Vamos falar de Thomas Hobbes hoje.
Não apenas d’O Leviatã!
Conversar sobre Thomas Hobbes
significa nos debruçarmos
sobre o Estado Nacional que terá um papel decisivo no destino da
humanidade.
Reporta-se ao Reino Unido e à Inglaterra. A Inglaterra chama para si
uma
capacidade militar incontrastável no exercício da hegemonia na
construção do mundo
moderno. Estabelecido o pacto colonial e divido o globo em mundo
central e mundo
das colônias, a expectativa dos Estados Nacionais é que será principal
entre
eles aquele que dispuser de maior espaço no mundo, conquistando
colônias e
colocando-as a seu serviço. Forma-se um único sistema econômico
unitário, mas é
formado em si mesmo por um centro e uma periferia, que é subordinada ao
centro
e se coloca ao seu serviço, seja pelo fornecimento de matérias primas,
mão-de-obra barata ou escrava, transposição de trabalho e riqueza. Ao
mesmo
tempo, essa periferia será o mercado consumidor crescente com o avanço
do
capitalismo. A periferia será formada por Estados Nacionais
subdesenvolvidos,
que transferirão royalties e comprarão ciência e tecnologia já
descartada.
Não sem ironia a crise de 1929 levou
o Brasil a uma situação
catastrófica. Ganhamos o apelido de “país da sobremesa”: exportávamos
café e
açúcar. O preço médio da saca de café passa a ter valor flutuante e vai
a menos
de 10% do que era antes da crise. Queima-se café e joga-se o no mar
para regular
a lei da oferta e da procura.
Nosso plantation
colonial
sobrevive ao Império e à República e o Brasil fica nesse mercado
flutuante. O
que se tem, então, como desafio na década de 30 é ideia de que o país
precisará
se industrializar, rompendo-se com a tradição agroexportadora.
Indústria era
impensável naquele momento. Havia um modelo clássico de desenvolvimento
naquele
momento do mundo, e o Brasil entendia-se não habilitado. Então a ideia
foi
baratear o custo de vida nas cidades para atrair para a indústria, além
da criação
de uma classe média.
Nos Estados Unidos foi o contrário:
primeiro se fez uma
democracia agrária e depois se fez o esforço industrialista. Questão
agrária é
uma questão que está para os países subdesenvolvidos.
Há as idades agrária, industrial e do
conhecimento. As
demandas do brasileiro ainda estão da idade agrária. Não havia animus político de fazer nenhuma reforma
agrária na década de 30. Entretanto o Brasil se industrializou, porque
fez um
caminho completamente subversivo: o Estado industrializou o Brasil e
ele mesmo
criou a burguesia industrialista brasileira. O maior industrialista
brasileiro
foi Getulio Vargas.
No mundo, chegou-se à indústria por
meio do empreendedor
individual, correndo risco. No Brasil chegou-se por financiamento
público e transferindo-o
para particulares.
No final do século XIX se faz, em
Pernambuco, a transição do
Engenho Bangue para o Engenho Central. Importava-se a máquina pronta da
Inglaterra, montou-se em Pernambuco e entregou-se o empreendimento a
famílias
tradicionais. Foi uma burguesia de Estado: o Estado cria a indústria e
transfere para o particular.
Existe uma ideia tradicional chamada divisão internacional do trabalho, ideia
de que os países de base
colonial tendem a se tornar países periféricos, enquanto os Estados
centrais
desenvolvidos já terão se tornado blocos econômicos globalizados. Mas
há
exceções que não desautorizam a regra. A história do Brasil, nesse
sentido, é
reveladora. Isso porque estamos sonhando com a transição para o centro.
E ao
centro não chegamos jamais. O Brasil é um incrível fenômeno econômico.
