Filosofia do Direito

quinta-feira, 7 de abril de 2011

São Tomás de Aquino - conclusão


Aqui encerramentos a Filosofia medieval, e, a partir do próximo encontro, chegaremos à aurora da modernidade. Amanhã falaremos de Renascimento, e começaremos a tratar daqueles que definiram a Filosofia política e jurídica da modernidade, como Nicolau Maquiavel.

Vimos que Tomás de Aquino era um personagem de 1200, nascido na Sicília, no sul da Itália, de Nápoles, de uma família amplamente nobre. Era da nobreza ítalo-germânica, simultaneamente sobrinho de Conde D'Aquino e Frederico Barbarroxa. Era um tempo de litígio aberto entre a Igreja e o império. Esse litígio tratava da luta pelo poder econômico e o político. Era uma luta que, afinal, tinha um ponto de maior sensibilidade: os poderes a serem exercidos pela Igreja, quer o espiritual quer o temporal, significavam que o poder laico, civil, teria outro senhor e um outro destinatário. O império, com o poder civil, competia com o poder temporal e espiritual da Igreja. A competência, em poder espiritual, pertencia à Igreja e portanto ao papa. Mas este não tinha nenhuma legitimidade para exercer os poderes temporais. É em torno dessa questão que se deu esse conflito de mais de quatro séculos. O papado, pelo menos entre 800 e 1200, buscava concentrar esses poderes de maneira aguda e, ao fazê-lo, multiplicou a presença de reinos cristãos no mundo. Levou o império a ser subordinado do papa, ou seja, que este tenha súditos, os reis. Por isso os reinos eram cristãos: sem aval da Igreja, sem realeza.

A equação de poder que se estabelecia é papa + rei; papa primário, rei secundário, mas juntos dominavam o poder local e o poder circunscrito aos feudos. O poder do barão da terra não se universalizaria. Quem tinha poder extrafeudo era a Igreja, assegurado pela realeza. O rei encontraria, no futuro, outro personagem para se aliar que não o papa: a burguesia. Esse parceiro histórico depois iria cumprir, junto à realeza, o papel de sócio para que ela estabeleça o poder sobre o mundo. Um dia a burguesia agradeceu e levou a realeza à guilhotina.

Quando a burguesia assumisse o poder de império sobre o mundo, a sociedade não seria mais feudal, mas capitalista. A forma de produção da sociedade mudaria, deixaria de ser feudal. O resultado disso foi o Estado moderno no Direito Liberal. Chegou-se a ele lá passo a passo.

O que queremos dizer de essencial aqui é que o litigio entre Igreja e império era que a vontade da realeza, que mandava nos entes autônomos, era subordinada ao poder de império do papado, com sua capacidade econômica, de receber doações de grande parte da Europa ocidental, também em sua capacidade de estabelecer o Direito Canônico, de reclamar o poder como de origem divina, e também no fato de que a Igreja era uma agência universal num mundo de autarquias, que eram os feudos.

Por isso os filósofos medievais encerraram nessa legenda clássica o que significava o feudalismo: cada um em seu quadrado. Essa agência universal, organizada em rede, passou a dispor de uma forma ainda maior de controle sobre as ideias, especialmente com a criação das Universidades. A Igreja hegemonizava o mundo, tendo no rei um sócio menor. Por isso que Frederico Barbarroxa, tio de Tomás de Aquino, estava a serviço da Igreja, bem como Conde D'Aquino, também tio do filósofo. As famílias estavam em posição privilegiada num momento em que o papado e a realeza está forte; e Tomás de Aquino concorrerá para isso pois, de um lado, ele não só realizaria o projeto da família, que era levar um de seus membros ao papado, como também chegou a ser assessor do papa e ganhou grande prestigio.

Esse Tomás de Aquino era, portanto, um cidadão aparentemente bobalhão, que havia fugido e depois arrebanhado pelos pregadores, detido pela família, vivido em cárcere privado de onde depois saiu para realizar sua vocação teórica e teológica em Nápoles, Roma, e Paris.

Em Paris Tomás encontra Alberto Magno (Alberto da Saxônia, 1193/1206 – 1280), grande intelectual, lógico, teórico e filósofo do tempo medieval, canonizado no século XX, alguém que se tornaria reitor de um seminário da cidade, onde Tomás de Aquino completaria sua educação e também seria professor, ensinando as lições de alto prestígio de Magno, que foi quem abriu as portas da Universidade para Tomás de Aquino.

