Vimos que Tomás de Aquino era um personagem de 1200, nascido
na Sicília, no sul da Itália, de Nápoles, de uma família amplamente nobre. Era
da nobreza ítalo-germânica, simultaneamente sobrinho de Conde D'Aquino e
Frederico Barbarroxa. Era um tempo de litígio aberto entre a Igreja e o império.
Esse litígio tratava da luta pelo poder econômico e o político. Era uma luta
que, afinal, tinha um ponto de maior sensibilidade: os poderes a serem
exercidos pela Igreja, quer o espiritual quer o temporal, significavam que o poder
laico, civil, teria outro senhor e um outro destinatário. O império, com o
poder civil, competia com o poder temporal e espiritual da Igreja. A
competência, em poder espiritual, pertencia à Igreja e portanto ao papa. Mas
este não tinha nenhuma legitimidade para exercer os poderes temporais. É em
torno dessa questão que se deu esse conflito de mais de quatro séculos. O papado,
pelo menos entre 800 e 1200, buscava concentrar esses poderes de maneira aguda
e, ao fazê-lo, multiplicou a presença de reinos cristãos no mundo. Levou o império
a ser subordinado do papa, ou seja, que este tenha súditos, os reis. Por isso
os reinos eram cristãos: sem aval da Igreja, sem realeza.
A equação de poder que se estabelecia é papa + rei; papa primário,
rei secundário, mas juntos dominavam o poder local e o poder circunscrito aos
feudos. O poder do barão da terra não se universalizaria. Quem tinha poder extrafeudo
era a Igreja, assegurado pela realeza. O rei encontraria, no futuro, outro
personagem para se aliar que não o papa: a burguesia. Esse parceiro histórico depois
iria cumprir, junto à realeza, o papel de sócio para que ela estabeleça o poder
sobre o mundo. Um dia a burguesia agradeceu e levou a realeza à guilhotina.
Quando a burguesia assumisse o poder de império sobre o
mundo, a sociedade não seria mais feudal, mas capitalista. A forma de produção
da sociedade mudaria, deixaria de ser feudal. O resultado disso foi o Estado
moderno no Direito Liberal. Chegou-se a ele lá passo a passo.
O que queremos dizer de essencial aqui é que o litigio entre
Igreja e império era que a vontade da realeza, que mandava nos entes autônomos,
era subordinada ao poder de império do papado, com sua capacidade econômica, de
receber doações de grande parte da Europa ocidental, também em sua capacidade de
estabelecer o Direito Canônico, de reclamar o poder como de origem divina, e
também no fato de que a Igreja era uma agência universal num mundo de
autarquias, que eram os feudos.
Por isso os filósofos medievais encerraram nessa legenda
clássica o que significava o feudalismo: cada
um em seu quadrado. Essa agência universal, organizada em rede, passou a
dispor de uma forma ainda maior de controle sobre as ideias, especialmente com
a criação das Universidades. A Igreja hegemonizava o mundo, tendo no rei um
sócio menor. Por isso que Frederico Barbarroxa, tio de Tomás de Aquino, estava
a serviço da Igreja, bem como Conde D'Aquino, também tio do filósofo. As famílias
estavam em posição privilegiada num momento em que o papado e a realeza está
forte; e Tomás de Aquino concorrerá para isso pois, de um lado, ele não só realizaria
o projeto da família, que era levar um de seus membros ao papado, como também chegou
a ser assessor do papa e ganhou grande prestigio.
Esse Tomás de Aquino era, portanto, um cidadão aparentemente
bobalhão, que havia fugido e depois arrebanhado pelos pregadores, detido pela
família, vivido em cárcere privado de onde depois saiu para realizar sua
vocação teórica e teológica em Nápoles, Roma, e Paris.
Em Paris Tomás encontra Alberto
Magno (Alberto da Saxônia, 1193/1206 – 1280), grande intelectual, lógico,
teórico e filósofo do tempo medieval, canonizado no século XX, alguém que se
tornaria reitor de um seminário da cidade, onde Tomás de Aquino completaria sua
educação e também seria professor, ensinando as lições de alto prestígio de Magno,
que foi quem abriu as portas da Universidade para Tomás de Aquino.
Exerceu lá o magistério, e também em Nápoles, e entre Paris
e Nápoles resolve seu destino pedagógico. Perto da morte, Tomás de Aquino já
estava em estado de completa demência, mas ainda assim o Bispo de Paris
convocou o Concílio, e escreveu 13 teses contra Tomás, com o objetivo de
fazê-lo ser considerado, depois da morte, herege. Falhou. Alberto Magno foi
advogado de São Tomás de Aquino em relação a essas acusações. A Igreja lhe conferiu,
post mortem, o título de Doutor da
Igreja, e depois transformou seu pensamento na doutrina oficial da Igreja
Católica.
