Filosofia do Direito

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Religião Civil de Rousseau e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão



Vamos explicitar os objetos finalísticos de Rousseau. Rousseau parte de um princípio tocando numa corda de alta sensibilidade. É o princípio de que a igualdade é moralmente desejável, uma realidade como que impositiva para quem pretenda ordenar de maneira diferenciada a vida social. Rousseau parte dessa constatação: uma coisa são as desigualdades naturais, e outras são as desigualdades sociais. Uns são brancos, outros pretos, uns altos, outros baixos. Contra essa desigualdade, o que há por fazer? Nada. Entretanto, outra coisa, a juízo de Rousseau, são as desigualdades sociais, que resultam de hierarquias e construções e estabelecimentos humanos. E, porque são construções e estabelecimentos humanos, são passíveis de mudanças, intervenções e reformas. O que é moralmente desejável é uma diminuição equitativa das distâncias sociais. Isso porque ele não tem vínculo nenhum com os privilégios da nobreza. Está desembaraçado dos compromissos que teve Montesquieu, Voltaire e Hobbes. Vivia a aventura do mundo. Antecipou a locução de Karl Marx no século seguinte: quando não se é nada é que se pode ser tudo. Como Karl Marx irá traduzir isso? Quem não tem nada a perder a não ser sua miséria é que pode promover a mudança social. Quem tem a perder não faria de forma alguma essa aventura.

Sabemos desde Platão, com o Mito da Caverna, que o homem prefere a certeza na escravidão à liberdade na aventura. Rousseau propõe intervenção nas desigualdades, que são imorais. Não propõe um igualitarismo absoluto como sonhado por Marx, mas promove a diminuição das distâncias sociais. E, ao propô-las, propõe uma nova igualdade possível: a que resulte numa sociedade em que não haja ninguém tão potentado que possa comprar um miserável, e ninguém tão miserável que tenha que se vender a um potentado.

O que Rousseau propõe é uma construção social que se traduziria no século XXI de crescente ampliação das classes médias. Em certo sentido, é a esta é a sociedade americana. Ampliou consideravelmente as classes medias no século XIX. Rousseau considera que essa é uma forma de diminuição das desigualdades sociais, a constituição de uma pequena burguesia rural e urbana. Aposta na média propriedade, nos médios serviços, na democracia quanto à propriedade no campo e na cidade para o estabelecimento de uma sociedade de classe média. Com isso ele ambiciona a diminuição das distâncias sociais, estabelecendo um novo equilíbrio social, rompendo com a lógica dos párias e dos potentados, do grande abismo social, estabelecimento da média propriedade democrática rural e urbana. Quanto mais propriedades, melhor, na visão de Rousseau, assim se dá fundamento ao novo equilíbrio social.

Objetos finalísticos em Rousseau: vita nova, como diria Dante: através de uma cidadania organizada que imprima em cada cidadão essas legendas: amar a justiça, respeitar as leis e imolar, se necessário, sua vida a seu dever. Esse é o objeto finalístico de Rousseau.

Como se defende esse novo contrato social? Através, da religião civil. Um esforço moral e cívico que conquiste consciências, que conquiste cada cidadão e vincule cada um a esse espírito. Entretanto Rousseau carrega o veneno porque, no intuito de defender o Contrato, lança mão de coisas perigosas: quem jurar defender e abjurar da defesa, o destino deverá ser a pena de morte por trair o Contrato Social. Quando diz isso, cria um instrumento de alta periculosidade porque o detentor do poder poderá se servir desse expediente para mantê-lo. Matar a democracia para mantê-la? Seria mais ou menos isso.

