A conversa de hoje é sobre Platão. Que é, na trindade
filosófica em Atenas, é aquele que, de acordo com alguns, caminhava apontando
para o alto, junto de seu discípulo, este carregando um livro de ética e apontando
para o chão.
Na realidade, mais que antagonismo entre a Filosofia da transcendência
de Platão e da imanência de Aristóteles, buscamos uma síntese, pela reflexão,
indo pela imanência buscando a transcendência.
Platão foi alguém que, contrastando com seu mestre Sócrates,
era membro das elites mais refinadas de Atenas. Sócrates era nascido do
universo do fazer, trabalhador na juventude, e transgredira essas limitações
numa sociedade de castas, marcada por uma estabilidade profunda que não permite
a ascensão nem a decadência social. A sociedade de castas é a mais
conservadora, pois não há mobilidade social. É um princípio de inamovibilidade.
Esse princípio foi transgredido por Sócrates, que chegou ao universo do saber
vindo do universo do fazer. O universo do saber, por sua vez, era o que
legitimava o exercício do poder. Tinha a detenção do telos, a percepção refinada à qual se chega somente pela educação e
pela cultura.
Para ter saber e cultura, deve-se dispor de tempo livre,
portanto não era para escravos. O escravo tinha uma posição definida na
sociedade, e era tido por coisa, e não pessoa. É uma relação desigualitária. Ainda
assim não era uma relação que funcionava assim desde sempre; já foi uma
evolução em relação ao momento anterior, o das sociedades primitivas. É quando
nasce a arte da guerra, e também o conceito de prisioneiro de guerra. Surgiu o
problema do que fazer com eles. Matar fora de combate? Afinal, a vida do
inimigo não tinha dignidade. Depois de um tempo, com uma compreensão maior do
significado da vida, pensou-se em mutilar, ao invés de matar: vazar os olhos e
tirar mãos e pés, para que o inimigo nunca mais seja guerreiro. Num terceiro
momento, mais uma mudança de comportamento: nem matar, nem mutilar. Deixar
incólume. Assim se chega à escravidão. É aqui que surge essa relação social de
senhor e escravo. O Direito Romano, muito mais tarde, veio a legalizar essa
relação.
Estabeleceu-se uma nova relação, que é a de produção, com a
fixação do escravo sobre a terra. O senhor de terras é senhor de escravos, que
é a ferramenta da revolução agrícola, que criou a produção na história da humanidade. Nessa sociedade irá se criar a
riqueza. Passou a haver a produção de excedente, e começou a prática das trocas. Ao mesmo tempo, surgiu a arte do
armazenamento. Daqui para frente, surgiu a capacidade de planejar a vida, permitindo que os indivíduos dormissem tranquilos
quanto ao dia seguinte.
Estamos na cidade-Estado grega, uma sociedade escravocrata,
que é o mundo que Sócrates, Platão e Aristóteles conheceram. Aqui eles se
preocuparam infinitamente com a Filosofia. Hegel, filósofo da modernidade, que costuma
ter lugar na lista dos 10 maiores, e também escrevendo sobre a Filosofia do
Direito, pensou sobre a fenomenologia do espírito, com a discussão sobre a
escravatura. A dialética do senhor e escravo, partindo do nível mais elementar
possível. “Entre o senhor e o escravo, quem é senhor e quem é escravo?” Parece uma
pergunta esdrúxula. Hegel diz que não, que isso é aparência. O único que pode
nascer para a liberdade é o escravo, pois, se transfigurar-se da condição de
escravo, ele tornará um homem livre. O senhor, por outro lado, precisa da
manutenção da escravidão, então está preso a isso. Ele é já senhor de escravos,
e não tem perspectivas, e está condenado à preservação da escravidão para
preservar seu senhorio.
Essa é a sociedade sobre a qual Sócrates, Platão e
Aristóteles viveram. Daí começaram a dedicar tempo para pensar nela. Chegaram à
conclusão de que trabalhar era um demérito, ao passo que não trabalhar era
glorioso. Daí surgiu o termo “trabalho”, alusão a “tripallium”, um instrumento
de tortura. A disciplina da produção foi aprendida sob a ameaça do tripallium.
Quem não produz experimenta a tortura. Na origem o trabalho é demérito.