O que esse pensamento tem a ver com o Direito? São Tomás de
Aquino reflete uma mudança na postura do poder dominicano. Esse era um poder
que havia nascido como ordem militar e que, depois, patrocinou um banho de
sangue, o aniquilamento dos carpocratas, que representavam uma seita, operante
na Itália, na França e na Alemanha, que propunha outra versão para o
Cristianismo, fundada no princípio do Cristianismo primitivo. Depois de acabar
com os carpocratas, a ordem dominicana mudou de natureza, transformando-se em
ordem educacional, educando, entre os quais, Tomás de Aquino.
Como produto acabado dessa tarefa, concorrendo com o esforço
que Alberto havia feito, Tomás de Aquino o auxiliou no sentido de traduzir,
comentar e explicar Aristóteles, que está sendo resgatado, neste momento, pelo
mundo medieval pelos árabes. Surgiu grande controvérsia na Igreja sobre a
admissão de Aristóteles como guru.
Tomás também escreveu livros comentando a doutrina de
Aristóteles, e terminou por completar um ciclo importante para a Igreja:
cristianizar Aristóteles. Santo Agostinho cristianizou Platão, Justino
cristianizou Sócrates, e São Tomás de Aquino cristianizou Aristóteles. Assim, construiu
uma visão teológica e filosófica do mundo, segundo a razão. É o desembarque da
Filosofia na Liturgia.
Lembrem-se que, quando estudamos Santo Agostinho, vimos que
o problema da Patrística era que a fé não podia ser revelada, mas que ser
conhecimento. A fé teria de ser encarada mais como um conhecimento teológico,
mais filosófico. A Teologia o centro do conhecimento, com auxílio da Filosofia.
A Filosofia seria parte necessária na construção do conhecimento teológico. E, sendo
parte necessária, temos um racionalismo de Platão e de Aristóteles
desembarcando agora na era medieval, com São Tomás de Aquino se debruçando tá
tarefa de buscar as provas racionais da existência de Deus. Assim, ele
antecipou o racionalismo da Filosofia moderna, Filosofia que é essencialmente
racionalista, usando a razão como cerne de tudo. Especialmente na Filosofia
iluminista.
É uma Filosofia que, naturalmente, foi se polarizando com o
avanço dos séculos. Já no século XIX, à beira do XX, passou a haver uma demanda
na Filosofia moderna entre razão e desrazão. Especialmente com os trabalhos de
Nietzsche e Schopenhauer no século XIX.
É São Tomás de Aquino que prepara a Filosofia do mundo
moderno.
É preciso que se diga, também, que 1200 foi o primeiro
momento em que se quebrou esse monobloco das ideias. Era legítima a
concentração de poderes em torno do papado? Esse era o questionamento. Aqui se
contestava explicitamente essa ideia. Quem o fará será Dante Alighieri, o poeta
da Divina Comédia, poeta da monarquia. Ele distingue os poderes de maneira
explicita: poder espiritual e o poder temporal. Idealiza a entrega do poder
temporal à sociedade organizada para que esta institua
os agentes competentes para seu exercício. Entre eles não haveria
representantes do papa, pois este é legítimo exclusivo para o exercício do
poder espiritual. Não por acaso Dante
foi perseguido e, ao representar a Divina Comédia, colocou todos os
perseguidores no inferno.
São Tomás de Aquino, então, do ponto de vista jurídico, se
comportou numa perspectiva marcada pela influência de Aristóteles. Tomás refletiu
sobre o Direito aristotélico, pensando que poderia utilizar quatro formas de
Direito. Pensou nas formas: Direito Divino, Direito Eterno, Direito Natural e Direito
Humano.
Sobre o Direito Divino temos já o magistério de Cícero que é
o diálogo permanente com Tomás de Aquino, em que sabemos que o Direito Divino
decorre dos textos sagrados e da principiologia espiritual. Os livros são
mandamentais, repletos de ordenanças, e perpassados por imperativos de justiça.
Essa regra é visível na Torá, livro judaico que quer dizer “lei”; na Bíblia,
especialmente no Pentateuco; e também visível também no Alcorão, outro livro
mandamental. Não por acaso inspira a criação de Estados fundamentalistas.
O Direito Eterno a que Tomás de Aquino se reporta é: Deus é
causa primeira, que criou a causa segunda, que é o mundo. Deus não é a causa
segunda e não está nela, se ausentou dela. É o Deus a que se chega por meio da
razão. Esse Direito Eterno funciona segundo uma legalidade, assentada na
mecânica universal: a Terra gira, a maré sobe, o Sol brilha no céu. É o Direito
Eterno: a vida do mundo está repleta de leis, e essas leis constituem o
Direito.
