Filosofia do Direito

sexta-feira, 18 de março de 2011

Roma, Direito Romano e Marco Túlio Cícero

Marco Túlio Cícero foi um dos primeiros pensadores de tradição latina. Encerramos nossa relação com o mundo grego, e entramos agora no que é chamado de jusromano. Cícero é um pensador do mundo romano, e pensador singular, porque tinha vínculo mais que intelectual com o Direito. Foi advogado de grande notoriedade no Direito Romano e jurista consagrado. Distingue-se da Grécia pois uma coisa é se debruçar intelectualmente sobre o Direito, e outra é, além de pensar o Direito intelectualmente, tomá-lo quanto à vivência enquanto advogado e jurista.

Aqui estamos mais para Jean-Paul Sartre do que para René Descartes. Pensando, podemos desvendar as circunstâncias da existência e iluminando-as conceitualmente. É a solução cartesiana: “penso, logo existo.” Com o existencialismo de Jean-Paul Sartre, podemos dizer “existo, então penso de maneira diferenciada” Mas o existencialismo de Jean-Paul Sartre é inexoravelmente relevante porque nos traz uma relação existencial com o Direito, com uma visão distinta da que tem o filósofo iluminista.¹

Marco Túlio Cícero é, portanto esse personagem do mundo romano, mundo este que estava para viver uma trajetória singular. Os romanos viviam em uma terra de várzea, à beira do rio Tibre, que se prenderam a um mito de origem. Seriam descendentes de uma raça de deuses e dividiam-se do resto do mundo. Viviam na Península Itálica isolados de demais tribos. Isso provocou antipatia dos vizinhos. Por isso que, em certo tempo, um general que vivia fora da Península Itálica com forte articulação política envolveu-se na campanha de atacar Roma.Pirro do Épiro.

Roma era uma sociedade campesina, com poucos centros urbanos. O teísmo romano levou a que a cidade tivesse vários templos, a exemplo do Panteão, que sobreviveu aos milênios. A ordem era privada, com um germe de Estado e das demais instituições sociais.

Humilhados e ofendidos, os romanos se fecharam de qualquer interação com qualquer outro povo da Península Itálica. Estavam, portanto, preparando um ponto de mutação, que consistia na organização do Estado e, com uma superorganização do braço armado do Estado. Os romanos se revitalizaram. Logo dispunham de um exercito de 500 mil homens e armas. Desenvolveram um projeto de dominação da Península Itálica para que todas as tribos se rendessem a Roma.

Conseguiram a unificação da Península. Ao mesmo tempo, o mundo Grego se naufragava. Sócrates já havia prenunciado isso. A previsão se confirmou. Cidades gregas buscaram aliados de fora para atacar outros gregos. De tanto buscarem teimosamente sua destruição, os gregos levaram-se à decadência política, econômica e social. até pensavam, antes, que todos os demais povos eram bárbaros.

Com o declínio do mundo grego, evidencia-se a proposição de que outros povos irão querer escrever páginas da história. cartagineses, persas e romanos!

Roma passou a entender que a guerra era outra forma de fazer política, e assim conquistar a hegemonia do mundo. Precisavam enfrentar os concorrentes, especialmente Cartago, nas guerras púnicas. Cartago foi eleita a grande inimiga. Roma resolveu se transformar em ordem imperial intemporal.

Se lembrarmos do esquema família-vila-cidades, podemos expandir a sequência, incluindo em seguida reinos e impérios. Os romanos constituíram-se em reino e deram o salto para a vida imperial. Isso significa estabelecer-se de forma central na história levando todas as periferias a serem tributárias do mundo romano. Todos os caminhos do mundo levavam a Roma. Para Roma trabalham. Todos os impérios futuros se inspiraram no Romano.

Roma se tornou modelo porque superorganizou a burocracia do Estado, o militarismo, e uma nova linguagem do funcionamento do Estado, que é o Direito Administrativo. É método e linguagem de dominação. De tal sorte que se instaurará, no mundo, um Estado burocrático que dará a medida dessa competência segundo a qual eles estabelecerão seu magistério na história.

Precisamos perguntar, todavia, como Roma chegou até lá. É possível que flagremos o sentido genético da formação, hegemonia e declínio de Roma.

O primeiro período é a sociedade pré-clássica, da sociedade campesina, em que os senhores, reinando sobre a ordem privada, eram mais fortes que a esfera pública. Os romanos herdaram as práticas e costumes dos mundos mais antigos. Na ordem privada reinava o mais forte. Mas mesmo o mais forte dos senhores não estava seguro de si em face do mundo, e amanhã poderia surgir alguém com maior capacidade de fazer a guerra e tornar-se superior. A natureza da Roma pré-clássica era a guerra. Era regida por um Direito Costumeiro e rustico, aliado a um mecanismo de garantia dos pactos.

Aqui veio o direito quiritário, em que o credor poderia lançar mão do devedor, prendendo-o em cárcere privado por 60 dias. Levava então o devedor ao mercado para se fazer a publicidade de que havia um descumpridor de contratos. Sem adimplemento, o credor poderia reduzir o devedor à escravidão.

Mas imaginemos nós que, durante essas idas ao mercado, ninguém tenha comprado o devedor já escravo. O que o credor poderia fazer? Matá-lo. Com isso, dava-se o exemplo.