Exerceu lá o magistério, e também em Nápoles, e entre Paris e Nápoles resolve seu destino pedagógico. Perto da morte, Tomás de Aquino já estava em estado de completa demência, mas ainda assim o Bispo de Paris convocou o Concílio, e escreveu 13 teses contra Tomás, com o objetivo de fazê-lo ser considerado, depois da morte, herege. Falhou. Alberto Magno foi advogado de São Tomás de Aquino em relação a essas acusações. A Igreja lhe conferiu, post mortem, o título de Doutor da Igreja, e depois transformou seu pensamento na doutrina oficial da Igreja Católica.

O que esse pensamento tem a ver com o Direito? São Tomás de Aquino reflete uma mudança na postura do poder dominicano. Esse era um poder que havia nascido como ordem militar e que, depois, patrocinou um banho de sangue, o aniquilamento dos carpocratas, que representavam uma seita, operante na Itália, na França e na Alemanha, que propunha outra versão para o Cristianismo, fundada no princípio do Cristianismo primitivo. Depois de acabar com os carpocratas, a ordem dominicana mudou de natureza, transformando-se em ordem educacional, educando, entre os quais, Tomás de Aquino.

Como produto acabado dessa tarefa, concorrendo com o esforço que Alberto havia feito, Tomás de Aquino o auxiliou no sentido de traduzir, comentar e explicar Aristóteles, que está sendo resgatado, neste momento, pelo mundo medieval pelos árabes. Surgiu grande controvérsia na Igreja sobre a admissão de Aristóteles como guru.

Tomás também escreveu livros comentando a doutrina de Aristóteles, e terminou por completar um ciclo importante para a Igreja: cristianizar Aristóteles. Santo Agostinho cristianizou Platão, Justino cristianizou Sócrates, e São Tomás de Aquino cristianizou Aristóteles. Assim, construiu uma visão teológica e filosófica do mundo, segundo a razão. É o desembarque da Filosofia na Liturgia.

Lembrem-se que, quando estudamos Santo Agostinho, vimos que o problema da Patrística era que a fé não podia ser revelada, mas que ser conhecimento. A fé teria de ser encarada mais como um conhecimento teológico, mais filosófico. A Teologia o centro do conhecimento, com auxílio da Filosofia. A Filosofia seria parte necessária na construção do conhecimento teológico. E, sendo parte necessária, temos um racionalismo de Platão e de Aristóteles desembarcando agora na era medieval, com São Tomás de Aquino se debruçando tá tarefa de buscar as provas racionais da existência de Deus. Assim, ele antecipou o racionalismo da Filosofia moderna, Filosofia que é essencialmente racionalista, usando a razão como cerne de tudo. Especialmente na Filosofia iluminista.

É uma Filosofia que, naturalmente, foi se polarizando com o avanço dos séculos. Já no século XIX, à beira do XX, passou a haver uma demanda na Filosofia moderna entre razão e desrazão. Especialmente com os trabalhos de Nietzsche e Schopenhauer no século XIX.

É São Tomás de Aquino que prepara a Filosofia do mundo moderno.

É preciso que se diga, também, que 1200 foi o primeiro momento em que se quebrou esse monobloco das ideias. Era legítima a concentração de poderes em torno do papado? Esse era o questionamento. Aqui se contestava explicitamente essa ideia. Quem o fará será Dante Alighieri, o poeta da Divina Comédia, poeta da monarquia. Ele distingue os poderes de maneira explicita: poder espiritual e o poder temporal. Idealiza a entrega do poder temporal à sociedade organizada para que esta institua os agentes competentes para seu exercício. Entre eles não haveria representantes do papa, pois este é legítimo exclusivo para o exercício do poder espiritual. Não por acaso Dante foi perseguido e, ao representar a Divina Comédia, colocou todos os perseguidores no inferno.

São Tomás de Aquino, então, do ponto de vista jurídico, se comportou numa perspectiva marcada pela influência de Aristóteles. Tomás refletiu sobre o Direito aristotélico, pensando que poderia utilizar quatro formas de Direito. Pensou nas formas: Direito Divino, Direito Eterno, Direito Natural e Direito Humano.

Sobre o Direito Divino temos já o magistério de Cícero que é o diálogo permanente com Tomás de Aquino, em que sabemos que o Direito Divino decorre dos textos sagrados e da principiologia espiritual. Os livros são mandamentais, repletos de ordenanças, e perpassados por imperativos de justiça. Essa regra é visível na Torá, livro judaico que quer dizer “lei”; na Bíblia, especialmente no Pentateuco; e também visível também no Alcorão, outro livro mandamental. Não por acaso inspira a criação de Estados fundamentalistas.

