Tudo passa sobre a Terra, até a uva, dizia Aristóteles! Maquiavel
é uma figura prostrada em posição de vanguarda por ser, do ponto de vista conceitual,
o fundador do Estado moderno.
Maquiavélico é um adjetivo exatamente vindo dele. Nicolau é
originário da baixa nobreza, é por inteiro um homem do renascimento, nascido em
Florença, que é, então, uma cidade-Estado já que não existe, a rigor, uma
Itália do ponto de vista de uma unidade nacional. Isso só viria no início do
século XX com o Tratamento de Latrão, resolvendo-se uma celeuma territorial
entre República e Igreja.
Na Itália de Maquiavel havia feudos e baronias em um regime
de superfragmentação. Quando se volta à cidade e ao comércio, uma das sedes
esse renascimento urbano é a Itália. Ela tem cidades portuárias e mercantis de
alta consistência. A peculiaridade é que essa afirmação das cidades portuárias
se dá num território profundamente fragmentado. O desafio de Maquiavel é: dado
que ele compreende o significado de Estado, de nação, de soberania. O que ele
sonha para sua Itália? Transformar em uma unidade estatal, nacional e soberana.
Transformar a Itália num Estado-nação soberano. Maquiavel prefigura que os que
se unificarem mais cedo melhor estarão posicionados na concorrência colonial
que adviria pouco depois. Os que cedo se unificarem nacional e soberanamente
poderão desfrutar da hegemonia do mundo moderno.
Quem chega tarde à unificação nacional na Europa não sentará
à mesa do banquete colonial. Quem se unificar tarde do ponto de vista estatal e
nacional na Europa não terá espaço maior no tocante à aspiração, à conquista e
ao exercício da hegemonia. Quem não o fizer só terá um caminho: tentar, pela
guerra, redividir o mundo, que já está dividido.
A preocupação maior de Maquiavel resulta do fato de que ele
está testemunhando as unificações nacionais à sua volta, especialmente em
Portugal, Espanha, Inglaterra e Suíça. Ao mesmo tempo há o calor do acontecimento
morte de Joana D’Arc, que comete uma extraordinária façanha, que era liderar um
movimento pela unificação do território francês. A morte de Joana é a própria
vitória francesa, e significa a própria impossibilidade da ocupação inglesa. Dela
nasce o fenômeno identitário dos franceses, a França dotada de um só exército,
a submissão a uma só autoridade, e daí temos a emergência do Estado Nacional
soberano como resultado direto dessa vigorosa aparição histórica de Joana D’Arc.
O que Maquiavel mais queria era que em sua Itália houvesse
uma figura como Joana. A frustração maior de Maquiavel é que ele não verá, em
vida, a unificação nacional, e compreende que a hegemonia está sendo disputada,
e tem a percepção de que sua maior ambição não está em processo de
concretização. O que ele gostaria era:
Com apenas essas três pequenas coisas ele se contentaria.
Mas o que acontece é que o Império Romano não volta, a
Itália ainda está imbrincada em conflitos com Portugal e Espanha. Não verá a
unificação.
Outro problema era a Sicília. Não havia sentimento italiano
lá. O sentimento regional ao sul era ainda separatista. Naquele momento os
sicilianos ainda não haviam se convencido que seu destino histórico era a
Itália. Mas também houve demandas separatistas na Espanha, na Irlanda, na
Escócia e na Holanda.
Maquiavel, sobre esse ponto de vista, é o menos realizado,
feliz e satisfeito dos maquiavélicos! Os sonhos maiores do ponto de vista
político foram todos frustrados. A Itália não se tornou hegemônica e não
restaurou o Império Romano.
Maquiavel morreu aos 54 anos, e passou 15 anos no poder como
chanceler de Florença. Foi destituído, e isso lhe causou uma profunda tristeza.