Terceiro Direito de São Tomás de Aquino é o Direito Natural.
Que Direito Natural é esse? Aqui ele estabelece uma diferença entre o Direito Natural
dos estoicos, que perpassa Cícero, que já plantara essa semente
supervalorizando a razão. Tomás se filia a essa ideia e diz que o Direito Natural
é o Direito Natural da razão. É a razão que irá decodificar, no Direito Eterno,
conhecendo suas leis, tendo por objeto a coisa
em si, transformando-a em coisa para
si.
Essa é a razão que permitirá conhecer a razão humana. A
razão sabedora de tudo isso, de Deus, da decodificação da mecânica universal,
da condição humana irá inspirar a criação do Direito Humano. Aqui que se
desembocará no universo social.
Esse Direito Humano é um Direito altamente valorativo de
Tomás de Aquino, buscado na tradição aristotélica, segundo a qual a boa-fé é um
princípio dos princípios do Direito. Este Direito valorativo exige que esse
objeto “lei” seja portador de uma perspectiva promocional do homem em suas
circunstâncias. São Tomás de Aquino diz que a lei deve ser obedecida porque é
lei, e esta lei é portadora de valores. E
se não o for? Ela deverá, de acordo com o pensador, ser repugnada. Não será
lei, mas corrupção dela. Aqui, o filósofo santo abre as portas para o direito
de resistência ao príncipe opressor, injusto e tirânico, responsável pela
legalidade imprópria porque descomprometida com a agenda do bem.
Lei, Direito e justiça para quê? Para transformar a sociedade em um todo de todos. São Tomás é solidarista.
Se o príncipe tirânico se serve de uma legalidade tirânica para fraudar essa
diretriz, o filósofo ensina que deve-se resistir a esse príncipe desviado buscando-se
caminhos para sua deposição.
Mas Tomás não subscreve ao regicídio ou tiranicídio, ou haveria
assassinatos políticos tentando conviver com valores cristãos. É o precursor do
impeachment. É o caminho jurídico e
político para a remoção de um príncipe injusto.
O Direito de resistência teve variantes e críticas, mas teve
defensores que alegaram que devia-se lutar e resistir na esfera da justiça,
para defender a dignidade humana em todos os meios, inclusive os violentos, com
a violência dos oprimidos. Mas não vemos isso em São Tomás de Aquino. Ele está
muito mais para um precursor de uma não violência ativa do que a violência dos violentados,
que é o caminho posteriormente seguido pelos anarquistas.
O Direito de Tomás de Aquino é perpassado por essa dimensão
ética, que só pode ter como signo finalístico a justiça. Esse objeto, a
justiça, seria objeto de uma condenação porque se buscou vincular o Direito a
outras propostas que não a justiça. Uma delas seria a segurança. Isso se
reflete em Maquiavel (1469 – 1527) até
Hans Kelsen (1881 – 1973). Mas São
Tomás abraçou a vertente da justiça, e escreveu seu Tratado da Justiça por
isso.
O pensador estabeleceu uma dialogia reprisando os caminhos
aristotélicos quanto à justiça distributiva, comutativa, e chamando a justiça
geral de Aristóteles de justiça social, criando um conceito que se tornaria
intemporal, com muita felicidade. Justiça social é uma reivindicação universal
dos povos decorrente do argumento jurídico de São Tomás de Aquino. Justiça
social é o que dela disse Aristóteles e o que dela disse São Tomás de Aquino.
Se desenvolveu em Cícero e superdesenvolveu em Tomás de Aquino. É a forma maior
de realização do bem humano.
Isso leva à superação da tautologia: um cão correndo atrás
do próprio rabo. O bem comum deve ser definido, antes, para que se defina
depois a justiça.
Bem comum é a
concessão, ao todo homem, e ao homem todo, de um mínimo de bens materiais e
espirituais para que consiga prover sua dignidade. É uma regra totalmente
ética, mostrando o sentido harmônico do argumento jurídico tomista. Ao mesmo
tempo essa regra permite compreender que o Direito e a justiça de Tomás de
Aquino suprem altas exigências do ser humano. A rigor, esta é uma caridade que
não foi satisfeita antes, em nenhum lugar da Terra, mesmo onde a democracia
social se superdesenvolveu até hoje.
Bem comum, ideia
que funda o pensamento solidarista, era a preocupação maior de Tomás de Aquino.
