Vamos então conversar hoje sobre o
segundo aspecto do
renascimento. Falamos da dimensão jurídico-política, e começaremos hoje
a falar
sobre a dimensão valorativa, o mundo das ideias e do conhecimento
naquele
contexto.
A transição na esfera das ideias
naquela dimensão que
podemos chamar de psicossocial, psicovalorativa e psico-espiritual
entre o
feudalismo e o capitalismo mediada pelo Renascimento é da mais alta
significação. É momento de grande efervescência na história do mundo.
Aqui
passou a haver uma riqueza de possibilidades muito grande que distingue
esse
momento na história. O renascimento é uma ideia absolutamente
extraordinária.
Na dimensão espiritual, logo nos
reportamos à estética.
Arquitetura, palácios, urbanização, haja vista o que Bellini realizou
em Roma,
escultura, pintura, Rafael, Michelangelo, Donatello, Leonardo da
Vinci... e
também na literatura.
O Renascimento é quando se escrevem,
por exemplo, as obras
Os Lusíadas e Decameron. Essa dimensão estética do Renascimento serviu
como um
tiro com arpão para as ideias mais terríveis. Mais do que na Idade
Média. Sim,
pois aqui temos um contexto de guerra entre o campo e a cidade. No
campo
feudal, com sua cavalaria, e na cidade, capitalista, fazendo a guerra
com
infantaria e artilharia, usando a ciência numa perspectiva
instrumental. Pela
primeira vez, a rigor, em plena consciência se coloca a ciência a
serviço da
guerra. Pólvora, por exemplo, foi um grande instrumento de massacre no
final do
mundo feudal. Mas a cidade revela uma capacidade de produção de
violência maior
que o campo. Canhões das muralhas, desvio do rio para inundar Pisa,
Nicolau Maquiavel
e Leonardo da Vinci. É, enfim, a instrumentalização do saber para o
desenvolvimento da arte da guerra, se acumulando a capacidade
extraordinária de
destruição, o que levou, no século XX, à diplomacia atômica. Os grandes
não
fazem guerra entre si. Mas, ao mesmo tempo, estimulam a formação de
guerras
regionais para tomar áreas de influência. Interessava aos Estados
Unidos e à
União Soviética.
Do ponto de vista das ideias, no
renascimento vai se
reafirmar e subverter a visão teocêntrica do mundo. A passagem que se
dá é a da
esfera do sagrado para a esfera do humano. A esfera teocêntrica será
guerreada
pela visão antropocêntrica do mundo. Substituição de Deus pelo homem.
Elevação
do homem à condição de único e verdadeiro Deus. Significava a retirada
do poder
político, econômico e religioso no mundo. A ideia então foi subtrair o
poder da
Igreja. A visão oficial de mundo era a visão da Igreja. Todas as
questões e
conflitos humanos eram resolvidos à luz do sagrado. Isso se chama
mundividência
ou cosmovisão medieval.
Agora, no renascimento, o que se
busca é uma mundivivência e
cosmovisão dessacralizada, com o poder de se resolver os problemas da
vida
segundo preceitos puramente humanos. É a magnificação do homem na
história, com
suas possibilidades de emergência e afirmação na história. Essa é a
marca do
renascimento!
Até então, as formas coletivas de
vida tinham se predominado
sobre a forma individual. Horda, clã, tribo, família, bando. O coletivo
era
mais relevante que o individual. No renascimento se chega a um grau de
especificação tão grande que o indivíduo, periférico antes, tornou-se
central. É
ele quem se afirma agora.
Michelangelo assinou duas vezes La
Pietá. Isso é bem
revelador da afirmação histórica do indivíduo na história. Na arte
sacra,
nenhum artista assinava sua obra. A arte era mais relevante que o
artista. No
renascimento, o artista passa a ser até mais relevante que a arte.
