Filosofia do Direito

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Thomas Hobbes



Vamos falar de Thomas Hobbes hoje. Não apenas d’O Leviatã!

Conversar sobre Thomas Hobbes significa nos debruçarmos sobre o Estado Nacional que terá um papel decisivo no destino da humanidade. Reporta-se ao Reino Unido e à Inglaterra. A Inglaterra chama para si uma capacidade militar incontrastável no exercício da hegemonia na construção do mundo moderno. Estabelecido o pacto colonial e divido o globo em mundo central e mundo das colônias, a expectativa dos Estados Nacionais é que será principal entre eles aquele que dispuser de maior espaço no mundo, conquistando colônias e colocando-as a seu serviço. Forma-se um único sistema econômico unitário, mas é formado em si mesmo por um centro e uma periferia, que é subordinada ao centro e se coloca ao seu serviço, seja pelo fornecimento de matérias primas, mão-de-obra barata ou escrava, transposição de trabalho e riqueza. Ao mesmo tempo, essa periferia será o mercado consumidor crescente com o avanço do capitalismo. A periferia será formada por Estados Nacionais subdesenvolvidos, que transferirão royalties e comprarão ciência e tecnologia já descartada.

Não sem ironia a crise de 1929 levou o Brasil a uma situação catastrófica. Ganhamos o apelido de “país da sobremesa”: exportávamos café e açúcar. O preço médio da saca de café passa a ter valor flutuante e vai a menos de 10% do que era antes da crise. Queima-se café e joga-se o no mar para regular a lei da oferta e da procura.

Nosso plantation colonial sobrevive ao Império e à República e o Brasil fica nesse mercado flutuante. O que se tem, então, como desafio na década de 30 é ideia de que o país precisará se industrializar, rompendo-se com a tradição agroexportadora. Indústria era impensável naquele momento. Havia um modelo clássico de desenvolvimento naquele momento do mundo, e o Brasil entendia-se não habilitado. Então a ideia foi baratear o custo de vida nas cidades para atrair para a indústria, além da criação de uma classe média.

Nos Estados Unidos foi o contrário: primeiro se fez uma democracia agrária e depois se fez o esforço industrialista. Questão agrária é uma questão que está para os países subdesenvolvidos.

Há as idades agrária, industrial e do conhecimento. As demandas do brasileiro ainda estão da idade agrária. Não havia animus político de fazer nenhuma reforma agrária na década de 30. Entretanto o Brasil se industrializou, porque fez um caminho completamente subversivo: o Estado industrializou o Brasil e ele mesmo criou a burguesia industrialista brasileira. O maior industrialista brasileiro foi Getulio Vargas.

No mundo, chegou-se à indústria por meio do empreendedor individual, correndo risco. No Brasil chegou-se por financiamento público e transferindo-o para particulares.

No final do século XIX se faz, em Pernambuco, a transição do Engenho Bangue para o Engenho Central. Importava-se a máquina pronta da Inglaterra, montou-se em Pernambuco e entregou-se o empreendimento a famílias tradicionais. Foi uma burguesia de Estado: o Estado cria a indústria e transfere para o particular.

Existe uma ideia tradicional chamada divisão internacional do trabalho, ideia de que os países de base colonial tendem a se tornar países periféricos, enquanto os Estados centrais desenvolvidos já terão se tornado blocos econômicos globalizados. Mas há exceções que não desautorizam a regra. A história do Brasil, nesse sentido, é reveladora. Isso porque estamos sonhando com a transição para o centro. E ao centro não chegamos jamais. O Brasil é um incrível fenômeno econômico. Especialmente desde o século XIX, quando se chegou a escrever um livro chamado “Brasil, País do Futuro”. Concluiu mais tarde Ignácio Rangel (1914 – 1994) que a economia do Brasil cresceu mais de 200 vezes sobre si mesma. Rangel foi um economista brasileiro e um dos pioneiros na análise econômica pátria. Do ponto de vista social, entretanto, a sociedade brasileira é das mais injustas da terra. Somos medalha de ouro, vezes de prata, quase nunca de bronze em horror social. A elite brasileira foi criada sobre uma consciência deformada: dos privilégios, e não dos direitos. Portugal do século XVI era mais feudal do que capitalista quando colonizou o Brasil. Daí nascem os poderosos no Brasil, com a capitania hereditária, latifúndios, sesmarias... a ideia desde cedo foi criar um poder econômico baseado na exploração de recursos. Essa matriz permanece viva.

O que Thomas Hobbes tem a ver com isso? Ele foi ideólogo do colonialismo. Sua Inglaterra conquistou a hegemonia na construção do mundo moderno. Significa dizer que com o caminho militar, econômico e político, o Reino Unido, a Grã Bretanha se coloca numa posição estratégica no mundo, dispondo de mais espaço, e entendia-se que assim conquistar-se-ia mais riqueza.