Tentou voltar à chancelaria, e teve óbices cada vez maiores do ponto de vista
da emergência pessoal no cenário político de Florença, que chegou a fazer um
jogo que o levou a ter desconfiança de todos. Passou o resto dos dias lambendo
o chão dos que voltaram a dominar Florença, a família Médici. O máximo que lhe
conseguem é a condição de bolsista com a tarefa de escrever a história de
Florença. Voltou a receber missões diplomáticas pontuais, nunca muito grandes.
Maquiavel escritor e Maquiavel pensador: o pensador dedica
os dez últimos anos de sua vida à escrita. Vive uma vida medíocre para suas
aspirações. Outrora havia recebido pessoas importantes de outras localidades,
e, deposto, passou a fazer gestão de pessoas em sua fazenda. Entregava seu
tempo livre para passar restos de manhãs numa taberna que ligava sua
propriedade a outras. Lidava ali com as melhores pessoas: jogadores e ébrios.
Vejam o que é a piração:
à noite, despia-se das roupas, tomava banho, e vestia a roupa de chanceler.
Trancava-se no gabinete e se e punha-se a escrever. Foi ali que escreveu
verdadeiramente sua obra. Foi a obra de um politicólogo, historiador, cientista
político, sociólogo, mas menos de filósofo, que se volta para o Estado e para o
poder.
O historiador é a maior vocação de Maquiavel. Para outros é
um livro que deve ser visto com restrição, porque ele tomou o caminho
deliberado de agradar os poderosos. Essa foi a história de Florença. Por isso
alguns o veem com grande reserva. Consideram que há histórias mais imparciais
de Florença.
Maquiavel é autor de um clássico absolutamente
extraordinário chamado Comentários Sobre a
Primeira Década de Tito Lívio, e escreve uma obra prima de Historiologia,
de Filosofia Política, e também de resgate, do ponto de vista da narrativa do
sentido das instituições políticas romanas. Maquiavel também foi teatrólogo, de
grande sucesso. Mandrágora é o texto mais conhecido dele. E foi poeta também,
mas se considerava maior do que Dante Alighieri. Entretanto, ele era o único
que se achava nessa condição. Poeta foi a coisa que ele menos foi. Foi filósofo
em sentido geral.
O que fica de maneira mais evidente em Maquiavel foi um
livro chamado O Príncipe, escrito em
1513, publicada em 1532, depois de sua morte. Divulgou em cópias manuscritas,
mas nunca viu publicado. Só foi tipografado cinco anos depois de sua morte. Chamava-se
De Principatibus. Significa Do
Principado.
A obra sugere que Maquiavel estudou uma obra de São Tomás de
Aquino chamada O Reino, em que pinta a figura de um príncipe do bem. Maquiavel
pinta o retrato do príncipe do mal. Príncipe
quer dizer “o principal”. Maquiavel, n’O Príncipe, buscou a unificação da
Itália. Cortejou os Sforzas, os Médicis, os Cortiollis, os Cavalcantis, e
ninguém lhe deu ouvidos. Isso porque tais famílias importantes já estavam
virando a página em termos de em que se dedicar. O mundo feudal já estava em
fins, e os Médicis, por exemplo, já estavam na transição para o capitalismo. Eram
grandes banqueiros. Não quiseram se arriscar a seguir a sugestão de Maquiavel
dada no livro porque teriam que promover guerra contra tudo e contra todos. Teriam
que fazer guerra simultânea contra o barão da terra, contra os príncipes
existentes, contra as autonomias municipais e também contra o Papa. O que Sun
Tzu recomenda, há mais de 5000 anos, n'A
Arte da Guerra é que nunca se faça guerra em duas frentes ao mesmo tempo. Os
contendores irão se unificar contra quem os ataca simultaneamente.