Especialmente desde o século XIX, quando se chegou a escrever um livro
chamado
“Brasil, País do Futuro”. Concluiu mais tarde Ignácio Rangel (1914 –
1994) que
a economia do Brasil cresceu mais de 200 vezes sobre si mesma. Rangel
foi um economista
brasileiro e um dos pioneiros na análise econômica pátria. Do ponto de
vista
social, entretanto, a sociedade brasileira é das mais injustas da
terra. Somos
medalha de ouro, vezes de prata, quase nunca de bronze em horror
social. A
elite brasileira foi criada sobre uma consciência deformada: dos
privilégios, e
não dos direitos. Portugal do século XVI era mais feudal do que
capitalista
quando colonizou o Brasil. Daí nascem os poderosos no Brasil, com a
capitania
hereditária, latifúndios, sesmarias... a ideia desde cedo foi criar um
poder
econômico baseado na exploração de recursos. Essa matriz permanece viva.
O que Thomas Hobbes tem a ver com
isso? Ele foi ideólogo do
colonialismo. Sua Inglaterra conquistou a hegemonia na construção do
mundo
moderno. Significa dizer que com o caminho militar, econômico e
político, o
Reino Unido, a Grã Bretanha se coloca numa posição estratégica no
mundo,
dispondo de mais espaço, e entendia-se que assim conquistar-se-ia mais
riqueza.
Thomas Hobbes foi ideólogo desse
colonialismo inglês,
legitima o colonialismo, dizem que são filhas dos Estados, e que roubar
as
colônias sob poder de uma nação é o mesmo que roubar a alma e o nervo
dela. Daí
as colônias deveriam ser defendidas pela guerra. Com isso surgiu o
orgulho
inglês de que o Sol nunca se punha nas extensões do Império Inglês,
ideia que
perdurou até a década de 40 do século XX. Quando se chega ao final da
segunda
guerra mundial, Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos,
Estados
que tiveram grande influência na edição da Declaração Universal dos
Direitos
Humanos, de 1948, documento resultante do trabalho de mais de 90
nações, a
edição sofre pressão dos interesses ingleses para a manutenção do pacto
colonial. Índia, por exemplo, possessão inglesa. Há um artigo na DUDH
dizendo:
Nenhum homem será discriminado em virtude de sua origem nacional, não importando se veio de nação, colônia ou protetorado [...]” ¹ |
O colonialismo será fortemente
combatido a partir de
1952-53. Os países periféricos se uniram contra o colonialismo, mais
fortemente
ainda quando surge em cena o líder egípcio Gamal Abdel Nasser (1918 –
1970),
que liderou esse processo de descolonização. Era uma terceira força que
pretendia
romper com o mundo bipolar. Pregava a não aderência automática a
nenhuma das
duas forças vigentes, seja Estados Unidos ou União Soviética, mas a
constituição
de um mundo multilateral, não apenas bilateral. Nasser foi assassinado
por
defender a emergência de potências de médio porte.
Ao final da segunda guerra mundial a
Inglaterra quis
preservar seu colonialismo. Perderá a Índia, e dessa perda haverá um
prejuízo
muito grande não só para a Inglaterra, mas para todas as nações que
mantinham colônias.
França também se envolveu em uma luta violentíssima para evitar a perda
de suas
possessões nos anos 60 afora. Em seguida Portugal perde Guiné Bissau,
Angola,
Moçambique, uma a uma das colônias que tinha havia mais de 500 anos.
Voltando a Hobbes: Thomas Hobbes vem
da Matemática, da
Física e da Química para as ciências humanas. Esteve, conviveu e
discutiu com
Galileu Galilei, considera-se um alto teórico da Física e das
Matemáticas, tem
rivalidades com os outros pensadores, e considerava-se mais relevante
cientificamente do que os outros.
Foi testemunha de uma crise da
monarquia inglesa, que, no
século XVII, viveu a proclamação de uma república, sob a liderança de
um
sujeito chamado Oliver Cromwell (1599 – 1658), que veio das classes
médias
urbanas. Sublevou as forças militares e as levou para uma postura
antiaristocrática. Dizia Cromwell que ouvia vozes e tinha uma missão
divina.