Robespierre disse que Rousseau escreveu o evangelho da nova ordem social. A obra Do Contrato Social de 1772 passou longe dos aparelhos do Estado. A obra “Emilio” ou “Da Educação” fez sucesso imediato. Dez anos depois foi condenado à morte, por volta de 1782, quando Do Contrato Social já será um sucesso. Haverá reedições francesas, holandesas, alemãs, inglesas, italianas, espanholas e portuguesas. Será o inspirador de certos segmentos da Revolução Francesa que irá acontecer em 1789, que é o embate entre a nova ordem e o antigo regime; mas a nova ordem não irá equacionar essas questões. A França viverá uma década de total turbulência social, econômica e política consequente da revolução. Entre 1789 e 1799 o caos se estabelece na França. A alta burguesia financeira e industrial será agente da revolução. Os girondinos serão senhores da revolução. Os mãos-de-ferro foram as forças que fizeram a revolução com espírito mais democrático do que a alta burguesia. Sans-culottes, burgueses menores, nobres decadentes, proletários, afinal, reunidos, fizeram a revolução pela burguesia. O poder lhes foi entregue por essa força histórica e, daí nasceria, em tese, um mundo de liberdade, igualdade e fraternidade.

Foi necessário um complexo social para que o antigo regime sucumbisse.

Um decreto da Assembleia Nacional ainda em junho de 1789 expropria toda a propriedade feudal. Dizia: “a partir deste instante, toda propriedade feudal passa a ser pública, do Estado, ficando proibidas as percepções de todas as rendas que constituíram o feudalismo.” Significa dizer: o barão da terra é rentista, que percebe rendas, e todas entram na ilegalidade. Este decreto da Assembleia Nacional manda o feudalismo para o museu da história. E, quando expropria a propriedade que é o objeto da maior tutela desde o Direito Romano, ela é simplesmente expropriada. A propriedade feudal foi transferida pelo Estado para a alta burguesia. Não deu outra coisa que não fosse um mar de sangue.

A nobreza francesa que não sucumbiu à guilhotina se espalhou para o mundo. Foram para a Inglaterra, Alemanha e até para o novo mundo. Quando caiu a monarquia em 1792, que resistiu tanto porque a alta burguesia tentou fazer uma composição de interesses e sustentou o rei por esses três anos desde julho de 1789. Os girondinos então caem, e todos vão para a guilhotina.

Foram atrás do cadáver de Rousseau e levaram ao Panthéon. É o espaço na França onde se enterraram os que exceleram em sua história. Robespierre foi quem liderou essa colocação de Jean-Jacques Rousseau no Panthéon Sorbonne e dizia que ali estava sendo celebrado o "escritor do novo evangelho da humanidade".

Robespierre foi depois guilhotinado, e em seguida houve um terceiro momento da Revolução Francesa, com luta sangrenta entre Jacobinos e Girondinos de 94 a 99 do século XVIII, quando se dá a ascensão definitiva de Napoleão Bonaparte. Napoleão era demasiado jovem quando da Revolução. Adolescente, era obcecado em Rousseau. Até escreveu obras tomando o mesmo estilo. Mas, na vida ativa militar, foi um anti-Rousseau. Filtrou da revolução o que lhe convinha.

A Revolução Francesa realiza a primeira proclamação dos direitos. Proclamam o universalismo em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e ajudam a tornar o universalismo positivado em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É o percurso do mundo dos direitos. Depois entendeu-se que não basta proclamar, mas deve-se partir para a efetivação, para a positivação. Direitos da criança e do adolescente, do consumidor, todos vieram da Organização das Nações Unidas.

O documento jurídico da Revolução Francesa sintetiza o que será a ordem jurídica a partir daí. É sobre ele que vamos falar agora.

 

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

Vamos agora ler o preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lembrando que em 1793 uma mulher foi guilhotinada por ter escrito uma Declaração da Mulher e da Cidadã. Olympe de Gouges (1748 – 1793). Dizia que a revolução era patriarcal e não democrática. Para isso, ela redigiu um texto irônico, com normas como:

  • Esta revolução só será efetivada quando as mulheres se tornarem completamente cientes de suas deplorável condição, e dos direitos que ela perdeu na sociedade;
  • Homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Distinções sociais só poderão ter como fundamento o interesse comum;
  • A mulher nasce livre e permanece igual aos homens em direitos. Distinções sociais só poderão ter por fundamento o interesse comum;
  • Todos os cidadãos, inclusive as mulheres, são igualmente admissíveis em todas os lugares públicos, cargos e empregos, de acordo com sua capacidade, e sem nenhuma outra distinção que não seja suas virtudes e talentos.