É o desaguadouro moral de sua preocupação jurídica e de justiça. Justiça é para
ser vivida, e não para ser aspirada. O teste de verdade da justiça é a vivência
social. A vida é solidária ou não é? A vida social promove a condição humana em
sua dignidade ou não? É a pergunta que orienta se há ou não justiça em
determinado ambiente.
Há confronto entre o pensamento de São Tomás de Aquino e o
espírito da modernidade, pois esta é permeada de um egoísmo que já habita o
inconsciente coletivo das pessoas.
O bem comum precisa de desenvolvimento, dizia São Tomás de
Aquino. Ele não pensa a sociedade como um ser estático, mas como um ser vivo em
ampliação de possibilidades, especialmente na integração dos marginalizados. O
bem comum precisa de permanente difusão porque a maior cautela que pode haver é
a conquista de consciências: criar uma consciência solidária, e criar práticas
que o confirmem, para se seja feita uma reeducação do Estado para que se possa
vivenciar a justiça. Estas exigências resultam de uma percepção política, e foi
política a pergunta que o rei de Chipre fez: “qual o meio e o modo de agir para
que o príncipe seja verdadeiramente cristão?” Assim Aquino escreveu uma
carta-resposta, que se tornou uma obra prima, que recebeu o nome de Carta ao
Rei de Chipre (ou “Carta do Reino”). Ali ele traçou o perfil do príncipe
comprometido com uma agenda ética e jurídica promocional da dignidade. Queria,
portanto, que esse desaguadouro se confirmasse num Estado social de Direito. Que
Direito? Permeado pela ética. Que justiça?
Justiça como expressão aguda do bem comum.
Que paz? Aquela consequente a afirmação do bem comum, pois, quanto mais
comum for o bem, maior será a possibilidade de paz perduradoura. Partilha-se o
bem de vida entre todo homem e o homem todo.
É um pensamento universalista, uma proposição universal. Não
é uma solução local.
No Renascimento, o pensamento de São Tomás de Aquino é
resgatado; nesse contexto criou-se uma segunda Scholastica, portanto, uma corrente
neotomista, e resgatam-se as ideias do filósofo, criando o germe do Direito
Moderno. É aqui estão alguns dos fundadores do Direito moderno, resgatando as
ideias de Tomás. Estão teólogos e juristas espanhóis. Francisco Suárez (1548 – 1617), fundador do Direito Internacional; Bartolomé
de las Casas (1488 – 1566), Bispo de Chiapas no México, fundador dos
direitos humanos; Luís de Molina (1535 –1600), fundador do
Direito Econômico; toda a Escola que, a partir de Salamanca, criará uma
dimensão social do Direito moderno, uma contraposição do pensamento católico ao
pensamento evangélico, a Contrarreforma como resposta à Reforma Protestante. A Reforma
criou o cabedal de pensamentos jurídicos a partir de Hugo Grotius, Hobbes, Locke, Hegel, Kant e Rousseau.¹ Todos protestantes, ao menos
a princípio. Da Reforma e do Renascimento há uma linha de pensamento evangélico
que será contraditada pelo pensamento católico, que advém da II Scholastica.
É o pensamento neotomista que perpassaria principalmente o
século XX, com aguda manifestação a partir da segunda guerra mundial. Os
principais colaboradores dessa dispersão da Filosofia neotomista foram os
espiritualistas franceses, a exemplo de Jacques
Maritain (1882 - 1973). Criou um movimento universal a partir da França.
O que o Brasil tem a ver com esse pensamento tomista? O
primeiro livro de Direito escrito no Brasil foi influenciado pelas ideias de Tomás
de Aquino. Foi escrito em Ouro Preto, Minas Gerais, por um poeta chamado Tomás Antônio Gonzaga (1744 – 1810).
Personagem da Inconfidência Mineira, autor de Marília de Dirceu, que devemos
ter estudado em tempos pretéritos; era uma obra do Arcadismo mineiro. Gonzaga
escreveu uma obra chamada Tratado de
Direito Natural, e as ideias de Tomás de Aquino se desdobram aqui para se
projetarem ao século XIX. Já no século XX há uma floração de filósofos
neotomistas. Vamos dizer somente alguns deles: Alceu de Amoroso Lima (1893 – 1983), André Franco Montoro (1916
– 1999) e Goffredo Teles Junior
(1915 – 2009).
E atores políticos visíveis
porque tinham uma visão tomista do mundo, como Dom Helder Câmara (1909 – 1999), Arcebispo de Olinda e Recife. Foi
chamado pela Universidade de Harvard para ser conferencista no seminário de
sete séculos da morte de São Tomás de Aquino. Outro ator político foi uma
figura chamada Herbert José de Sousa,
o Betinho (1935 – 1997), que fez campanhas contra a fome.