O Direito Eterno a que Tomás de Aquino se reporta é: Deus é causa primeira, que criou a causa segunda, que é o mundo. Deus não é a causa segunda e não está nela, se ausentou dela. É o Deus a que se chega por meio da razão. Esse Direito Eterno funciona segundo uma legalidade, assentada na mecânica universal: a Terra gira, a maré sobe, o Sol brilha no céu. É o Direito Eterno: a vida do mundo está repleta de leis, e essas leis constituem o Direito.

Terceiro Direito de São Tomás de Aquino é o Direito Natural. Que Direito Natural é esse? Aqui ele estabelece uma diferença entre o Direito Natural dos estoicos, que perpassa Cícero, que já plantara essa semente supervalorizando a razão. Tomás se filia a essa ideia e diz que o Direito Natural é o Direito Natural da razão. É a razão que irá decodificar, no Direito Eterno, conhecendo suas leis, tendo por objeto a coisa em si, transformando-a em coisa para si.

Essa é a razão que permitirá conhecer a razão humana. A razão sabedora de tudo isso, de Deus, da decodificação da mecânica universal, da condição humana irá inspirar a criação do Direito Humano. Aqui que se desembocará no universo social.

Esse Direito Humano é um Direito altamente valorativo de Tomás de Aquino, buscado na tradição aristotélica, segundo a qual a boa-fé é um princípio dos princípios do Direito. Este Direito valorativo exige que esse objeto “lei” seja portador de uma perspectiva promocional do homem em suas circunstâncias. São Tomás de Aquino diz que a lei deve ser obedecida porque é lei, e esta lei é portadora de valores. E se não o for? Ela deverá, de acordo com o pensador, ser repugnada. Não será lei, mas corrupção dela. Aqui, o filósofo santo abre as portas para o direito de resistência ao príncipe opressor, injusto e tirânico, responsável pela legalidade imprópria porque descomprometida com a agenda do bem.

Lei, Direito e justiça para quê? Para transformar a sociedade em um todo de todos. São Tomás é solidarista. Se o príncipe tirânico se serve de uma legalidade tirânica para fraudar essa diretriz, o filósofo ensina que deve-se resistir a esse príncipe desviado buscando-se caminhos para sua deposição.

Mas Tomás não subscreve ao regicídio ou tiranicídio, ou haveria assassinatos políticos tentando conviver com valores cristãos. É o precursor do impeachment. É o caminho jurídico e político para a remoção de um príncipe injusto.

O Direito de resistência teve variantes e críticas, mas teve defensores que alegaram que devia-se lutar e resistir na esfera da justiça, para defender a dignidade humana em todos os meios, inclusive os violentos, com a violência dos oprimidos. Mas não vemos isso em São Tomás de Aquino. Ele está muito mais para um precursor de uma não violência ativa do que a violência dos violentados, que é o caminho posteriormente seguido pelos anarquistas.

O Direito de Tomás de Aquino é perpassado por essa dimensão ética, que só pode ter como signo finalístico a justiça. Esse objeto, a justiça, seria objeto de uma condenação porque se buscou vincular o Direito a outras propostas que não a justiça. Uma delas seria a segurança. Isso se reflete em Maquiavel (1469 – 1527) até Hans Kelsen (1881 – 1973). Mas São Tomás abraçou a vertente da justiça, e escreveu seu Tratado da Justiça por isso.

O pensador estabeleceu uma dialogia reprisando os caminhos aristotélicos quanto à justiça distributiva, comutativa, e chamando a justiça geral de Aristóteles de justiça social, criando um conceito que se tornaria intemporal, com muita felicidade. Justiça social é uma reivindicação universal dos povos decorrente do argumento jurídico de São Tomás de Aquino. Justiça social é o que dela disse Aristóteles e o que dela disse São Tomás de Aquino. Se desenvolveu em Cícero e superdesenvolveu em Tomás de Aquino. É a forma maior de realização do bem humano.

Isso leva à superação da tautologia: um cão correndo atrás do próprio rabo. O bem comum deve ser definido, antes, para que se defina depois a justiça.

Bem comum é a concessão, ao todo homem, e ao homem todo, de um mínimo de bens materiais e espirituais para que consiga prover sua dignidade. É uma regra totalmente ética, mostrando o sentido harmônico do argumento jurídico tomista. Ao mesmo tempo essa regra permite compreender que o Direito e a justiça de Tomás de Aquino suprem altas exigências do ser humano. A rigor, esta é uma caridade que não foi satisfeita antes, em nenhum lugar da Terra, mesmo onde a democracia social se superdesenvolveu até hoje.