Essa sociedade clássica é a que preservará o dogma dos romanos. Roma é latifúndio. A alma romana é de uma sociedade escravocrata. Estão tão presos ao latifúndio que condenaram à morte todos os defensores de reforma agrária em solo romano. Também condenaram os que defenderam que a reforma agrária fosse feita nas colônias mais distantes, ainda que fossem sociedades abandonadas por Roma.

Havia o clamor social de parcelar o latifúndio, ao mesmo tempo em que queriam mantê-lo. Inventaram, então, a exploração condominial da terra. Solução romana usada até hoje, com poucas adaptações!

É uma sociedade que preserva, portanto, sua base latifundiária. Superdesenvolveu as rotas comerciais, fortaleceram a marinha, as tropas terrestres com grande capacidade de construção de estradas. Daqui surgiu o termo pontífice = o que levanta pontes. O termo foi incorporado à estrutura da Igreja pois é o Papa quem levanta a ponte para Deus.

Os romanos, então, fizeram-se senhores das rotas e da riqueza. Avançaram no processo de urbanização da cidade. A ponto de chegarem a ter, em certo tempo da sociedade clássica, sete milhões de habitantes.

Preservam sua qualidade de vida porque se acreditavam descendentes de deuses. Análogo à autovalorização grega, que desconsideravam os outros, rotulando-os bárbaros.

Sociedade agraria e sociedade urbana: artesanal, mercantil, de cultivo. Tudo regido pelo Direito, mais privado, e posteriormente o Direito Administrativo, público, já que havia a necessidade de um sistema de normas para o funcionamento do Estado e garantir sua centralidade sobre o mundo. É uma sociedade que irá supervalorizar o advogado. Pela primeira vez na história o advogado se estabelece num escritório! Ficavam nos portos e nos mercados conversando entre si e, enquanto o tempo passava, os que tivessem demandas iriam escolher um ou outro para interferir, para postular em seu favor.

Criou-se até uma mística que levou ao argumento de que é uma honra ao cliente poder pagar honorários pelos seus serviços. Daí o nome Honorários!

Os senadores consultavam juristas, que respondiam por escrito, e assim escreviam a doutrina que iria orientar as decisões políticas. Isso resulta no magistério do mundo romano. Pessoa, obrigação, contrato, coisa, família, sucessão. Essa sequência lembra alguma coisa? Sim, é a própria estrutura de nosso Código Civil, excetuada somente a parte de Direito de Empresa, que é mais moderna. Foi o mundo romano que mostrou essa visão unitária dos institutos do Direito Civil.

Em matéria de Direito, os romanos serão sempre considerados o ó do borogodó.

Até que um dia surgiu o Cristianismo. Primeiro, o império resistiu; depois, incorporou. Completou com a única coisa que faltava: valores universais. Respeito à pessoa humana, solidariedade, dignificação do outro e das gentes, tudo isso incorporado ao Direito Romano, que antes era regionalista, e passou a adotar uma perspectiva universalista do Direito do mundo. Os valores egoísticos do patriciado foram removidos. O Estado universal romano lhe trouxe a qualidade de Direito Intemporal.

Certo. Este Estado imperial e universal da sociedade clássica, entretanto, padecerá dos males de todos os impérios em sua supremacia sobre o mundo. Encontrou, em certo tempo, as elites romanas envolvidas em profundas crises, perdendo a capacidade de empreender, perdendo a hegemonia. Chegou a cultura de usufruir segundo a lei do menor esforço. Conquistas, despojos, motins, saques e partilha dos frutos entre os agentes privados que financiaram e o Estado que promoveu. Ao mesmo tempo os bacanais aumentaram, enquanto enriqueciam com a guerra. Viraram escravos da guerra. Chegou a haver uma descentralização do mundo romano, com insurgentes de várias regiões outrora conquistadas, como a Gália.

Houve um filósofo chamado Herbert Spencer (1820 – 1903), que dizia que a história era a cissiparidade. O que é simples torna-se complexo, que se torna supercomplexo, que se fragmenta. Spencer se aplica aqui! Houve a separação da banda ocidental da oriental do Império Romano. Aquela foi tomada por bárbaros, enquanto esta deformou o que era a tradição no Ocidente. O Direito Romano deixou de ser equitativo e doutrinário e passou a ser exclusivamente legalista, pela tradição religiosa do Oriente. Justiniano foi produto disso. O Direito Romano se tornou ágrafe, autocrático, dura lex, sed lex. Daqui veio a inspiração do positivismo moderno. A transmissão foi feita pela oralidade e a sistematização foi desintegrada.

Eis que nesse mundo pós-clássico se dará a recepção da transição do Cristianismo no mundo romano. A Igreja passa a ser Estado, e tenta-se salvar o império à luz do Cristianismo. O poder imperial romano era universal, mas faltava um argumento para legitimá-lo. Usaram o Cristianismo para isso.

Três unidades: um só Estado, um só Direito e uma só Religião. Rudolph Von Jhering notou que o Império Romano foi o único a conquistar essa tríade.

O Direito tornou-se universal a partir do imperador Caracala, porque os romanos preferiram sobreviver (daí adotando o universalismo) a se manterem apegados à ideia de que eram descendentes de uma raça superior.

Por fim, a unidade da religião: o Cristianismo se tornou religião oficial do Estado romano.

1 – Neste início de aula eu estava atrasado em relação ao professor. Esse segundo parágrafo ficou, portanto, como uma junção de pequenas ideias dentre as coisas que ele disse nesses dois primeiros minutos de aula, o que foi muito difícil de ouvir na gravação.