Filosofia do Direito

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Nicolau Maquiavel



Vamos conversar hoje sobre Maquiavel. Maquiavel, a rigor, foi o primeiro filósofo do Direito e da política no mundo moderno. Com ele começaremos uma galeria de filósofos da modernidade.

Tudo passa sobre a Terra, até a uva, dizia Aristóteles! Maquiavel é uma figura prostrada em posição de vanguarda por ser, do ponto de vista conceitual, o fundador do Estado moderno.

Maquiavélico é um adjetivo exatamente vindo dele. Nicolau é originário da baixa nobreza, é por inteiro um homem do renascimento, nascido em Florença, que é, então, uma cidade-Estado já que não existe, a rigor, uma Itália do ponto de vista de uma unidade nacional. Isso só viria no início do século XX com o Tratamento de Latrão, resolvendo-se uma celeuma territorial entre República e Igreja.

Na Itália de Maquiavel havia feudos e baronias em um regime de superfragmentação. Quando se volta à cidade e ao comércio, uma das sedes esse renascimento urbano é a Itália. Ela tem cidades portuárias e mercantis de alta consistência. A peculiaridade é que essa afirmação das cidades portuárias se dá num território profundamente fragmentado. O desafio de Maquiavel é: dado que ele compreende o significado de Estado, de nação, de soberania. O que ele sonha para sua Itália? Transformar em uma unidade estatal, nacional e soberana. Transformar a Itália num Estado-nação soberano. Maquiavel prefigura que os que se unificarem mais cedo melhor estarão posicionados na concorrência colonial que adviria pouco depois. Os que cedo se unificarem nacional e soberanamente poderão desfrutar da hegemonia do mundo moderno.

Quem chega tarde à unificação nacional na Europa não sentará à mesa do banquete colonial. Quem se unificar tarde do ponto de vista estatal e nacional na Europa não terá espaço maior no tocante à aspiração, à conquista e ao exercício da hegemonia. Quem não o fizer só terá um caminho: tentar, pela guerra, redividir o mundo, que já está dividido.

A preocupação maior de Maquiavel resulta do fato de que ele está testemunhando as unificações nacionais à sua volta, especialmente em Portugal, Espanha, Inglaterra e Suíça. Ao mesmo tempo há o calor do acontecimento morte de Joana D’Arc, que comete uma extraordinária façanha, que era liderar um movimento pela unificação do território francês. A morte de Joana é a própria vitória francesa, e significa a própria impossibilidade da ocupação inglesa. Dela nasce o fenômeno identitário dos franceses, a França dotada de um só exército, a submissão a uma só autoridade, e daí temos a emergência do Estado Nacional soberano como resultado direto dessa vigorosa aparição histórica de Joana D’Arc.

O que Maquiavel mais queria era que em sua Itália houvesse uma figura como Joana. A frustração maior de Maquiavel é que ele não verá, em vida, a unificação nacional, e compreende que a hegemonia está sendo disputada, e tem a percepção de que sua maior ambição não está em processo de concretização. O que ele gostaria era:

  1. Ver a unificação da Itália, fazendo com que transformasse num Estado Nacional soberano;
  2. Ver a Itália conquistar a hegemonia no mundo moderno, se necessário pela guerra;
  3. Da afirmação do poder universal da Itália, a restauração do Império Romano.

Com apenas essas três pequenas coisas ele se contentaria.

Mas o que acontece é que o Império Romano não volta, a Itália ainda está imbrincada em conflitos com Portugal e Espanha. Não verá a unificação.

Outro problema era a Sicília. Não havia sentimento italiano lá. O sentimento regional ao sul era ainda separatista. Naquele momento os sicilianos ainda não haviam se convencido que seu destino histórico era a Itália. Mas também houve demandas separatistas na Espanha, na Irlanda, na Escócia e na Holanda.