Bem comum, ideia que funda o pensamento solidarista, era a preocupação maior de Tomás de Aquino. É o desaguadouro moral de sua preocupação jurídica e de justiça. Justiça é para ser vivida, e não para ser aspirada. O teste de verdade da justiça é a vivência social. A vida é solidária ou não é? A vida social promove a condição humana em sua dignidade ou não? É a pergunta que orienta se há ou não justiça em determinado ambiente.

Há confronto entre o pensamento de São Tomás de Aquino e o espírito da modernidade, pois esta é permeada de um egoísmo que já habita o inconsciente coletivo das pessoas.

O bem comum precisa de desenvolvimento, dizia São Tomás de Aquino. Ele não pensa a sociedade como um ser estático, mas como um ser vivo em ampliação de possibilidades, especialmente na integração dos marginalizados. O bem comum precisa de permanente difusão porque a maior cautela que pode haver é a conquista de consciências: criar uma consciência solidária, e criar práticas que o confirmem, para se seja feita uma reeducação do Estado para que se possa vivenciar a justiça. Estas exigências resultam de uma percepção política, e foi política a pergunta que o rei de Chipre fez: “qual o meio e o modo de agir para que o príncipe seja verdadeiramente cristão?” Assim Aquino escreveu uma carta-resposta, que se tornou uma obra prima, que recebeu o nome de Carta ao Rei de Chipre (ou “Carta do Reino”). Ali ele traçou o perfil do príncipe comprometido com uma agenda ética e jurídica promocional da dignidade. Queria, portanto, que esse desaguadouro se confirmasse num Estado social de Direito. Que Direito? Permeado pela ética. Que justiça? Justiça como expressão aguda do bem comum. Que paz? Aquela consequente a afirmação do bem comum, pois, quanto mais comum for o bem, maior será a possibilidade de paz perduradoura. Partilha-se o bem de vida entre todo homem e o homem todo.

É um pensamento universalista, uma proposição universal. Não é uma solução local.

No Renascimento, o pensamento de São Tomás de Aquino é resgatado; nesse contexto criou-se uma segunda Scholastica, portanto, uma corrente neotomista, e resgatam-se as ideias do filósofo, criando o germe do Direito Moderno. É aqui estão alguns dos fundadores do Direito moderno, resgatando as ideias de Tomás. Estão teólogos e juristas espanhóis. Francisco Suárez (1548 – 1617), fundador do Direito Internacional; Bartolomé de las Casas (1488 – 1566), Bispo de Chiapas no México, fundador dos direitos humanos; Luís de Molina (1535 –1600), fundador do Direito Econômico; toda a Escola que, a partir de Salamanca, criará uma dimensão social do Direito moderno, uma contraposição do pensamento católico ao pensamento evangélico, a Contrarreforma como resposta à Reforma Protestante. A Reforma criou o cabedal de pensamentos jurídicos a partir de Hugo Grotius, Hobbes, Locke, Hegel, Kant e Rousseau.¹ Todos protestantes, ao menos a princípio. Da Reforma e do Renascimento há uma linha de pensamento evangélico que será contraditada pelo pensamento católico, que advém da II Scholastica.

É o pensamento neotomista que perpassaria principalmente o século XX, com aguda manifestação a partir da segunda guerra mundial. Os principais colaboradores dessa dispersão da Filosofia neotomista foram os espiritualistas franceses, a exemplo de Jacques Maritain (1882 - 1973). Criou um movimento universal a partir da França.

O que o Brasil tem a ver com esse pensamento tomista? O primeiro livro de Direito escrito no Brasil foi influenciado pelas ideias de Tomás de Aquino. Foi escrito em Ouro Preto, Minas Gerais, por um poeta chamado Tomás Antônio Gonzaga (1744 – 1810). Personagem da Inconfidência Mineira, autor de Marília de Dirceu, que devemos ter estudado em tempos pretéritos; era uma obra do Arcadismo mineiro. Gonzaga escreveu uma obra chamada Tratado de Direito Natural, e as ideias de Tomás de Aquino se desdobram aqui para se projetarem ao século XIX. Já no século XX há uma floração de filósofos neotomistas. Vamos dizer somente alguns deles: Alceu de Amoroso Lima (1893 – 1983), André Franco Montoro (1916 – 1999) e Goffredo Teles Junior (1915 – 2009).

E atores políticos visíveis porque tinham uma visão tomista do mundo, como Dom Helder Câmara (1909 – 1999), Arcebispo de Olinda e Recife. Foi chamado pela Universidade de Harvard para ser conferencista no seminário de sete séculos da morte de São Tomás de Aquino. Outro ator político foi uma figura chamada Herbert José de Sousa, o Betinho (1935 – 1997), que fez campanhas contra a fome.

  1. Havia mais dois nomes aqui, antes de Hegel.