Filosofia do Direito

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Renascimento: valores


Vamos então conversar hoje sobre o segundo aspecto do renascimento. Falamos da dimensão jurídico-política, e começaremos hoje a falar sobre a dimensão valorativa, o mundo das ideias e do conhecimento naquele contexto.

A transição na esfera das ideias naquela dimensão que podemos chamar de psicossocial, psicovalorativa e psico-espiritual entre o feudalismo e o capitalismo mediada pelo Renascimento é da mais alta significação. É momento de grande efervescência na história do mundo. Aqui passou a haver uma riqueza de possibilidades muito grande que distingue esse momento na história. O renascimento é uma ideia absolutamente extraordinária.

Na dimensão espiritual, logo nos reportamos à estética. Arquitetura, palácios, urbanização, haja vista o que Bellini realizou em Roma, escultura, pintura, Rafael, Michelangelo, Donatello, Leonardo da Vinci... e também na literatura.

O Renascimento é quando se escrevem, por exemplo, as obras Os Lusíadas e Decameron. Essa dimensão estética do Renascimento serviu como um tiro com arpão para as ideias mais terríveis. Mais do que na Idade Média. Sim, pois aqui temos um contexto de guerra entre o campo e a cidade. No campo feudal, com sua cavalaria, e na cidade, capitalista, fazendo a guerra com infantaria e artilharia, usando a ciência numa perspectiva instrumental. Pela primeira vez, a rigor, em plena consciência se coloca a ciência a serviço da guerra. Pólvora, por exemplo, foi um grande instrumento de massacre no final do mundo feudal. Mas a cidade revela uma capacidade de produção de violência maior que o campo. Canhões das muralhas, desvio do rio para inundar Pisa, Nicolau Maquiavel e Leonardo da Vinci. É, enfim, a instrumentalização do saber para o desenvolvimento da arte da guerra, se acumulando a capacidade extraordinária de destruição, o que levou, no século XX, à diplomacia atômica. Os grandes não fazem guerra entre si. Mas, ao mesmo tempo, estimulam a formação de guerras regionais para tomar áreas de influência. Interessava aos Estados Unidos e à União Soviética.

Do ponto de vista das ideias, no renascimento vai se reafirmar e subverter a visão teocêntrica do mundo. A passagem que se dá é a da esfera do sagrado para a esfera do humano. A esfera teocêntrica será guerreada pela visão antropocêntrica do mundo. Substituição de Deus pelo homem. Elevação do homem à condição de único e verdadeiro Deus. Significava a retirada do poder político, econômico e religioso no mundo. A ideia então foi subtrair o poder da Igreja. A visão oficial de mundo era a visão da Igreja. Todas as questões e conflitos humanos eram resolvidos à luz do sagrado. Isso se chama mundividência ou cosmovisão medieval.

Agora, no renascimento, o que se busca é uma mundivivência e cosmovisão dessacralizada, com o poder de se resolver os problemas da vida segundo preceitos puramente humanos. É a magnificação do homem na história, com suas possibilidades de emergência e afirmação na história. Essa é a marca do renascimento!

Até então, as formas coletivas de vida tinham se predominado sobre a forma individual. Horda, clã, tribo, família, bando. O coletivo era mais relevante que o individual. No renascimento se chega a um grau de especificação tão grande que o indivíduo, periférico antes, tornou-se central. É ele quem se afirma agora.

Michelangelo assinou duas vezes La Pietá. Isso é bem revelador da afirmação histórica do indivíduo na história. Na arte sacra, nenhum artista assinava sua obra. A arte era mais relevante que o artista. No renascimento, o artista passa a ser até mais relevante que a arte.

Essa visão de mundo antropocêntrica significa a magnificação das possibilidades do homem em seu imaginário, em seu ideário. Isso ensejará o advento do movimento do humanismo, que é o movimento que irá levar a essa magnificação ideológica do homem. o homem pretende ser Deus, transcender o tempo e dominar todo o espaço. Isso bastava. Giovanni Pico della Mirandola (1463 – 1494) era um grande sábio, e tornou-se chefe do movimento humanista. Escreveu o Discurso sobre a Dignidade Humana. Qual o ser mais merecedor de culto e devoção existente em todo o Universo? Era sabedor dos artifícios mercadológicos, alegou ter consultado todo o mundo e para dizer que chegou à conclusão de que o homem era o ser mais relevante.

A postura nietzschiana de recusar-se a si mesmo era exatamente o que o renascimento pregava.

Outro mito renascentista era Dr. Fausto (Johann Georg Faust (1480 – 1540), que tem a fome de felicidade infinita. Retratado em obras posteriores, como de Goethe (1749 – 1832), o diabo lhe comparece e oferece-lhe a eternidade. O diabo, entretanto, é o típico “171”, e não cumpre sua proposta. Descobre que foi logrado.

Outro: Robinson Crusoe, personagem retratado num romance de Daniel Defoe, de 1719. O mote da obra e do personagem é a autossuficiência. O homem basta a si mesmo. Prescinde das relações sociais e pode viver em sua ilha. É a autarquia do indivíduo. É o que Jean-Paul Sartre resumiu depois: o diabo são os outros. Robinson pensou na criação do mundo à parte.

Don Juan é outra lenda, que provavelmente remonta ao século XIV. Conquistador irrecusável, adorava conquistar mulheres e lutar com seus homens, mas era é um narciso. Só era apaixonado por ele mesmo. Amava a si e a mais ninguém. Contempla-se no espelho das águas.

