser declarado culpado. No caso de se julgar indispensável sua prisão, qualquer excesso desnecessário para se assegurar de sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei. |
Princípio da presunção de inocência.
Quando a ordem jurídico-política
se desenvolveu, esse princípio se tornou a regra de ouro. Em outros
lugares, a
regra consuetudinária é a outra: presunção de culpa. Por isso a herança
portuguesa entre nós se fez revivida.
Vamos ver só até o X hoje:
Ninguém deve ser perseguido por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não atrapalhe a ordem pública estabelecida pela lei. |
Direito de expressão. A inspiração
vem de John Locke com As
Cartas sobre a Tolerância. A transformação do princípio da tolerância
em valor
jurídico, e a defesa da liberdade de consciência e religiosa. Tudo isso
é
puramente Locke. Mais proximamente dos círculos franceses, esta ideia
remente
ao Barão de Voltaire, que, na esteira de Locke, escreveu um livro
chamado Tratado
sobre a Tolerância. Mas é herdeiro das Cartas Sobre a Tolerância de
John Locke
nisso.
Art. XI:
A livre comunicação de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver que responder do abuso dessa liberdade nos casos previstos pela lei. |
Significa dizer que o direito de
opinião está
necessariamente vinculado ao direito de circulação das ideias. Direito
de
comunicação. Livre comunicação do pensamento. É crucial que numa
sociedade,
sobretudo na sociedade moderna, que é a primeira que estabelece um
fundamento
das suas instituições numa realidade chamada opinião,
a regra da afirmação do mundo moderno, burguês e
capitalista é que se estabelece uma grande legenda, da opinião: a
opinião
governará o mundo. Dirigirá as instituições econômicas, sociais,
políticas e
jurídicas da sociedade. Portanto a humanidade precisa de quê? De
educação,
cultura, e libertação da razão,
portanto das ideias que daí derivam. Daí liberdade de comunicação.
O homem não apenas é receptor de
signos e sinais, mas também
emissor deles. Essa emissão é que se legitima na modernidade. Daí o que
Voltaire disse: minha função é dizer o que penso, e deve ser objeto da
mais
ampla liberdade.
A descoberta da imprensa, por
Gutemberg, permite transformar
o conhecimento em um objeto móvel e portátil, e, em tese, estar com
qualquer
um.
Um dos direitos mais precisos do
homem, salvo responder pelo
abuso. Significa dizer: aqui pode-se dar o fenômeno da colisão de
direitos. Liberdade
de informação pode destroçar o direito à imagem, à intimidade e à
honra,
previsto no art. 5º, inciso X da Constituição Federativa do Brasil.
Em nome da liberdade de informação
muitas vezes se dilacera,
incinera o direito à imagem de outrem, e, quando não é veraz, o estrago
está
absolutamente feito e é praticamente irreversível. Lembremo-nos do
episódio da
Escola Base de São Paulo.
A delicadeza dessa questão reside
precisamente nessa
harmonia do direito à informação, com as garantias individuais e
coletivas.
Essa ordem jurídico-política da modernidade é que investirá o cidadão
de
poderes individuais, e de cautelas, inclusive, no tocante a esse
universo imaterial.
O abuso enseja as leis de imprensa no
mundo inteiro. A
punição, a disciplina, a previsão legal de punibilidade do exercício
exacerbado
e irresponsabilidade desse direito, sem o qual não existe sociedade
livre. O
que é uma? É uma que, entre outras coisas, está fundada na liberdade de
opinião. Assim se exerce crítica e controle.
Dizem
que quem
vazou a informação da evolução patrimonial de Antônio Palocci foi o
próprio
fogo amigo. E que o grupo de José Dirceu teria vazado para a mídia. Se
não for
verdade isso, terá sido uma mídia investigativa que teria denunciado,
sozinha,
sem o concurso dessa facção. Essa situação na qual não foi vivenciada
nenhuma
ilegalidade aparentemente segundo o Procurador-Geral da República, mas
é
altamente problemática do ponto de vista moral. E aqui temos mídia
investigativa, Temos liberdade de comunicação e controle democrático
dos
poderes.
O professor é colecionador de livros.
Um dia achou um de Affonso
Arinos de Melo Franco, orador oficial na cerimônia de promulgação da
Constituição da República de 1988. Professor de Direito Constitucional
e autor
de uma grande obra de direito público valiosíssima. Liberdade de
imprensa: o estabelecimento
de uma lei democrática de imprensa no Brasil. Foi senador até 66, e
voltou a
ser no fim da vida. Tinha uma dedicatória: Aliomar de Andrade Baleeiro.
Em testemunho
desta causa quase perdida: a causa da liberdade de imprensa. Porque as
sociedades passaram a ter controles concentracionários e opressivos,
porque é
da imprensa silenciada que nascem as possibilidades múltiplas da
corrupção.
Com a Lei 5250/67, a folha tinha que
publicar fragmentos dos
Lusíadas.