Thomas Hobbes foi ideólogo desse colonialismo inglês, legitima o colonialismo, dizem que são filhas dos Estados, e que roubar as colônias sob poder de uma nação é o mesmo que roubar a alma e o nervo dela. Daí as colônias deveriam ser defendidas pela guerra. Com isso surgiu o orgulho inglês de que o Sol nunca se punha nas extensões do Império Inglês, ideia que perdurou até a década de 40 do século XX. Quando se chega ao final da segunda guerra mundial, Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos, Estados que tiveram grande influência na edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, documento resultante do trabalho de mais de 90 nações, a edição sofre pressão dos interesses ingleses para a manutenção do pacto colonial. Índia, por exemplo, possessão inglesa. Há um artigo na DUDH dizendo:

Nenhum homem será discriminado em virtude de sua origem nacional, não importando se veio de nação, colônia ou protetorado [...]” ¹

O colonialismo será fortemente combatido a partir de 1952-53. Os países periféricos se uniram contra o colonialismo, mais fortemente ainda quando surge em cena o líder egípcio Gamal Abdel Nasser (1918 – 1970), que liderou esse processo de descolonização. Era uma terceira força que pretendia romper com o mundo bipolar. Pregava a não aderência automática a nenhuma das duas forças vigentes, seja Estados Unidos ou União Soviética, mas a constituição de um mundo multilateral, não apenas bilateral. Nasser foi assassinado por defender a emergência de potências de médio porte.

Ao final da segunda guerra mundial a Inglaterra quis preservar seu colonialismo. Perderá a Índia, e dessa perda haverá um prejuízo muito grande não só para a Inglaterra, mas para todas as nações que mantinham colônias. França também se envolveu em uma luta violentíssima para evitar a perda de suas possessões nos anos 60 afora. Em seguida Portugal perde Guiné Bissau, Angola, Moçambique, uma a uma das colônias que tinha havia mais de 500 anos.

Voltando a Hobbes: Thomas Hobbes vem da Matemática, da Física e da Química para as ciências humanas. Esteve, conviveu e discutiu com Galileu Galilei, considera-se um alto teórico da Física e das Matemáticas, tem rivalidades com os outros pensadores, e considerava-se mais relevante cientificamente do que os outros.

Foi testemunha de uma crise da monarquia inglesa, que, no século XVII, viveu a proclamação de uma república, sob a liderança de um sujeito chamado Oliver Cromwell (1599 – 1658), que veio das classes médias urbanas. Sublevou as forças militares e as levou para uma postura antiaristocrática. Dizia Cromwell que ouvia vozes e tinha uma missão divina. Era um príncipe maquiavélico. Deu um banho de sangue no mundo.

Hobbes havia ido ao exílio com a realeza. Vivia na Corte da França, por mais de dez anos, até que lhe mandarão embora. Teve muitos conflitos no ambiente cortesão do exilio, e termina sendo convidado a se retirar da França. Viveu pelo menos três momentos de sua vida fora da Inglaterra. Foi preceptor de nobres potentados, que lhe protegeram; passou a educar os jovens da nobreza para viverem fora, em sua companhia. Ao mesmo tempo Hobbes se considerou potencializado para fazer uma reflexão política, jurídica e filosófica para a crise da monarquia. Que mal é esse? A guerra civil.

Cromwell queria apenas submeter a burguesia comercial, expropriar a Igreja, a Coroa e os barões da terra. Então, Hobbes se pôs a estudar esse processo e passou a escrever algumas obras.

A primeira delas é o Tratado de Direito Natural. É um ensaio geral que levará à formulação da tese, na Inglaterra, do Contrato Social. Ele foi pioneiro, antecedendo Locke e Rousseau. Homem, para Hobbes, é o lobo do homem. Ele não criou esse adágio; é um verso de Plauto, um teatrólogo romano do mundo antigo, em que, numa peça, um personagem tem essa fala. Nisso ele recortou e colou de Plauto e colocou no Leviatã sem indicação de fonte.

Ele formula o Tratado de Direito Natural. O Estado de Natureza é um Estado dramático porque nele é como se dissesse que o que se tem é um reino mais da animalidade do que da humanidade. Diz que é cultura humana ser mais animalesco do que humano. Diz que o homem não é um animal social por natureza. Bateu de frente com Aristóteles. Não havia natureza social entre homens, pois seria um paroxismo. A continuidade física da sociedade está, no limite, ameaçada.

Como fazer a transição do Estado de Natureza para o Estado Social? Aqui ele escreve o Leviatã. Usando a razão, chega-se ao Estado, ao Leviatã, ao soberano. A metáfora é o monstro que anda bate. É um monstro bíblico que só se robustece quando é ferido, ao invés de se fragilizar. A transição do Estado de Natureza para o Estado Social se faz por força do Leviatã. Ele sim fará do Estado um grande agente cívico e civilizatório da condição humana. Aqui é o Estado quem humanizaria e civilizaria o homem. Por isso sua estatolatria, sua paixão pelo soberano, pelo Estado, pelo Leviatã. É o Estado que torna o homem social. Como não é social por natureza, só com a disciplina mastodôntica do Leviatã é que o será.