Platão, ao contrário de Sócrates, nasceu no universo de
privilégios, da educação, da cultura, da direção da sociedade. A origem social
de Platão é totalmente contrastante com a de Sócrates. Platão de Atenas nasceu
na mais refinada aristocracia ateniense, descendente direto de Sólon, e do
último rei da cidade. Perguntavam o que ele queria ser ao crescer. Disse “rei”.
Platão, na verdade, era um apelido de um homem chamado Arístocles. Ele queria
ser rei, e se sentia no direito hereditário à realeza. Entretanto a vida é
cheia de mistérios; muitas vezes elegemos certos alvos na vida e eles fogem de
nós, por mais que os persigamos. E outros atraem a fortuna, sem busca-la. Um
exemplo aqui foi o acaso do destino que uniu Fernando Henrique Cardoso ao cargo
de Ministro da Fazenda de Itamar Franco, quem, na conjuntura econômica daquela
época, fatalmente se tornaria Presidente da República pelo trabalho de
consertar a economia brasileira.
Aparentemente Platão teve que afastar de si a condição de
estadista, com a qual sonhava. Passou a almejar ser atleta, o que dava
notoriedade. Eram figuras tão midiáticas e cercadas de reconhecimento que isso
lhe daria prestígio. Chegou a brilhar em jogos locais, regionais e pan-gregos,
até se acidentar. Teve que abandonar esse segundo destino possível. Pensou,
então, em ser teatrólogo e poeta, pois eram atividades que tinham relação com o
mundo do saber, e também porque Homero já havia sido contemplado com prestígio.
O nível na Grécia era altíssimo. Havia debate entre o Direito Natural e o
Direito Positivo. Antígona de Sófocles ficou em sexto lugar num concurso de
poetas.
Começou a perambular pela cidade, e, pela primeira vez,
esbarra com Sócrates. Presencia o grande mestre lecionando em público, e se
junta a ele. Ao final de uma aula, Sócrates pergunta a Platão quem era ele.
Disse: “discípulo.” Sócrates era um grande orador, e Platão era um grande
escritor. Uma perfeita união. Platão depois fez uma grande festa, e, na
fogueira acesa, atirou todos os seus manuscritos. Jurou dedicar-se à Filosofia
para o resto da vida.
Nasce um mestre da oralidade ao lado de um discípulo que,
por sua vez, era mestre na escrita. Platão, diga-se, morreu octogenário em sua
mesa de trabalho, com a pena na mão, escrevendo. Ele mal sabia que seria poeta
e teatrólogo como filósofo. A Filosofia em si era dialogal, e a técnica de
teatro é a que cria o rito, a dinâmica, a dicção, o tonos, o embate em busca da
verdade. Ao mesmo tempo, a narrativa filosófica de Platão é profundamente
poética. Levou um outro grande escritor da Filosofia, Jean-Jacques Rousseau,
dizer que Platão era grande literariamente mesmo quando polêmico. A beleza
literária suplantava as controvérsias e os embaraços por ventura existentes em
seu trabalho filosófico.
Decidir-se pela Filosofia, como fez Platão, era também
decidir-se pela pedagogia. Não tinha uma escola formal, mas era preceptor
público, numa escola a céu aberto. O que importava era o debate e o diálogo.
Daí surge a maiêutica.
Bom salientar que o pedagogo era um escravo doméstico. Esses
escravos seriam sucedidos pelos servos domésticos, e posteriormente pelos
empregados domésticos. O papel de pedagogo era cuidar da vida escolar dos
filhos do senhor. Eis que Platão se tornaria filósofo e pedagogo. Que pedagogo seria
Platão? O que construiria um palácio em que criará sua academia, ambiente de
ensino muito prestigiado. A academia transcendeu a Platão. Já dizia ao seu
discípulo Aristóteles: todo homem é mortal, Platão é homem, então Platão é
mortal. O homem se foi, mas o ensinamento ficou.
Que Filosofia escreveu Platão? É a Filosofia idealista, da
transcendência, uma Filosofia espiritual. É uma teoria do espírito, que define
a matéria, causa-a, e nela interfere, e sobrevive a ela. A grande referência é
Sócrates, outro idealista. Tinha muita serenidade diante da morte porque sabia
que o espírito era eterno.