O homem moderno está marcado por esses mitos. Por isso aqui também se estabelece a ideologia do progresso. Mais tarde, com Comte, no século XVIII, chegamos à frase Ordem, Progresso e Amor. Pregou o culto do homem, e até pensou numa Igreja terrena. Sem ordem, sem progresso, e só o progresso pode conduzir ao amor. A ideia da República no Brasil inclusive foi derivada disso. Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836 – 1891), quem verdadeiramente proclamou a República, foi um dos responsáveis pela estampa da legenda na Bandeira do Brasil.

Auguste Comte (1798 – 1857) teve esclerose precoce e resolveu que a religião da humanidade precisava de um deus vivo. Quem ele escolhe para representar essa “divindade” foi sua amante, Clotilde de Vaux, mulher que já havia sido amante de algumas outras pessoas na França. Comte é autor de uma obra chamada Jusfilosofia Positiva, obra em seis volumes e, no quarto, criou um saber novo: a Sociologia. Um conhecimento racional novo.

A ideologia do progresso é renascentista. O princípio, a matriz é esta: homem versus Natureza. Nos primórdios, a Natureza era mais relevante que o homem. Ele não transformava a Natureza. O homem era um mero coletor, que vivia mais uma vida natural do que cultural. Passou a buscar uma intervenção maior na natureza, para que o homem ampliasse suas possibilidades, de ser, estar e sobreviver. Sem ciência e sem tecnologia, ele estava em desvantagem em relação à Natureza.

O que temos no renascimento? É como se dissesse: “agora é nois!” manifestação da alta sabedoria. A superciência e supertecnologia estão a caminho. Agora a Natureza pode ser colocada a serviço do homem. Sem, claro, nenhuma preocupação conservacionista. Nenhum sábio renascentista teve preocupação ambiental. Imaginava-se que a Natureza se autorrenovaria infinitamente. Até que em 1969 o Clube de Roma se reuniu para levantar a bandeira do crescimento zero. Descobriu-se que o modelo renascentista era tão predatório que poderia levar à destruição.

O produto do renascimento foi o tecnicismo, o cientificismo, o produtivismo, este levando ao consumismo, que requeria um mercado global. Com a agenda ambientalista, defendeu-se que, no mínimo, deveria haver um sistema de reciclagem. É aqui que surge a produção em série.

Uma vez perguntaram para Max Weber (1864 – 1920): o que promete a transição do capitalismo para o socialismo? Resposta: “a mera radicalização do controle e instauração do cálculo como regra da vida.” Não por acaso foram os socialistas que criaram planejamentos de Estado. Será marcada ainda mais pela lei da racionalidade. Isso significa que todas as relações entre homens no mundo moderno serão cada vez mais referenciadas pela lei do cálculo. E que cálculo é esse? Por exemplo, o das probabilidades. Vim à aula porque havia grande probabilidade de a faculdade estar aberta e o professor estar aqui. Isso é o que Weber diz que irá presidir a vida. É uma racionalidade instrumental para se fazer um cálculo preciso sobre como agir na vida. O renascimento prepara esse ambiente. Daí seu racionalismo, tecnicismo, cientificismo, seu produtivismo. A produção é um novo deus. A vida passou a seu um monoteísmo de mercado.

E hoje vivemos reflexos disso: vivemos imersos num monoteísmo consumerista.

Em suma: renascimento é o contexto de afirmação do indivíduo na história. Só que o renascimento é a serpente de dois ovos: o da afirmação do indivíduo e o da afirmação do individualismo. Uma coisa é a legítima autonomia, especificação histórica do indivíduo. Individualismo é a nociva transformação num sistema egoístico contrário aos interesses da humanidade.

Por isso que a Revolução Francesa trouxe suas três bandeiras (liberdade, igualdade e fraternidade), e a revolução fraudará a terceira, pois as formas solidárias de vida estão desautorizadas. O renascimento planta essa política em torno do antropocentrismo.

Movimentos que marcaram: humanismo, cisma da Igreja, com Lutero e a desacorrentação da razão, na reforma baseada na Sola Fide: somente a fé. Quer-se dizer, de maneira subliminar, que não se precisa nem de papa e nem de Igreja, porque o homem pode se relacionar diretamente com Deus.

Um terceiro foi o utopismo, uma contratendência do próprio renascimento. O mundo novo já dava sinais de ser problemático. Com a indústria de tecidos e alimentos, a primeira atividade industrial, que substituiu o artesanato, surgiram os problemas da sociedade urbano-industrial. E, aqui, alguns filósofos começam a se preocupar e a considerar que essa afirmação do indivíduo e do mercado é um mundo grávido de graves problemas. A solução que alguns imaginaram foi propor um mundo não regido pelo mercado, mas pelo Estado.

Os três movimentos foram, portanto, humanismo, reforma e utopia. Eis a plenitude ideológica do renascimento. 

Sobre a utopia temos três autores. São eles: Thomas More (1478 – 1535), morto na fogueira da Inquisição, escreveu um livro chamado Utopia, que é uma viagem a um lugar onde se teria uma vida justa. O coletivo seria mais relevante que o individual. É a raiz do socialismo moderno. Outro foi Tommaso Campanella (1568 – 1639) foi um ateu que passou metade da vida preso. Não morreu na fogueira porque o Rei da França o tirou da Itália e o protegeu. Escreveu um livro chamado “Cidade do Sol” (Heliopolis), cidade em que se tem a mesma regra de vida da Utopia: vida regida pelo poder central do Estado, controle de tudo para que a sociedade justa aconteça. E, por fim, Francis Bacon (1561 – 1626), que escreve um livro chamado Nova Atlântida, em que retrata uma nova vida, sem individualismo, sem mercado, regida, também, pelo Estado. São três correntes estatistas dentro do renascentismo.