Art. XII:
A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade particular daqueles aos quais foi confiada. |
Benefício de todos, e não para
conveniência particular:
acontece demais hoje em dia. Onde as instituições políticas e jurídicas
estão
subdesenvolvidas, a força pública é instrumento de benefício
particular.
General Golbery do Couto e Silva (1911 - 1987), um dos fundadores do
SNI, tinha
um sitio em Luziânia onde estava sua biblioteca. Um dia a imprensa,
desamordaçada,
denunciou que ali havia um destacamento da Polícia Militar desde 64,
guardando
o sitio e a biblioteca, que estabelecia para a segurança do patrimônio
literário. Em 10 anos do início do regime ele tinha trazido as teorias
geopolíticas
para o Brasil. Queria colocar patrulhas da Polícia Militar 24 horas por
dia em
sentidos circulares opostos onde havia a mansão dele. As forças
públicas na
história do Brasil são tidas e havidas como instrumento do exercício de
poder.
Os governadores a usam segundo conveniências particulares. Existem, na
verdade,
para garantia dos direitos do homem e do cidadão. Por isso o benefício
de
todos. E, por isso, a justificativa candente de sua instituição.
Os governadores do Brasil costumam se
referir às Polícia
Militares como “a minha polícia”. Daí a utilização política da força
pública.
Art. XIII:
Para o sustento da força pública e para as despesas da administração, uma contribuição comum é indispensável. Ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidadãos em razão das suas faculdades. |
Manutenção e despesas. Contribuição
comum. Igualmente de
acordo com as posses. Quem não tiver posses está abrigado pela isenção.
A
redação não é a melhor, porque enseja um aparente paradoxo.
Um problema é: uma coisa é imposto de
grandes fortunas, de renda propriamente
dita, e outra é imposto que incide sobre
salário, e sai
no contracheque de cada um. Não é razoável, porque taxa, como se fosse
renda,
algo que na verdade não é renda. Tecnicamente, renda é: alguém é
rentista, e
vive de rendas. Não é como alguém que vive de salário. Quem vive de
rendas vive
de aplicações, de patrimônio consolidado, que é posto para render.
Rendas
passivas. Alguém pode ser rentista por ser titular de dez mil
apartamentos.
Neste caso se justificaria o nome: imposto sobre a renda. Mas imposto sobre
salário não se justifica. Usar a expressão “famílias com renda de até
três
salários mínimos foram as que mais adquiram produtos da agricultura
local...” é
uma grande impropriedade, uma convenção absolutamente imprópria. Tanto
que
nunca existiu imposto sobre assalariados até 1943 no Brasil. Foi em
meio à
guerra que Vargas estabeleceu o IR incidindo sobre o salário.
Isso é uma questão, além do que a
justeza do sistema em si
mesma é uma coisa que tem sido questionada no mundo todo porque, em
casos como
o brasileiro, quem mais tem patrimônio menos paga. De fato. É uma
pirâmide
invertida. No mundo, faz-se justiça fiscal isentando segmentos mais
vastos da
população. Nesse projeto de justiça, cabe também a chamada justiça da
renda
mínima, em que também se percebe uma renda que a sociedade lhe confere.
Atribuição de um mínimo de renda, garantia de participação nos
equipamentos
sociais, e isenção de contribuição tributária.
Art. XIV:
Cada cidadão tem o direito de constatar por ele mesmo ou por seus representantes a necessidade de contribuição pública, de consenti-la livremente, de acompanhar o seu emprego, de determinar a cota, a estabilidade, a cobrança e o tempo. |
Necessidade da contribuição pública,
controlar seu uso e
determinar seu vulto. Distribuição, cobrança, e duração. CPMF. Foi
instituída a
contribuição com o propósito de fazer uma revolução na saúde.
Estabelecida a
contribuição sem a oitiva da sociedade, ato unipessoal, com poder
concentracionário, é desvio absoluto de finalidade, e controle da vida
do
cidadão.
E, depois, quando se diz apurar por
meio de seus
representantes, temos a questão da democracia representativa. Seria
tarefa dos
representantes a permanente discussão sobre a instituição, uso,
distribuição,
cobrança, etc. Daí foram instituídos os tribunais de contas. São órgãos
do
Poder Legislativo, amparados no Art. XIV da Declaração dos Direitos do
Homem e
do Cidadão. Ela que ensejou o estabelecimento dos tribunais de contas
do mundo.
Drama dos tribunais de contas: sua
composição política. O
que os tribunais de contas viraram, entre nós, foram gaiolas douradas
para onde
o poder remete os amigos. Quando houve a queda de um governador do
Distrito
Federal, ele havia acabado de nomear um conselheiro de contas. Mas é de
se
supor que, em sendo procedentes as imputações que a ambos foram feitas,
entre
eles havia um acordo de cumplicidade. Por isso essa questão delicada da
composição política dos tribunais, todos, inclusive os de contas. O que
vale
para os tribunais dos estados vale também para os tribunais de contas.