Maquiavel, sobre esse ponto de vista, é o menos realizado, feliz e satisfeito dos maquiavélicos! Os sonhos maiores do ponto de vista político foram todos frustrados. A Itália não se tornou hegemônica e não restaurou o Império Romano.

Maquiavel morreu aos 54 anos, e passou 15 anos no poder como chanceler de Florença. Foi destituído, e isso lhe causou uma profunda tristeza. Tentou voltar à chancelaria, e teve óbices cada vez maiores do ponto de vista da emergência pessoal no cenário político de Florença, que chegou a fazer um jogo que o levou a ter desconfiança de todos. Passou o resto dos dias lambendo o chão dos que voltaram a dominar Florença, a família Médici. O máximo que lhe conseguem é a condição de bolsista com a tarefa de escrever a história de Florença. Voltou a receber missões diplomáticas pontuais, nunca muito grandes.

Maquiavel escritor e Maquiavel pensador: o pensador dedica os dez últimos anos de sua vida à escrita. Vive uma vida medíocre para suas aspirações. Outrora havia recebido pessoas importantes de outras localidades, e, deposto, passou a fazer gestão de pessoas em sua fazenda. Entregava seu tempo livre para passar restos de manhãs numa taberna que ligava sua propriedade a outras. Lidava ali com as melhores pessoas: jogadores e ébrios.

Vejam o que é a piração: à noite, despia-se das roupas, tomava banho, e vestia a roupa de chanceler. Trancava-se no gabinete e se e punha-se a escrever. Foi ali que escreveu verdadeiramente sua obra. Foi a obra de um politicólogo, historiador, cientista político, sociólogo, mas menos de filósofo, que se volta para o Estado e para o poder.

O historiador é a maior vocação de Maquiavel. Para outros é um livro que deve ser visto com restrição, porque ele tomou o caminho deliberado de agradar os poderosos. Essa foi a história de Florença. Por isso alguns o veem com grande reserva. Consideram que há histórias mais imparciais de Florença.

Maquiavel é autor de um clássico absolutamente extraordinário chamado Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, e escreve uma obra prima de Historiologia, de Filosofia Política, e também de resgate, do ponto de vista da narrativa do sentido das instituições políticas romanas. Maquiavel também foi teatrólogo, de grande sucesso. Mandrágora é o texto mais conhecido dele. E foi poeta também, mas se considerava maior do que Dante Alighieri. Entretanto, ele era o único que se achava nessa condição. Poeta foi a coisa que ele menos foi. Foi filósofo em sentido geral.

O que fica de maneira mais evidente em Maquiavel foi um livro chamado O Príncipe, escrito em 1513, publicada em 1532, depois de sua morte. Divulgou em cópias manuscritas, mas nunca viu publicado. Só foi tipografado cinco anos depois de sua morte. Chamava-se De Principatibus. Significa Do Principado.

A obra sugere que Maquiavel estudou uma obra de São Tomás de Aquino chamada O Reino, em que pinta a figura de um príncipe do bem. Maquiavel pinta o retrato do príncipe do mal. Príncipe quer dizer “o principal”. Maquiavel, n’O Príncipe, buscou a unificação da Itália. Cortejou os Sforzas, os Médicis, os Cortiollis, os Cavalcantis, e ninguém lhe deu ouvidos. Isso porque tais famílias importantes já estavam virando a página em termos de em que se dedicar. O mundo feudal já estava em fins, e os Médicis, por exemplo, já estavam na transição para o capitalismo. Eram grandes banqueiros. Não quiseram se arriscar a seguir a sugestão de Maquiavel dada no livro porque teriam que promover guerra contra tudo e contra todos. Teriam que fazer guerra simultânea contra o barão da terra, contra os príncipes existentes, contra as autonomias municipais e também contra o Papa. O que Sun Tzu recomenda, há mais de 5000 anos, n'A Arte da Guerra é que nunca se faça guerra em duas frentes ao mesmo tempo. Os contendores irão se unificar contra quem os ataca simultaneamente.