Essa visão de mundo antropocêntrica
significa a magnificação
das possibilidades do homem em seu imaginário, em seu ideário. Isso
ensejará o
advento do movimento do humanismo, que é o movimento que irá levar a
essa magnificação
ideológica do homem. o homem pretende ser Deus, transcender o tempo e
dominar
todo o espaço. Isso bastava. Giovanni Pico
della Mirandola (1463 – 1494)
era um grande
sábio, e tornou-se chefe do movimento humanista. Escreveu o Discurso sobre a Dignidade Humana. Qual
o ser mais merecedor de culto e devoção existente em todo o Universo?
Era
sabedor dos artifícios mercadológicos, alegou ter consultado todo o
mundo e
para dizer que chegou à conclusão de que o homem era o ser mais
relevante.
A postura nietzschiana de recusar-se
a si mesmo era
exatamente o que o renascimento pregava.
Outro mito renascentista era Dr. Fausto (Johann Georg Faust (1480 –
1540), que tem a fome de
felicidade infinita. Retratado em obras posteriores, como de Goethe
(1749 –
1832), o diabo lhe comparece e oferece-lhe a eternidade. O diabo,
entretanto, é
o típico “171”, e não cumpre sua proposta. Descobre que foi logrado.
Outro: Robinson
Crusoe, personagem retratado num romance de Daniel Defoe, de
1719. O mote
da obra e do personagem é a autossuficiência. O homem basta a si mesmo.
Prescinde
das relações sociais e pode viver em sua ilha. É a autarquia do
indivíduo. É o
que Jean-Paul Sartre resumiu depois: o diabo são os outros. Robinson
pensou na
criação do mundo à parte.
Don Juan
é outra
lenda, que provavelmente remonta ao século XIV. Conquistador
irrecusável, adorava
conquistar mulheres e lutar com seus homens, mas era é um narciso. Só
era apaixonado
por ele mesmo. Amava a si e a mais ninguém. Contempla-se no espelho das
águas.
O homem moderno está marcado por
esses mitos. Por isso aqui
também se estabelece a ideologia do progresso. Mais tarde, com Comte,
no século
XVIII, chegamos à frase Ordem, Progresso e Amor. Pregou o culto do
homem, e até
pensou numa Igreja terrena. Sem ordem, sem progresso, e só o progresso
pode
conduzir ao amor. A ideia da República no Brasil inclusive foi derivada
disso. Benjamin Constant Botelho de Magalhães
(1836 – 1891), quem verdadeiramente proclamou a República, foi um dos
responsáveis pela estampa da legenda na Bandeira do Brasil.
Auguste Comte
(1798
– 1857) teve esclerose precoce e resolveu que a religião da humanidade
precisava de um deus vivo. Quem ele escolhe para representar essa
“divindade” foi
sua amante, Clotilde de Vaux, mulher que já havia sido amante de
algumas outras
pessoas na França. Comte é autor de uma obra chamada Jusfilosofia
Positiva,
obra em seis volumes e, no quarto, criou um saber novo: a Sociologia.
Um
conhecimento racional novo.
A ideologia do progresso é
renascentista. O princípio, a
matriz é esta: homem versus
Natureza.
Nos primórdios, a Natureza era mais relevante que o homem. Ele não
transformava
a Natureza. O homem era um mero coletor, que vivia mais uma vida
natural do que
cultural. Passou a buscar uma intervenção maior na natureza, para que o
homem
ampliasse suas possibilidades, de ser, estar e sobreviver. Sem ciência
e sem
tecnologia, ele estava em desvantagem em relação à Natureza.
O que temos no renascimento? É como
se dissesse: “agora é nois!”
manifestação da alta sabedoria. A
superciência e supertecnologia estão a caminho. Agora a Natureza pode
ser
colocada a serviço do homem. Sem, claro, nenhuma preocupação
conservacionista. Nenhum
sábio renascentista teve preocupação ambiental. Imaginava-se que a
Natureza se
autorrenovaria infinitamente. Até que em 1969 o Clube de Roma se reuniu
para
levantar a bandeira do crescimento zero. Descobriu-se que o modelo
renascentista era tão predatório que poderia levar à destruição.