Declaração escrita duas semanas depois da revolução. Tem-se aqui um Código jurídico densamente articulado, que anuncia o que será a ordem jurídica da contemporaneidade.

Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das infelicidades públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta Declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar seus direitos e deveres; de modo que seus atos do poder legislativo e do poder executivo, podendo ser a qualquer momento confrontados com o fim de toda instituição política, sejam mais respeitados, para que as reclamações dos cidadãos, fundamentadas em geral em princípios simples e incontestáveis, voltem-se sempre para a manutenção da Constituição e a felicidade geral.

Ignorância, desprezo e esquecimento do homem são as únicas causas das desgraças públicas. Daí resolveram apresentar os direitos naturais. Significa que a Revolução Francesa não foi feita em nome de nenhum direito positivo. Até o dia, tudo apontava para a vitória do Direito Natural, mas verteu-se para o Direito Positivo. Depois de chegar ao poder a burguesia vai jogar ao mar o Direito Natural e estabelecerá esse ciclo do positivismo jurídico que será selado, no século XX, por Hans Kelsen. Até o dia da revolução e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a burguesia age segundo o Direito natural. E aqui ela se reporta à ideia de direitos naturais inalienáveis e sagrados do homem. Por quê? Porque precisa conferir significação maior ao fato que irá afirmar e que essa nova Declaração tem um quê de divino, pois precisa-se de um fundamento para a ordem jurídica, e a revolução busca resolver a ordem jurídica com o mando do religioso. A ideia de Estado laico tem que ser relativizada, porque todos os documentos apontam para a esfera do divino para sua afirmação.

Primeiro direitos, depois deveres. Até então havia súditos, que só experimentavam direitos com favor ou graça do príncipe. A ideia aqui foi antepor direitos aos deveres.

Felicidade de todos: mote aristotélico! Ressonância remota aqui desembarca. A ideia de que a felicidade é o objeto finalístico de tudo.

Preservar a Constituição: a Constituição passa a ser o objeto jurídico de eleição da nova ordem do Estado moderno que se fará Estado Constitucional. Ter Constituição será uma grande diferença. Quem não tiver Constituição será bárbaro.

Vejam ainda que os atos dos Poderes Legislativo e Judiciário estão confrontados porque se confere legitimidade a cada cidadão para verificar se tais atos são compatíveis ou não com as finalidades da ordem jurídico-política. É direito da cidadania passar um filtro na inadequação de todo e qualquer todo e qualquer ato do Poder Executivo. Direito de pedir contas aos dois poderes pela primeira vez na história da humanidade.

Princípios simples e incontestáveis: a nova ordem seria tão transparente que até um poste poderia saber seus direitos. Isso ensejou a que Napoleão dissesse que o seu Código seria límpido, claro, breve no enunciado, assim ter-se-ia uma clara afirmação do direito. Mas Direito algum jamais foi simples assim, infelizmente.

Preservar a Constituição e a felicidade de todos. Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e declara...

Por conseguinte, a Assembleia Nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:

Auspícios do Ser Supremo: Deus é o fundamento, que se veste com o manto da sacralidade. Ainda se fala em Estado laico... é o novo Direito recorrendo ao fundamento de validade teológica.

Art. I

Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum.

Os homens, e não os franceses. Nascem e permanecem livres e iguais. Proclama-se a isonomia jurídica pela primeira vez na história da humanidade. Essa foi provavelmente a maior revolução dentro da revolução burguesa. Há duas igualdades aqui: uma, com dimensão formal e abstrata, e outra, com dimensão real e concreta. Esta última é a igualdade social e econômica. A igualdade formal e abstrata é a igualdade jurídica. A humanidade lutava por essa igualdade jurídica desde que existe. Quem a proclama e quem a estabelece é a Revolução Francesa. Demanda mais igualdade social e econômica, mas isso é outro capítulo. Importante foi a conquista da igualdade jurídica formal abstrata.