A revolução é tripla: sob o Leviatã o homem será homem, deixando de ser lobo; o homem será cristão. Hobbes era religioso na origem, era filho de religiosos, e foi educado para tal. Tanto que o subtítulo da obra é "Do Estado Eclesiástico ao Estado Civil." Ele não quer o desaparecimento do Estado Eclesiástico.

Escreveu um terceiro livro chamado Do Cidadão. Três livros, portanto, em um só projeto. Direito natural, porque Hobbes é enganosamente naturalista e decisivamente positivista no Leviatã. Hobbes é maquiavélico do ponto de vista da formação filosófica; é minoritariamente naturalista e majoritariamente positivista. Quando dizemos que alguém é naturalista, dizemos que este alguém acredita que o indivíduo, com sua autonomia, vontade e liberdade antecede o Estado. E que, portanto, o Estado só se legitima se estiver em conformidade absoluta com as cláusulas do contrato social que o instituiu. Ele tem que ser legitimado pela sociedade civil que o antecede, com controle e direcionamento do Estado para que se subordine o controle à vontade social. Importa mais a liberdade civil do que a autoridade do Estado. Daqui vem o liberalismo! Tutela jurídica à liberdade. Tutela do cidadão, da cidadania organizada, que instituiu o Estado.

Do outro lado encontramos Hobbes dizendo: Leviatã é Estado soberano. Direito é o enunciado que o Leviatã declara que é Direito. É compatível com a ideia anterior? Não mesmo. O que o Leviatã pode fazer para garantir a unidade da sociedade? Tudo! Só se é livre no Leviatã. É a humanidade que sociabiliza, humaniza e civiliza. Hobbes blefa com o jusnaturalismo e faz o casamento radical com o juspositivismo. Afirmou-se como positivista radical.

Em Do Cidadão ele estabelece as regras de convivência dos cidadãos entre si, dos cidadãos e o Estado, sobre a afundada certeza de que a diretiva da vida decorre da aguda afirmação da autoridade do Estado.

Daqui se chegam às regras de convivência.

O essencial de Hobbes é que, no final de sua vida de 91 anos, escreveu um quarto livro de significação jurídico-política chamado Diálogo Entre o Filósofo e o Jurista. Está convencido de suas ideias. O jurista defende o direito positivo.

O que é relevante em Hobbes é a vasta correspondência com grandes pensadores e filósofos de seu tempo. Ele volta à Inglaterra, Cromwell morre, não há sucessores para ele, e a Inglaterra vai novamente para a crise. Da morte de Cromwell abre-se um ciclo terrível de conflagração de todos contra todos porque ele não deixa sucessor, não prepara sua sucessão, não há estabilidade política em torno dos acontecimentos da época, então tem-se a volta da coroa, a Igreja reivindica seu patrimônio perdido, e a burguesia comercial quer a hegemonia do processo em torno de si mesmo. É o primeiro país a avançar na direção da indústria no mundo. No século XVI já tinha! Era a indústria têxtil e de alimentos. Foi a região mais industrializada do mundo até a segunda guerra mundial.

A Inglaterra exerceu a mais longa hegemonia do capitalismo comercial ao financeiro. Foi uma hegemonia de três séculos e meio.

Para encerrar: Hobbes é estatista, e, para alguns, ele funda uma estatolatria; Hobbes é a fonte inspiração dos totalitarismos modernos. Fonte longínqua: Platão; fonte próxima, Hobbes. Norberto Bobbio (1909 – 1994) é um dos poucos que não concorda com esta ideia, mas é quase um consenso.

Hobbes é radicalmente iliberal, absolutista, autoritário e, entretanto, é absolutamente liberal em economia. Que paradoxo!

O que Hobbes propugnava, portanto, era por uma ordem jurídico-política totalmente fechada, e uma ordem econômica de total liberdade.

Por quê? Inglaterra não queria barreiras alfandegárias no mundo. “O mar é nosso!” Laissez faire et laissez passer! Exceção: proteger o proprietário e a propriedade, conferir subsídios aos empreendedores e criar a estrutura necessária ao desenvolvimento dos negócios.

Foi grande defensor do liberalismo econômico, mas mais radicalmente defensor do iliberalismo político. Essa demanda entre liberais e não liberais fez com que nascessem, no Império Espanhol, duas grandes facções que cercavam o rei, uma, a dos Serviles, dos servis a toda e qualquer política do rei e a legitimavam e qualquer circunstância, à qual vai se contrapor a facção dos Liberales, os que condicionarão seu apoio ao rei à adequação, à conveniência e à justeza de suas políticas. Em outras palavras, aqueles que irão buscar a legitimidade para dizer sim e a legitimidade para dizer não ao rei e às suas políticas. Estes fundaram uma Filosofia do Liberalismo.

É uma Filosofia disjuntiva, portanto. Liberdade no plano material e autoridade no plano institucional. É a Filosofia mais conveniente à Inglaterra em seu tempo.

  1. Não encontrei essa disposição no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos que li e salvei aqui em 2009.