A rigor, Napoleão Bonaparte, cerca de 400 anos depois, foi
derrotado por duas coisas: pelo ego e pelo acaso. Foi derrotado pela terceira
coalizão. Enfrentou o mundo todo contra si em três oportunidades, sendo que só
sucumbiu na terceira, na batalha de Waterloo. Nas duas primeiras todo o mundo
estava contra ele, e não perdeu um confronto.
Falamos de Napoleão porque pode ter sido um dos maiores
leitores de Maquiavel. Leu e releu várias vezes O Príncipe. Existe até uma
edição chamada “O Príncipe de Maquiavel comentado por Napoleão Bonaparte”. O
sentido das notas de Napoleão em Maquiavel foi o de desorganizá-lo. Napoleão
viveu o poder, e considerou o cientista político italiano um sujeito fora da
realidade.
O propósito d’O Príncipe foi restaurar a hegemonia maior. Platão
queria ser rei, enquanto Maquiavel gostaria de ser criador de reis.
Outro que seguiu Maquiavel foi Benito Mussolini.
Na história, quem “limpou a barra” de Maquiavel foi
Rousseau. O professor não tem certeza se é verdadeira a interpretação, mas
inteligente é. Ele tinha uma interpretação inteligentíssima de Maquiavel; mas o
professor não tem certeza se tal interpretação é verdadeira. A essência dessa
interpretação de Rousseau, no entanto, é que Maquiavel é um autor em camadas. Uma coisa é o título
evidente de Maquiavel, e outra coisa são os sonhos secretos dele. Uma das
interpretações é que Maquiavel era republicano e democrata! Pasmem. O que
Maquiavel faz é ensinar o príncipe do povo e mostra como agem seus inimigos
históricos.
O que Maquiavel fez foi se antecipar, em quase 500 anos, em
um conceito que Max Weber iria elaborar: o conceito de tipo ideal: a realidade é escura e caótica. Não poderemos
diretamente conhecê-la. Só revela fragmentos díspares que jamais formarão uma
unidade. Se quisermos conhecer, teremos que purificar a realidade. Construir
tipos sobre os objetos que queiramos estudar. Daqui vem o conceito de tipo
ideal: um constructo da razão que cria a realidade, constructo que é a essência
de cada coisa. O que Maquiavel fez, na verdade, foi construir um tipo ideal,
mais especificamente um tipo ideal de príncipe.
Maquiavel era da banda frágil da família. Seu pai havia
perdido terras, e passara a viver de favores da nobreza, e devia numerosos
impostos à cidade-Estado de Florença, e foi privado de seu direito de viver à
moda aristocrática. Foi estudar história, logica, latim, tudo desde muito cedo.
Não foi aos estudos superiores. Tornou-se advogado autodidata, como seu pai. Seu
irmão teve um destino religioso.
Os ricos da região estavam se desvinculando da terra, e
Maquiavel se colocou no mundo dos serviços. Só que vai ter uma reação mais
orgânica com o Estado: será tesoureiro de Florença, durante certo tempo.
Florença é capital da prosperidade na Europa nessa época. É a nova Atenas. Ali
criam um ambiente de alta ilustração. Reúne em torno de si alguns dos maiores
sábios da ciência e da arte renascentista. Os Médici são protetores de
Michelangelo, de Rafael, de Galileu Galilei... Todos os gênios do renascimento.
São os patronos das artes, das ciências, de tudo.
Florença vive sob a égide dos Médicis. Cosimo de Médici, o
chefe da família, reinou a cidade, deixando um grande legado. Construiu um
grande poder, e era o próprio símbolo do maquiavelismo. Faz no poder aquilo que
Maquiavel mais sonhava. Maquiavel não trabalhou sob as asas dos Médicis, mas
teve chance de trabalhar com Cesare Bórgia, filho de Alexandre VI, um dos mais
beligerantes papas. Cesare, que também foi comandante militar, foi motivo de
muita excitação de Maquiavel, que viu no líder um candidato perfeito para se
tornar o príncipe conforme havia idealizado.