Pequeno comentário: “Todos os homens são iguais perante a lei, mas desiguais perante o juiz.” ²

A igualdade jurídica é uma conquista exponencial da humanidade e o maior produto da Revolução Francesa. A partir de então não se terá mais nenhuma legitimidade para que se reivindique o nascimento desigual e permanência nesse estado.

Distinções sociais só podem ser baseadas sobre a utilidade comum: isso tem a ver com o pensamento igualitário de Jean-Jacques Rousseau? Significa que não cabiam mais privilégios, consanguinidade, precedência, e o que quer que fosse.

Art. II

O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

Direitos novamente referenciados como naturais. Só há ordem jurídica para a tutela e afirmação dos direitos naturais imprescritíveis do homem. Não há outro fundamento finalístico ou outra justificativa para ordem jurídica e política. Ou é um serviço aos direitos imprescritíveis e naturais do homem, ou não tem nenhuma justificativa para existir. Liberdade proclamada por John Locke, propriedade também, segurança por Thomas Hobbes, e resistência à opressão por São Tomás de Aquino no mundo medieval e Locke na modernidade.

Encontro pleno da Filosofia com o Direito.

Art. III

O princípio de toda Soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma instituição nem nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela.

Que da nação declaradamente não decorra: o que se está dizendo é que entre nação e Estado o fundamento de todos os poderes reside na nação e não no Estado, e nenhum indivíduo, corporação, casta pode se assenhorar do poder do Estado para reclamar poderes autônomos, legitimação autônoma, autoridade autônoma. Ou deriva da nação, ou não tem nenhuma legitimidade. Quem disse que a sociedade civil era detentora da soberania? Rousseau. Ela deveria desconfiar a todo o momento do poder do Estado. A verdade não é que o Estado é mais relevante que a sociedade, mas o contrário.

O fundamento decorre declaradamente da nação. Inspiração clara de Jean-Jacques Rousseau.

Art. IV

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique outro: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem tem como única baliza a que assegura aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Essas balizas só podem ser determinadas pela Lei.

Vejam, aqui, a relevância e ousadia do art. IV. Diz o que é liberdade. Isso se tornou um princípio jurídico. Inspiração de tudo isso é de Kant, autor dessa pérola de sabedoria difusa da humanidade. Teu direito termina onde o meu começa. Tu queres ouvir música, mas eu quero dormir. A música é possível até certa hora. Harmonia jurídica tem que se estabelecer aqui. a orquestração da convivência da sociedade tem que se dar pelo Direito.

Art. V

A lei só pode proibir as ações prejudiciais à sociedade. Tudo o que não for proibido por lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena.

Princípio da reserva legal! Está ancorado aqui na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Anuncia toda a ordem jurídica da humanidade na pós-modernidade. O objeto central da normatividade social passa a ser a lei. Lei, e não equidade. ¹

No silêncio da lei, há um permissivo. A ordenança legal gera a obrigação.

Art. VI

A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer para sua formação, pessoalmente ou através de seus representantes. Ela deve ser a mesma para todos, seja aos que protege, seja aos que pune. Todos os cidadãos sendo iguais aos seus olhos são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção, além de suas virtudes e seus talentos.

A lei é a expressão da vontade geral. Volonté générale de Jean-Jacques Rousseau. Aquela efetivação da consciência moral que Rousseau prometia ganha um emblema. É a lei. todos os cidadãos têm o direito de participar, pessoalmente ou através de seus representantes. Democracia representativa de John Locke. Devo ser obrigado a obedecer às leis de cuja elaboração participei.

Deve ser igual para todos, seja protegendo, seja punindo.