Art. XV:
A sociedade tem o direito de exigir contas a qualquer agente público de sua administração. |
Direito de solicitar prestação de
contas de cada agente
público de sua administração. Contas públicas têm que ser abertas. O
professor
assessorou uma pessoa que, no Paraná foi secretário do interior e
justiça com
23 anos. José Richard
era o governador daquele
período. Um dia comentou que tomou posse 10 horas da manhã, tinha larga
agenda,
mas resolveu, da posse, ir diretamente para a secretaria, sem
participar de
qualquer solenidade. Chegou lá e foi subindo, até que descobriu onde
era a
cadeira do secretário, sentou onde ficaria 4 anos, quando uma senhora
de 160 kg
entra na sala, carregando papéis, dizendo que eram notas de empenho
para se assinar
imediatamente. Ele nunca tinha ouvido falar em nota de empenho! Não
sabia o que
era contabilidade pública, nunca pensara em despesas públicas.
Extraordinariamente
jovem. Há pessoas que ficam 30 anos como chefe de gabinete e têm o savoir-faire (know-how).
É a alma da democracia: dinheiro
público é sagrado. José de
Almeida, estadista, romancista, ministro do TCU, senador da República,
embaixador no Vaticano, enfim, o chamado vice-rei do Norte e Nordeste,
disse
uma coisa que o Brasil fez pela metade: o homem de Estado tem o dever
de tratar
a coisa pública como se fosse sua, mas sabendo que jamais poderá sê-lo.
Aqui só
se ouviu a parte “tratar a coisa pública como se fosse sua.” ...para
dela se
apropriar.
Art. XVI:
Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição. |
Um dos mais importantes artigos.
Garantia de direitos,
separação dos poderes. A aula jurídica dessa declaração está neste
artigo. Aqui
estão os dogmas da ordem jurídico-política da modernidade. Dizer que
determinada sociedade não tem Constituição é um dos maiores insultos da
modernidade. “Cabra safado” é o somatório de todos os insultos. Não tem
Constituição! Para a consciência jurídica da modernidade é uma
bofetada, porque
se quer instituir o Estado Constitucional Moderno. Ao se dizer que
determinado
Estado não tem Constituição, está-se fazendo a maior das acusações
sobre o
ponto de vista da moral jurídica a essa sociedade. Seria uma sociedade
despótica, absolutista, tirânica, bárbara, subdesenvolvida quanto às
suas
instituições jurídicas e políticas. Para que se reconheça se uma
sociedade tem
ou não Constituição, devemos ver Montesquieu, John Locke, e outros que
trataram
de separação dos poderes.
A questão das questões: direitos
devem ser mais que proclamados,
mas também efetivados. Sociedade que não assegura garantia de direitos
não tem
Constituição. Paraguai tinha Constituição formalmente, mas não
realmente,
porque não se assegurava a garantia dos direitos, nem a separação dos
poderes
porque havia poder unipessoal. Tinha formalmente uma Constituição, mas
não
tinha materialmente uma. É o ensinamento de Ferdinand Lassale:
Constituição é
uma folha de papel. Significa dizer que, mais que proclamar, devem-se
efetivar
os direitos proclamados.
Alfredo Stroessner Matiauda (1912 –
2006) foi ditador dos
anos 50 aos 90 no Paraguai. 40 anos de poder direto e outros tantos de
poder
indireto.
Art. XVII e último da Declaração dos
Direitos do Homem e do
Cidadão:
Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige evidentemente e sob a condição de uma justa e anterior indenização. |
Aqui importam as questões material e
econômica. Regime
jurídico de proteção à propriedade. Inviolabilidade reside nisso. Qual
o
sistema de propriedade dos tempos modernos? Propriedade privada.
Direito
inviolável e sagrado. O maior dos direitos materiais tem manto divino.
Por quê?
Essa ordem jurídica laica diz que acabou o tempo do Direito Divino...
por que então
ela quer vestir logo agora a propriedade com um manto sagrado? Um dos
problemas
da ordem jurídica moderna é que sempre desconfiou do fundamento de
validade do
poder vigente. Povo, razão? O divino é muito mais seguro do que os
terrenos
profanos e mundanos. É cercar a propriedade de uma dignidade capaz de
protegê-la
muito mais do que se dissesse: é um direito inviolável e ancorado na
vontade
popular majoritária. A vontade popular majoritária é flutuante e pode
ser feita
e desfeita com dinheiro.
Salvo quando a necessidade pública
exigir: daqui tiramos o
termo indene, que quer dizer
“deixar
sem dano”. Justa indenização. Frederico da Prússia caçava e caminhava
com sua
corte quando descobriu uma propriedade paradisíaca e para lá se
dirigiu,
perguntou quem era o senhorio, se apresentou ao Rei da Prússia, que lhe
disse:
é minha, senhor, mas não está à venda! Não interessa. Esse déspota teve
coragem
de dizer uma coisa inesquecível: como ousa dizer isso de seu rei?
Resposta:
ainda há juízes em Berlim. Frederico queria fazer uma reivindicação do
tamanho
de sua arrogância, conveniência e prepotência.
Não mais se teve notícias do
proprietário corajoso.