Bórgia se envolveu em dezenas de batalhas políticas
sangrentas, e Maquiavel autoriza moralmente todas essas torpezas porque está rompido
com Aristóteles: a política para Aristóteles é a arte de bem governar. Quem não bem
governa está fazendo politiquice. Para Maquiavel, política é a arte de governar, simplesmente. Nada de
carga valorativa. O objetivo do príncipe deve ser permanecer no poder. Um
conselho que ele deu foi: o bem se faz aos poucos, o mal se faz de vez. Daí se
tira a ideia de que os fins justificam os meios. Contemporaneamente, príncipes
seriam os ditadores africanos. Criou, em certo sentido, a psicologia política.
Os Médicis caíram três vezes do poder. Um bispo, que havia
sido levado por eles para Florença, grande pregador, chamado Girolamo
Savonarola, driblou nos Médicis, e dominou Florença. Criou uma teocracia na
cidade. Os Médicis reagiram e eventualmente o derrubaram, mas outras facções
assumiram a cidade. Numa dessas administrações Maquiavel subiu ao cargo de
segundo secretário de Florença. Passou 15 anos no poder, e, depois, quando os
Médicis voltam ao poder, jogaram-no fora. Quando outras facções sobem,
Maquiavel aproveita. Quando os Medicis voltam, Maquiavel é defenestrado.
A maior separação em Maquiavel é a redefinição do que seja
governar. Dissocia a ética da política.
Príncipe de ouro para Maquiavel é o que conquista o poder
para permanente exercício.
Como o príncipe vence na história? Na guerra, claro. A nova
guerra para Maquiavel é a guerra da cidade contra o campo. Quer livrar a Terra
dos barões de terras. Artilharia da cidade contra cavalaria do campo.
Traz, no príncipe perfeito, uma zoomorfia: a força do leão
combinada com a astúcia da raposa. Tradicionalmente o príncipe é leão ou
raposa. O temperamento de leão não permitia que se fosse satisfatoriamente
raposa, e vice-versa. Maquiavel idealizava o príncipe que unisse esses dois
atributos.
Para Maquiavel, não basta ao príncipe ter a virtude de chefe
de Estado ou de líder militar. Se for desafortunado, não conseguirá ser
príncipe.
Relações de Maquiavel com o Estado: Maquiavel funda a estatolatria moderna. O Estado é tudo
para Maquiavel. Entre a sociedade e o Estado, Maquiavel escolheu totalmente o
Estado. O que ele quer é o poder. Que Estado é esse, para Maquiavel? Estado
Nacional Soberano. É o poder que se exerce a serviço da manutenção do príncipe
em seus interesses, o desenvolvimento do principado. Maquiavel é obcecado pela
ideia de permanência no poder. Não é fundador do desenvolvimentismo. ¹
Direito, para
Maquiavel, é um instrumento de poder.
É aquilo que o poder defende como sendo de direito! O Direito é um instrumento
na mão do Estado, um instrumento de poder.
Maquiavel não sonha com justiça.
A única justiça que Maquiavel reconhece é a justiça histórica que se deve a
Roma vencida pelos bárbaros. A única forma em que isso seria possível seria
pela restauração do Império Romano. Maquiavel não é judicialista, e se preocupa
muito mais com hegemonia e segurança. É filósofo da guerra. Não houve nenhuma
relação com a paz. Paz para Maquiavel é a Pax
Romana: paz subsequente ao banho de sangue, em que não há mais contendores,
e o vencedor submete o oprimido.
No final do século XVIII um padre escreveu um livro chamado
diálogo de Maquiavel e Montesquieu nos infernos.
Esse é Maquiavel. É fundador da
Filosofia do Estado moderno.
Um filósofo francês chamado
Jacques Marietan (1882 – 1973) chegou a dizer que, para que o mundo
contemporâneo fosse pacífico e justo, deveríamos começar por jogar pela janela
o pensamento de Nicolau Maquiavel.