Lugares empregos públicos: privilégio feudal tem formalmente um ponto final aqui. Todos os cidadãos estão igualmente habilitados para todos os lugares e empregos públicos, conforme suas capacidades e, sem outra distinção, seus talentos. Estabelece-se legalmente o princípio do mérito, que será parte da vocalização dos liberais ingleses, sobretudo, de John Locke a John Stuart Mill (1806 – 1873). Princípios liberais em que os liberais pugnaram pela educação pública e gratuita, pela igualdade.

Art. VII

Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido senão quando assim determinado pela lei e de acordo com as formas que ela prescreveu. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos. Mas todo homem intimado ou convocado em nome da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistência.

Vamos por partes. Nenhum homem pode ser acusado, detido ou preso... o que é isso? Devido processo legal! Quem o defende no pensamento jurídico iluminista? Cesare Beccaria, em Dos Delitos e Das Penas. Cesare desembarca aqui. Foi como sua monografia ao final do curso! Tinha 22 ou 23 anos quando escreveu a obra!.

“Aqueles que expedem, fazem executar ou executam ordens arbitrárias” significa que ninguém pode falar que estava somente cumprindo ordens. Ordem injusta e arbitrária que configura crime contra a humanidade foi feita para ser desobedecida.

Que princípio temos in fine? Imagine alguém com prisão decretada que não se entrega. Este sujeito está praticando o crime de desobediência.

Art. VIII

A lei só deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada.

Princípio da anterioridade. Ao mesmo tempo, quem inspira esse artigo é Beccaria. Busca a ponderação entre delito e pena, o humanismo penal e  evitar penas despóticas. A anterioridade é inspiração de Thomas Hobbes.

Art. IX

Todo homem é presumido inocente até ser declarado culpado. No caso de se julgar indispensável sua prisão, qualquer excesso desnecessário para se assegurar de sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei.

Princípio da presunção de inocência. Quando a ordem jurídico-política se desenvolveu, esse princípio se tornou a regra de ouro. Em outros lugares, a regra consuetudinária é a outra: presunção de culpa. Por isso a herança portuguesa entre nós se fez revivida.

Vamos ver só até o X hoje:

Ninguém deve ser perseguido por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não atrapalhe a ordem pública estabelecida pela lei.

Direito de expressão. A inspiração vem de John Locke com As Cartas sobre a Tolerância. A transformação do princípio da tolerância em valor jurídico, e a defesa da liberdade de consciência e religiosa. Tudo isso é puramente Locke. Mais proximamente dos círculos franceses, esta ideia remente ao Barão de Voltaire, que, na esteira de Locke, escreveu um livro chamado Tratado sobre a Tolerância. Mas é herdeiro das Cartas Sobre a Tolerância de John Locke nisso.

Art. XI:

A livre comunicação de pensamentos e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode pois falar, escrever, imprimir livremente, salvo quando tiver que responder do abuso dessa liberdade nos casos previstos pela lei.

Significa dizer que o direito de opinião está necessariamente vinculado ao direito de circulação das ideias. Direito de comunicação. Livre comunicação do pensamento. É crucial que numa sociedade, sobretudo na sociedade moderna, que é a primeira que estabelece um fundamento das suas instituições numa realidade chamada opinião, a regra da afirmação do mundo moderno, burguês e capitalista é que se estabelece uma grande legenda, da opinião: a opinião governará o mundo. Dirigirá as instituições econômicas, sociais, políticas e jurídicas da sociedade. Portanto a humanidade precisa de quê? De educação, cultura, e libertação da razão, portanto das ideias que daí derivam. Daí liberdade de comunicação.

O homem não apenas é receptor de signos e sinais, mas também emissor deles. Essa emissão é que se legitima na modernidade. Daí o que Voltaire disse: minha função é dizer o que penso, e deve ser objeto da mais ampla liberdade.

A descoberta da imprensa, por Gutemberg, permite transformar o conhecimento em um objeto móvel e portátil, e, em tese, estar com qualquer um.