A rigor, Napoleão Bonaparte, cerca de 400 anos depois, foi derrotado por duas coisas: pelo ego e pelo acaso. Foi derrotado pela terceira coalizão. Enfrentou o mundo todo contra si em três oportunidades, sendo que só sucumbiu na terceira, na batalha de Waterloo. Nas duas primeiras todo o mundo estava contra ele, e não perdeu um confronto.

Falamos de Napoleão porque pode ter sido um dos maiores leitores de Maquiavel. Leu e releu várias vezes O Príncipe. Existe até uma edição chamada “O Príncipe de Maquiavel comentado por Napoleão Bonaparte”. O sentido das notas de Napoleão em Maquiavel foi o de desorganizá-lo. Napoleão viveu o poder, e considerou o cientista político italiano um sujeito fora da realidade.

O propósito d’O Príncipe foi restaurar a hegemonia maior. Platão queria ser rei, enquanto Maquiavel gostaria de ser criador de reis.

Outro que seguiu Maquiavel foi Benito Mussolini.

Na história, quem “limpou a barra” de Maquiavel foi Rousseau. O professor não tem certeza se é verdadeira a interpretação, mas inteligente é. Ele tinha uma interpretação inteligentíssima de Maquiavel; mas o professor não tem certeza se tal interpretação é verdadeira. A essência dessa interpretação de Rousseau, no entanto, é que Maquiavel é um autor em camadas. Uma coisa é o título evidente de Maquiavel, e outra coisa são os sonhos secretos dele. Uma das interpretações é que Maquiavel era republicano e democrata! Pasmem. O que Maquiavel faz é ensinar o príncipe do povo e mostra como agem seus inimigos históricos.

O que Maquiavel fez foi se antecipar, em quase 500 anos, em um conceito que Max Weber iria elaborar: o conceito de tipo ideal: a realidade é escura e caótica. Não poderemos diretamente conhecê-la. Só revela fragmentos díspares que jamais formarão uma unidade. Se quisermos conhecer, teremos que purificar a realidade. Construir tipos sobre os objetos que queiramos estudar. Daqui vem o conceito de tipo ideal: um constructo da razão que cria a realidade, constructo que é a essência de cada coisa. O que Maquiavel fez, na verdade, foi construir um tipo ideal, mais especificamente um tipo ideal de príncipe.

Maquiavel era da banda frágil da família. Seu pai havia perdido terras, e passara a viver de favores da nobreza, e devia numerosos impostos à cidade-Estado de Florença, e foi privado de seu direito de viver à moda aristocrática. Foi estudar história, logica, latim, tudo desde muito cedo. Não foi aos estudos superiores. Tornou-se advogado autodidata, como seu pai. Seu irmão teve um destino religioso.

Os ricos da região estavam se desvinculando da terra, e Maquiavel se colocou no mundo dos serviços. Só que vai ter uma reação mais orgânica com o Estado: será tesoureiro de Florença, durante certo tempo. Florença é capital da prosperidade na Europa nessa época. É a nova Atenas. Ali criam um ambiente de alta ilustração. Reúne em torno de si alguns dos maiores sábios da ciência e da arte renascentista. Os Médici são protetores de Michelangelo, de Rafael, de Galileu Galilei... Todos os gênios do renascimento. São os patronos das artes, das ciências, de tudo.

Florença vive sob a égide dos Médicis. Cosimo de Médici, o chefe da família, reinou a cidade, deixando um grande legado. Construiu um grande poder, e era o próprio símbolo do maquiavelismo. Faz no poder aquilo que Maquiavel mais sonhava. Maquiavel não trabalhou sob as asas dos Médicis, mas teve chance de trabalhar com Cesare Bórgia, filho de Alexandre VI, um dos mais beligerantes papas. Cesare, que também foi comandante militar, foi motivo de muita excitação de Maquiavel, que viu no líder um candidato perfeito para se tornar o príncipe conforme havia idealizado.