Platão, aspirante fracassado a chegar ao poder, foi asilado
em Siracusa, onde o Rei Dionísio, o Velho, lhe deu uma vida principesca, com a
condição de que não interferisse na vida política da cidade. Não cumpriu o
acordo e foi penalizado por um ano e meio. A notícia chegou a Atenas, que
resolveu comprá-lo para tirá-lo daquela condição e ser reinvestido em si mesmo.
Posteriormente perambulou por vários lugares, até a índia, além de Pérsia e
Egito, lugar atenciosamente estudado pelo filósofo. Envolveu-se na vida
egípcia, e voltou à Grécia com grande sabedoria.
Seu discípulo renegado cometeu uma inconfidência. Na
Metafísica, Aristóteles descreveu o saber esotérico de Platão, coisa que ele
não quis fazer. No fim da vida, Dionísio, o Novo, neto de Dionísio, o Velho,
convidou Platão para viver em Siracusa, onde teria a oportunidade de “criar um
laboratório para experimentar suas ideias políticas”. Platão cruzou o mar e
rapidamente foi emboscado. Teve que ser, novamente, objeto de uma operação de
retirada porque Platão não queria apenas ter mais realeza que o rei, mas queria
ser o próprio rei. Que é o que ele queria ser desde jovem!
Platão volta para Atenas para cumprir seu destino de
filósofo e pedagogo.
As ideias de Platão
Pensava na existência de dois mundos, um ideal e outro
sensorial. Vivemos exatamente de sentidos. Na modernidade, pensou-se que nada
chegava à razão sem passar pelos sentidos. Dizia Platão que o mundo sensorial
era relevante, porém enganoso. A verdadeira realidade não está na superfície.
Como chegar à realidade, então? Indaga: quantas cores um prisma consegue
divisar? Sete. Mas na Física Quântica já se conseguiu prever um modelo em que a
luz é fracionada em 20 bilhões de tonalidades cromáticas. É a Filosofia de
Platão!
O essencial é invisível aos olhos, escreveu alguém. Como se
chega ao essencial? Por meio de uma evolução de espírito, passando pelo mundo
dos apetites, depois pelo da inteligência em que a razão pode apropriar-se as
coisas. Interlegere. Mas não é a
etapa final. O mais relevante de todos é o conhecimento espiritual, da sabedoria máxima. Sabedoria, na verdade, vem de sal,
do sabor, que é conhecimento sensorial, a primeira e mais elementar forma de
conhecimento.
Ao chegar à sabedoria, em Platão, pode-se dialogar pois se
avançou com a grande luz. O superavanço da Física fez-nos chegar à conclusão de
que o universo é a luz, o sumo bem, fonte divinal de tudo, que é Deus. Platão
diz que nele encontramos o bom, o belo, o puro, o justo e o reto.
Duas lições da Filosofia de Platão: o mito do eterno
retorno: Platão tinha uma visão circular das coisas. Que visão alternativa ela
proporcionava? Há a visão retilínea, cartesiana das coisas, com olhos de
engenheiro. Outra seria a visão espiralada das coisas, que Karl Marx teve. E
ainda a terceira visão, que é a circular, com uma vida fechada, que se repete.
Platão é profeta da visão circular das coisas. O espírito se repete; Platão
estudou com os Pitagóricos, integrou uma seita na Magna Grécia, e foi ao Egito.
Pitágoras foi ao Egito e voltou grande matemático. Criou seu Teorema. Disso
resultou que Platão afirmou que, a cada 10000 anos, a vida volta ao marco zero,
se tem uma crise profunda de tudo, e temos uma crise total de paradigmas. O
mundo reacontece, mas num nível superior. Pense em circunferências
concêntricas, cujo raio vai aumentando progressivamente. O novo acontecimento
se dá de maneira mais iluminada, mais próxima do mundo ideal.
O Mito da Caverna
Sabemos do que se trata. Uma comunidade, numa vida
subterrânea, só conhece do mundo o que a ambiência da caverna permite, por meio
das sombras. A realidade é circunscrita a isso. Alguém vai lá fora, conhece a
realidade de forma melhor, e volta, pregando a existência do Sol, e também
alegando ter visto a origem das sombras, que entes as projetavam. A grande
comunidade da caverna só diz: “enlouqueceu”. O inconsciente coletivo prefere a
segurança na escravidão à liberdade na aventura. O que é a Filosofia de Platão?
Um convite à liberdade na aventura. O problema é que os convidados, na época de
Platão, eram somente os que podem entendê-la. Não havia vagas para todos nessa
nave.