Um dos direitos mais precisos do homem, salvo responder pelo abuso. Significa dizer: aqui pode-se dar o fenômeno da colisão de direitos. Liberdade de informação pode destroçar o direito à imagem, à intimidade e à honra, previsto no art. 5º, inciso X da Constituição Federativa do Brasil.

Em nome da liberdade de informação muitas vezes se dilacera, incinera o direito à imagem de outrem, e, quando não é veraz, o estrago está absolutamente feito e é praticamente irreversível. Lembremo-nos do episódio da Escola Base de São Paulo.

A delicadeza dessa questão reside precisamente nessa harmonia do direito à informação, com as garantias individuais e coletivas. Essa ordem jurídico-política da modernidade é que investirá o cidadão de poderes individuais, e de cautelas, inclusive, no tocante a esse universo imaterial.

O abuso enseja as leis de imprensa no mundo inteiro. A punição, a disciplina, a previsão legal de punibilidade do exercício exacerbado e irresponsabilidade desse direito, sem o qual não existe sociedade livre. O que é uma? É uma que, entre outras coisas, está fundada na liberdade de opinião. Assim se exerce crítica e controle.

Dizem que quem vazou a informação da evolução patrimonial de Antônio Palocci foi o próprio fogo amigo. E que o grupo de José Dirceu teria vazado para a mídia. Se não for verdade isso, terá sido uma mídia investigativa que teria denunciado, sozinha, sem o concurso dessa facção. Essa situação na qual não foi vivenciada nenhuma ilegalidade aparentemente segundo o Procurador-Geral da República, mas é altamente problemática do ponto de vista moral. E aqui temos mídia investigativa, Temos liberdade de comunicação e controle democrático dos poderes.

O professor é colecionador de livros. Um dia achou um de Affonso Arinos de Melo Franco, orador oficial na cerimônia de promulgação da Constituição da República de 1988. Professor de Direito Constitucional e autor de uma grande obra de direito público valiosíssima. Liberdade de imprensa: o estabelecimento de uma lei democrática de imprensa no Brasil. Foi senador até 66, e voltou a ser no fim da vida. Tinha uma dedicatória: Aliomar de Andrade Baleeiro. Em testemunho desta causa quase perdida: a causa da liberdade de imprensa. Porque as sociedades passaram a ter controles concentracionários e opressivos, porque é da imprensa silenciada que nascem as possibilidades múltiplas da corrupção.

Com a Lei 5250/67, a folha tinha que publicar fragmentos dos Lusíadas.

Art. XII:

A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade particular daqueles aos quais foi confiada.

Benefício de todos, e não para conveniência particular: acontece demais hoje em dia. Onde as instituições políticas e jurídicas estão subdesenvolvidas, a força pública é instrumento de benefício particular. General Golbery do Couto e Silva (1911 - 1987), um dos fundadores do SNI, tinha um sitio em Luziânia onde estava sua biblioteca. Um dia a imprensa, desamordaçada, denunciou que ali havia um destacamento da Polícia Militar desde 64, guardando o sitio e a biblioteca, que estabelecia para a segurança do patrimônio literário. Em 10 anos do início do regime ele tinha trazido as teorias geopolíticas para o Brasil. Queria colocar patrulhas da Polícia Militar 24 horas por dia em sentidos circulares opostos onde havia a mansão dele. As forças públicas na história do Brasil são tidas e havidas como instrumento do exercício de poder. Os governadores a usam segundo conveniências particulares. Existem, na verdade, para garantia dos direitos do homem e do cidadão. Por isso o benefício de todos. E, por isso, a justificativa candente de sua instituição.

Os governadores do Brasil costumam se referir às Polícia Militares como “a minha polícia”. Daí a utilização política da força pública.

Art. XIII:

Para o sustento da força pública e para as despesas da administração, uma contribuição comum é indispensável. Ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidadãos em razão das suas faculdades.

Manutenção e despesas. Contribuição comum. Igualmente de acordo com as posses. Quem não tiver posses está abrigado pela isenção. A redação não é a melhor, porque enseja um aparente paradoxo.