Era um príncipe maquiavélico. Deu um banho de sangue no mundo.
Hobbes havia ido ao exílio com a
realeza. Vivia na Corte da
França, por mais de dez anos, até que lhe mandarão embora. Teve muitos
conflitos no ambiente cortesão do exilio, e termina sendo convidado a
se
retirar da França. Viveu pelo menos três momentos de sua vida fora da
Inglaterra. Foi preceptor de nobres potentados, que lhe protegeram;
passou a
educar os jovens da nobreza para viverem fora, em sua companhia. Ao
mesmo tempo
Hobbes se considerou potencializado para fazer uma reflexão política,
jurídica
e filosófica para a crise da monarquia. Que mal é esse? A guerra civil.
Cromwell queria apenas submeter a
burguesia comercial,
expropriar a Igreja, a Coroa e os barões da terra. Então, Hobbes se pôs
a
estudar esse processo e passou a escrever algumas obras.
A primeira delas é o Tratado
de Direito Natural. É um ensaio geral que levará à formulação
da tese, na Inglaterra,
do Contrato Social. Ele foi pioneiro, antecedendo Locke e Rousseau.
Homem, para
Hobbes, é o lobo do homem. Ele não criou esse adágio; é um verso de
Plauto, um
teatrólogo romano do mundo antigo, em que, numa peça, um personagem tem
essa
fala. Nisso ele recortou e colou de Plauto e colocou no Leviatã sem
indicação
de fonte.
Ele formula o Tratado de Direito
Natural. O Estado de Natureza
é um Estado dramático porque nele é como se dissesse que o que se tem é
um
reino mais da animalidade do que da humanidade. Diz que é cultura
humana ser
mais animalesco do que humano. Diz que o homem não é um animal social
por
natureza. Bateu de frente com Aristóteles. Não havia natureza social
entre homens,
pois seria um paroxismo. A continuidade física da sociedade está, no
limite,
ameaçada.
Como fazer a transição do Estado de
Natureza para o Estado Social?
Aqui ele escreve o Leviatã. Usando a razão, chega-se ao Estado, ao
Leviatã, ao
soberano. A metáfora é o monstro que anda bate. É um monstro bíblico
que só se
robustece quando é ferido, ao invés de se fragilizar. A transição do
Estado de Natureza
para o Estado Social se faz por força do Leviatã. Ele sim fará do
Estado um
grande agente cívico e civilizatório da condição humana. Aqui é o
Estado quem
humanizaria e civilizaria o homem. Por isso sua estatolatria, sua
paixão pelo
soberano, pelo Estado, pelo Leviatã. É o Estado que torna o homem
social. Como
não é social por natureza, só com a disciplina mastodôntica do Leviatã
é que o
será.
A revolução é tripla: sob o Leviatã o
homem será homem,
deixando de ser lobo; o homem será cristão. Hobbes era religioso na
origem, era
filho de religiosos, e foi educado para tal. Tanto que o subtítulo da
obra é "Do
Estado Eclesiástico ao Estado Civil." Ele não quer o desaparecimento do
Estado
Eclesiástico.
Escreveu um terceiro livro chamado Do Cidadão. Três livros, portanto, em um
só projeto. Direito
natural, porque Hobbes é enganosamente naturalista e decisivamente
positivista
no Leviatã. Hobbes é maquiavélico do ponto de vista da formação
filosófica; é
minoritariamente naturalista e majoritariamente positivista. Quando
dizemos que
alguém é naturalista, dizemos que este alguém acredita que o indivíduo,
com sua
autonomia, vontade e liberdade antecede o Estado. E que, portanto, o
Estado só
se legitima se estiver em conformidade absoluta com as cláusulas do
contrato
social que o instituiu. Ele tem que ser legitimado pela sociedade civil
que o
antecede, com controle e direcionamento do Estado para que se subordine
o
controle à vontade social. Importa mais a liberdade civil do que a
autoridade
do Estado. Daqui vem o liberalismo! Tutela jurídica à liberdade. Tutela
do
cidadão, da cidadania organizada, que instituiu o Estado.