Bórgia se envolveu em dezenas de batalhas políticas sangrentas, e Maquiavel autoriza moralmente todas essas torpezas porque está rompido com Aristóteles: a política para Aristóteles é a arte de bem governar. Quem não bem governa está fazendo politiquice. Para Maquiavel, política é a arte de governar, simplesmente. Nada de carga valorativa. O objetivo do príncipe deve ser permanecer no poder. Um conselho que ele deu foi: o bem se faz aos poucos, o mal se faz de vez. Daí se tira a ideia de que os fins justificam os meios. Contemporaneamente, príncipes seriam os ditadores africanos. Criou, em certo sentido, a psicologia política.

Os Médicis caíram três vezes do poder. Um bispo, que havia sido levado por eles para Florença, grande pregador, chamado Girolamo Savonarola, driblou nos Médicis, e dominou Florença. Criou uma teocracia na cidade. Os Médicis reagiram e eventualmente o derrubaram, mas outras facções assumiram a cidade. Numa dessas administrações Maquiavel subiu ao cargo de segundo secretário de Florença. Passou 15 anos no poder, e, depois, quando os Médicis voltam ao poder, jogaram-no fora. Quando outras facções sobem, Maquiavel aproveita. Quando os Medicis voltam, Maquiavel é defenestrado.

A maior separação em Maquiavel é a redefinição do que seja governar. Dissocia a ética da política.

Príncipe de ouro para Maquiavel é o que conquista o poder para permanente exercício.

Como o príncipe vence na história? Na guerra, claro. A nova guerra para Maquiavel é a guerra da cidade contra o campo. Quer livrar a Terra dos barões de terras. Artilharia da cidade contra cavalaria do campo.

Traz, no príncipe perfeito, uma zoomorfia: a força do leão combinada com a astúcia da raposa. Tradicionalmente o príncipe é leão ou raposa. O temperamento de leão não permitia que se fosse satisfatoriamente raposa, e vice-versa. Maquiavel idealizava o príncipe que unisse esses dois atributos.

Para Maquiavel, não basta ao príncipe ter a virtude de chefe de Estado ou de líder militar. Se for desafortunado, não conseguirá ser príncipe.

Relações de Maquiavel com o Estado: Maquiavel funda a estatolatria moderna. O Estado é tudo para Maquiavel. Entre a sociedade e o Estado, Maquiavel escolheu totalmente o Estado. O que ele quer é o poder. Que Estado é esse, para Maquiavel? Estado Nacional Soberano. É o poder que se exerce a serviço da manutenção do príncipe em seus interesses, o desenvolvimento do principado. Maquiavel é obcecado pela ideia de permanência no poder. Não é fundador do desenvolvimentismo. ¹

Direito, para Maquiavel, é um instrumento de poder. É aquilo que o poder defende como sendo de direito! O Direito é um instrumento na mão do Estado, um instrumento de poder.

Maquiavel não sonha com justiça. A única justiça que Maquiavel reconhece é a justiça histórica que se deve a Roma vencida pelos bárbaros. A única forma em que isso seria possível seria pela restauração do Império Romano. Maquiavel não é judicialista, e se preocupa muito mais com hegemonia e segurança. É filósofo da guerra. Não houve nenhuma relação com a paz. Paz para Maquiavel é a Pax Romana: paz subsequente ao banho de sangue, em que não há mais contendores, e o vencedor submete o oprimido.

No final do século XVIII um padre escreveu um livro chamado diálogo de Maquiavel e Montesquieu nos infernos.

Esse é Maquiavel. É fundador da Filosofia do Estado moderno.

Um filósofo francês chamado Jacques Marietan (1882 – 1973) chegou a dizer que, para que o mundo contemporâneo fosse pacífico e justo, deveríamos começar por jogar pela janela o pensamento de Nicolau Maquiavel.

  1. Aqui o professor fez uma comparação com São Tomás de Aquino, especialmente com relação à ideia de busca do permanente desenvolvimento, para que a sociedade seja um todo de todos.