Um problema é: uma coisa é imposto de grandes fortunas, de renda propriamente dita, e outra é imposto que incide sobre salário, e sai no contracheque de cada um. Não é razoável, porque taxa, como se fosse renda, algo que na verdade não é renda. Tecnicamente, renda é: alguém é rentista, e vive de rendas. Não é como alguém que vive de salário. Quem vive de rendas vive de aplicações, de patrimônio consolidado, que é posto para render. Rendas passivas. Alguém pode ser rentista por ser titular de dez mil apartamentos. Neste caso se justificaria o nome: imposto sobre a renda. Mas imposto sobre salário não se justifica. Usar a expressão “famílias com renda de até três salários mínimos foram as que mais adquiram produtos da agricultura local...” é uma grande impropriedade, uma convenção absolutamente imprópria. Tanto que nunca existiu imposto sobre assalariados até 1943 no Brasil. Foi em meio à guerra que Vargas estabeleceu o IR incidindo sobre o salário.

Isso é uma questão, além do que a justeza do sistema em si mesma é uma coisa que tem sido questionada no mundo todo porque, em casos como o brasileiro, quem mais tem patrimônio menos paga. De fato. É uma pirâmide invertida. No mundo, faz-se justiça fiscal isentando segmentos mais vastos da população. Nesse projeto de justiça, cabe também a chamada justiça da renda mínima, em que também se percebe uma renda que a sociedade lhe confere. Atribuição de um mínimo de renda, garantia de participação nos equipamentos sociais, e isenção de contribuição tributária.

Art. XIV:

Cada cidadão tem o direito de constatar por ele mesmo ou por seus representantes a necessidade de contribuição pública, de consenti-la livremente, de acompanhar o seu emprego, de determinar a cota, a estabilidade, a cobrança e o tempo.

Necessidade da contribuição pública, controlar seu uso e determinar seu vulto. Distribuição, cobrança, e duração. CPMF. Foi instituída a contribuição com o propósito de fazer uma revolução na saúde. Estabelecida a contribuição sem a oitiva da sociedade, ato unipessoal, com poder concentracionário, é desvio absoluto de finalidade, e controle da vida do cidadão.

E, depois, quando se diz apurar por meio de seus representantes, temos a questão da democracia representativa. Seria tarefa dos representantes a permanente discussão sobre a instituição, uso, distribuição, cobrança, etc. Daí foram instituídos os tribunais de contas. São órgãos do Poder Legislativo, amparados no Art. XIV da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ela que ensejou o estabelecimento dos tribunais de contas do mundo.

Drama dos tribunais de contas: sua composição política. O que os tribunais de contas viraram, entre nós, foram gaiolas douradas para onde o poder remete os amigos. Quando houve a queda de um governador do Distrito Federal, ele havia acabado de nomear um conselheiro de contas. Mas é de se supor que, em sendo procedentes as imputações que a ambos foram feitas, entre eles havia um acordo de cumplicidade. Por isso essa questão delicada da composição política dos tribunais, todos, inclusive os de contas. O que vale para os tribunais dos estados vale também para os tribunais de contas.

Art. XV:

A sociedade tem o direito de exigir contas a qualquer agente público de sua administração.

Direito de solicitar prestação de contas de cada agente público de sua administração. Contas públicas têm que ser abertas. O professor assessorou uma pessoa que, no Paraná foi secretário do interior e justiça com 23 anos. José Richard era o governador daquele período. Um dia comentou que tomou posse 10 horas da manhã, tinha larga agenda, mas resolveu, da posse, ir diretamente para a secretaria, sem participar de qualquer solenidade. Chegou lá e foi subindo, até que descobriu onde era a cadeira do secretário, sentou onde ficaria 4 anos, quando uma senhora de 160 kg entra na sala, carregando papéis, dizendo que eram notas de empenho para se assinar imediatamente. Ele nunca tinha ouvido falar em nota de empenho! Não sabia o que era contabilidade pública, nunca pensara em despesas públicas. Extraordinariamente jovem. Há pessoas que ficam 30 anos como chefe de gabinete e têm o savoir-faire (know-how).