Do outro lado encontramos Hobbes
dizendo: Leviatã é Estado
soberano. Direito é o enunciado que o Leviatã declara que é Direito. É
compatível com a ideia anterior? Não mesmo. O que o Leviatã pode fazer
para
garantir a unidade da sociedade? Tudo! Só se é livre no Leviatã. É a
humanidade
que sociabiliza, humaniza e civiliza. Hobbes blefa com o jusnaturalismo
e faz o
casamento radical com o juspositivismo. Afirmou-se como positivista
radical.
Em Do Cidadão ele estabelece as
regras de convivência dos
cidadãos entre si, dos cidadãos e o Estado, sobre a afundada certeza de
que a
diretiva da vida decorre da aguda afirmação da autoridade do Estado.
Daqui se chegam às regras de
convivência.
O essencial de Hobbes é que, no final
de sua vida de 91 anos,
escreveu um quarto livro de significação jurídico-política chamado Diálogo Entre o Filósofo e o Jurista.
Está
convencido de suas ideias. O jurista defende o direito positivo.
O que é relevante em Hobbes é a vasta
correspondência com
grandes pensadores e filósofos de seu tempo. Ele volta à Inglaterra,
Cromwell
morre, não há sucessores para ele, e a Inglaterra vai novamente para a
crise.
Da morte de Cromwell abre-se um ciclo terrível de conflagração de todos
contra
todos porque ele não deixa sucessor, não prepara sua sucessão, não há
estabilidade política em torno dos acontecimentos da época, então
tem-se a
volta da coroa, a Igreja reivindica seu patrimônio perdido, e a
burguesia
comercial quer a hegemonia do processo em torno de si mesmo. É o
primeiro país
a avançar na direção da indústria no mundo. No século XVI já tinha! Era
a
indústria têxtil e de alimentos. Foi a região mais industrializada do
mundo até
a segunda guerra mundial.
A Inglaterra exerceu a mais longa
hegemonia do capitalismo
comercial ao financeiro. Foi uma hegemonia de três séculos e meio.
Para encerrar: Hobbes é estatista, e,
para alguns, ele funda
uma estatolatria; Hobbes é a fonte inspiração dos totalitarismos
modernos.
Fonte longínqua: Platão; fonte próxima, Hobbes. Norberto Bobbio (1909 –
1994) é
um dos poucos que não concorda com esta ideia, mas é quase um consenso.
Hobbes é radicalmente iliberal,
absolutista, autoritário e,
entretanto, é absolutamente liberal em economia. Que paradoxo!
O que Hobbes propugnava, portanto,
era por uma ordem
jurídico-política totalmente fechada, e uma ordem econômica de total
liberdade.
Por quê? Inglaterra não queria
barreiras alfandegárias no
mundo. “O mar é nosso!” Laissez faire et
laissez passer! Exceção: proteger o proprietário e a
propriedade, conferir
subsídios aos empreendedores e criar a estrutura necessária ao
desenvolvimento
dos negócios.
Foi grande defensor do liberalismo
econômico, mas mais
radicalmente defensor do iliberalismo
político. Essa demanda entre liberais e não liberais fez com que
nascessem, no Império
Espanhol, duas grandes facções que cercavam o rei, uma, a dos Serviles,
dos
servis a toda e qualquer política do rei e a legitimavam e qualquer
circunstância, à qual vai se contrapor a facção dos Liberales, os que
condicionarão seu apoio ao rei à adequação, à conveniência e à justeza
de suas
políticas. Em outras palavras, aqueles que irão buscar a legitimidade
para
dizer sim e a legitimidade para dizer não ao rei e às suas políticas.
Estes
fundaram uma Filosofia do Liberalismo.
É uma Filosofia
disjuntiva,
portanto. Liberdade no plano material e autoridade no plano
institucional. É a
Filosofia mais conveniente à Inglaterra em seu tempo.