O produto do renascimento foi o
tecnicismo, o cientificismo,
o produtivismo, este levando ao consumismo, que requeria um mercado
global. Com
a agenda ambientalista, defendeu-se que, no mínimo, deveria haver um
sistema de
reciclagem. É aqui que surge a produção em série.
Uma vez perguntaram para Max Weber (1864 – 1920): o que promete a
transição do capitalismo
para o socialismo? Resposta: “a mera radicalização do controle e
instauração do
cálculo como regra da vida.” Não por acaso foram os socialistas que
criaram
planejamentos de Estado. Será marcada ainda mais pela lei da
racionalidade.
Isso significa que todas as relações entre homens no mundo moderno
serão cada
vez mais referenciadas pela lei do cálculo. E que cálculo é esse? Por
exemplo,
o das probabilidades. Vim à aula porque havia grande probabilidade de a
faculdade estar aberta e o professor estar aqui. Isso é o que Weber diz
que irá
presidir a vida. É uma racionalidade instrumental para se fazer um
cálculo
preciso sobre como agir na vida. O renascimento prepara esse ambiente.
Daí seu
racionalismo, tecnicismo, cientificismo, seu produtivismo. A produção é
um novo
deus. A vida passou a seu um monoteísmo de mercado.
E hoje vivemos reflexos disso:
vivemos imersos num
monoteísmo consumerista.
Em suma: renascimento é o contexto de
afirmação do indivíduo
na história. Só que o renascimento é a serpente de dois ovos: o da
afirmação do
indivíduo e o da afirmação do individualismo. Uma coisa é a legítima
autonomia,
especificação histórica do indivíduo. Individualismo é a nociva
transformação
num sistema egoístico contrário aos interesses da humanidade.
Por isso que a Revolução Francesa
trouxe suas três bandeiras
(liberdade, igualdade e fraternidade), e a revolução fraudará a
terceira, pois
as formas solidárias de vida estão desautorizadas. O renascimento
planta essa
política em torno do antropocentrismo.
Movimentos que marcaram: humanismo,
cisma da Igreja, com Lutero
e a desacorrentação da razão, na reforma baseada na Sola
Fide: somente a fé. Quer-se dizer, de maneira subliminar, que
não se precisa nem de papa e nem de Igreja, porque o homem pode se
relacionar
diretamente com Deus.
Um terceiro foi o utopismo, uma
contratendência do próprio renascimento.
O mundo novo já dava sinais de ser problemático. Com a indústria de
tecidos e
alimentos, a primeira atividade industrial, que substituiu o
artesanato,
surgiram os problemas da sociedade urbano-industrial. E, aqui, alguns
filósofos
começam a se preocupar e a considerar que essa afirmação do indivíduo e
do
mercado é um mundo grávido de graves problemas. A solução que alguns
imaginaram
foi propor um mundo não regido pelo mercado, mas pelo Estado.
Os três movimentos foram, portanto, humanismo, reforma e utopia. Eis a plenitude ideológica do renascimento.
Sobre a utopia temos três autores.
São eles: Thomas More
(1478 – 1535), morto na fogueira da Inquisição, escreveu um livro
chamado
Utopia, que é uma viagem a um lugar onde se teria uma vida justa. O
coletivo
seria mais relevante que o individual. É a raiz do socialismo moderno.
Outro
foi Tommaso Campanella
(1568 – 1639) foi um ateu que passou metade da vida
preso. Não morreu na fogueira porque o Rei da França o tirou da Itália
e o
protegeu. Escreveu um livro chamado “Cidade do Sol” (Heliopolis),
cidade em que se tem a mesma regra de vida da Utopia:
vida regida pelo poder central do Estado, controle de tudo para que a
sociedade
justa aconteça. E, por fim, Francis
Bacon (1561 – 1626), que escreve um livro
chamado Nova Atlântida, em que
retrata uma nova vida, sem individualismo, sem mercado, regida, também,
pelo
Estado. São três correntes estatistas dentro do renascentismo.