É a alma da democracia: dinheiro público é sagrado. José de Almeida, estadista, romancista, ministro do TCU, senador da República, embaixador no Vaticano, enfim, o chamado vice-rei do Norte e Nordeste, disse uma coisa que o Brasil fez pela metade: o homem de Estado tem o dever de tratar a coisa pública como se fosse sua, mas sabendo que jamais poderá sê-lo. Aqui só se ouviu a parte “tratar a coisa pública como se fosse sua.” ...para dela se apropriar.

Art. XVI:

Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.

Um dos mais importantes artigos. Garantia de direitos, separação dos poderes. A aula jurídica dessa declaração está neste artigo. Aqui estão os dogmas da ordem jurídico-política da modernidade. Dizer que determinada sociedade não tem Constituição é um dos maiores insultos da modernidade. “Cabra safado” é o somatório de todos os insultos. Não tem Constituição! Para a consciência jurídica da modernidade é uma bofetada, porque se quer instituir o Estado Constitucional Moderno. Ao se dizer que determinado Estado não tem Constituição, está-se fazendo a maior das acusações sobre o ponto de vista da moral jurídica a essa sociedade. Seria uma sociedade despótica, absolutista, tirânica, bárbara, subdesenvolvida quanto às suas instituições jurídicas e políticas. Para que se reconheça se uma sociedade tem ou não Constituição, devemos ver Montesquieu, John Locke, e outros que trataram de separação dos poderes.

A questão das questões: direitos devem ser mais que proclamados, mas também efetivados. Sociedade que não assegura garantia de direitos não tem Constituição. Paraguai tinha Constituição formalmente, mas não realmente, porque não se assegurava a garantia dos direitos, nem a separação dos poderes porque havia poder unipessoal. Tinha formalmente uma Constituição, mas não tinha materialmente uma. É o ensinamento de Ferdinand Lassale: Constituição é uma folha de papel. Significa dizer que, mais que proclamar, devem-se efetivar os direitos proclamados.

Alfredo Stroessner Matiauda (1912 – 2006) foi ditador dos anos 50 aos 90 no Paraguai. 40 anos de poder direto e outros tantos de poder indireto.

Art. XVII e último da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige evidentemente e sob a condição de uma justa e anterior indenização.

Aqui importam as questões material e econômica. Regime jurídico de proteção à propriedade. Inviolabilidade reside nisso. Qual o sistema de propriedade dos tempos modernos? Propriedade privada. Direito inviolável e sagrado. O maior dos direitos materiais tem manto divino. Por quê? Essa ordem jurídica laica diz que acabou o tempo do Direito Divino... por que então ela quer vestir logo agora a propriedade com um manto sagrado? Um dos problemas da ordem jurídica moderna é que sempre desconfiou do fundamento de validade do poder vigente. Povo, razão? O divino é muito mais seguro do que os terrenos profanos e mundanos. É cercar a propriedade de uma dignidade capaz de protegê-la muito mais do que se dissesse: é um direito inviolável e ancorado na vontade popular majoritária. A vontade popular majoritária é flutuante e pode ser feita e desfeita com dinheiro.

Salvo quando a necessidade pública exigir: daqui tiramos o termo indene, que quer dizer “deixar sem dano”. Justa indenização. Frederico da Prússia caçava e caminhava com sua corte quando descobriu uma propriedade paradisíaca e para lá se dirigiu, perguntou quem era o senhorio, se apresentou ao Rei da Prússia, que lhe disse: é minha, senhor, mas não está à venda! Não interessa. Esse déspota teve coragem de dizer uma coisa inesquecível: como ousa dizer isso de seu rei? Resposta: ainda há juízes em Berlim. Frederico queria fazer uma reivindicação do tamanho de sua arrogância, conveniência e prepotência.

Não mais se teve notícias do proprietário corajoso.