Vamos ter uma conversa “em dois tempos” sobre Charles-Louis
Secondat (1689 – 1755), o Barão de Montesquieu. Montesquieu, na verdade, era
nome próprio da nobreza, da terra que ele havia herdado, e isso faz com que se
passe a assinar o nome do título, e não da pessoa. Abriu-se mão do nome de
registro civil.
Na verdade Charles se transforma no Barão de La Brède, o que
é um título de Montesquieu.
Por isso que, com nossa nobreza sem tradição, quando
inventado o Estado Nacional por D. Pedro I e D. Pedro II, quando este quis
agraciar Joaquim Nabuco com um título de barão, conferindo-lhe uma possessão,
ele recusou, e resistiu à tentação. O nome dele era Nabuco de Araújo, na
verdade. Nabuco é uma forma sintética de Nabucodonosor, nome do rei babilônico
de grande prestígio. Talvez tenha sido por isso que foi recusado o título!
Charles Secondat é o Barão de La Brède e de Montesquieu.
Charles é alguém absolutamente singular e atípico na
história do iluminismo. Assim como Voltaire, ele tem raízes profundas na
nobreza feudal. O iluminismo é um clube de intelectuais na origem francesa, que
vai espalhar esse espírito no mundo inteiro, porque vamos encontrar iluminismo
na Itália, na Espanha, em Portugal, na Escócia, na Alemanha, nos Estados
Unidos, no mundo afora. Ali o espírito se dissemina. O que significa o
iluminismo? Uma crença desabrida nos poderes da razão. Crença aguda e
extraordinária, fazendo com que se estabeleça na retórica dos intelectuais que
irão preparar o espirito da Revolução Francesa fazendo com que se estabeleça um
embate entre razão e superstição.
Superstição, para os iluministas, significa todas as
divindades na história da humanidade. Eles trazem consigo a luz da razão. Por
isso que, num esforço grande, eles estabelecem uma fenda entre a idade das trevas
e a idade das luzes. Com essa modéstia, dizem que tudo foi prefácio da história
da humanidade. Daí começaram a editar as Enciclopédias, em que se “passaria a
limpo” a história sobre tudo. Da agricultura à situação da mulher na ordem
econômica, jurídica e política. Verbete sobre verbete, artigo sobre artigo,
tudo sob o signo do iluminismo. Ordenariam uma visão racional de tudo.
Recuperariam a superstição e a transformariam na razão. A enciclopédia é um
esforço coletivo desses pensadores. Três exemplos que mais nos interessam são
exatamente Montesquieu, Voltaire e Rousseau, além de outros mais.
Eles trazem pela primeira vez a razão para a história. É o
racionalismo, mas este já estava em Sócrates, Platão, Aristóteles, que volta à
história da humanidade pelo medievalismo árabe até Tomás de Aquino, que
recupera as obras, passa pelos humanistas, e desembarca nos iluministas que
chegam nesta hora no baile, para só então começarem a dançar.
Dizem que a razão educada, a razão culta irá transfigurar a
história da humanidade. Universalmente o homem é um agente de mudanças,
portanto sua razão tem que ser objeto da educação e da cultura.
Por isso a educação e a cultura têm que ser difundidas. Isso
para que se possa fazer do homem, em qualquer latitude, um agente de mudanças.
Que mudanças? As que permitem que o mundo seja universal,
guiado exclusivamente pela razão. Um mundo geométrico, aritmético, ordenado,
planejado. Esse mundo irá existir algum dia? Jamais. Brasília é uma cidade
iluminista em sua concepção. Ordem sobre ordem, setor de tudo. O que se teve
aqui foi o começo da reinvenção da vida. Até hoje há litígio entre o real com o
legal, do legal com o real.
A vida real, entretanto, reinventa o legal. Puxadinhos de
bares e restaurantes nas quadras comerciais, por exemplo, mas são
transgressões.
Um mundo sem superstição jamais existirá, porque são
portadores da ideia de que a razão presidirá a história. Mas Freud descobre que
o homem não é simplesmente razão, mas um misto de razão e desrazão. É sombra e
luz, e essa dualidade determina sua conduta. Percebe-se que é uma díade que
existirá para sempre.
O mundo da superstição, o preconceito dos iluministas é o
mundo do mito, da magia, da religião, da poética, da intuição, dos sentimentos,
tudo isso. Como se se pudesse, com a razão e com a ciência, elidir todas essas
vertentes da condição humana para restringir à ciência e à razão. Daí vem o cientificismo ou cientismo, o pressuposto de que a ciência prescinde de todos os
demais para chegar à realidade.
Hoje há um contraponto: há de se recuperar todas as formas
de elaboração do saber social. A ciência há que se conjugar todas as vias
sentimentais, magias, mitos, sabedorias, religiões, para que se crie uma visão
mais total, mais plural, mais dinâmica da realidade. Foi Montesquieu, à sua
maneira, que está presente nessa luta dos iluministas.
Charles Secondat era um nobre que herda privilégios da
nobreza, tinha terras, títulos, e herda também o dever de garantir uma vida de
altíssimo padrão, porque às vezes somos tentados a imaginar que a vida refinada
é o produto do aqui e agora; em todos os momentos os potentados viveram
regiamente, e herdou o dever de conferir a essa parentela uma vida de altíssimo
padrão. Essa missão se faz pesada em demasia porque Montesquieu se faz grande
patrono que imaginava que dinheiro desse em árvore: quando ele sente que
ameaçaria seu futuro, casou com uma mulher megarrica, e viveu pensando na razão
até o resto da vida.
Chegou aos ciclos centrais na França, e é alguém educado
pelo pai para ser advogado. Por que advogado? Porque o pai imaginava que o
advogado poderia ser um tipo intelectual do Estado. Montesquieu estava mais
próximo da advocacia do que da medicina. Seria presidente de parlamento, com a
formação de advogado. Ainda não existiam como saberes específicos a Sociologia
e a Ciência Política. A formação advocatícia poderia, de acordo com seu pai,
lhe dar todo esse conhecimento. Era o espírito da cultura humanística: quem
queria ser sociólogo, filósofo ou cientista político deveria fazer advocacia.
Fez curso em Paris. Isso foi seu inferno e sua glória. Como vinha
sendo educado desde muito cedo na cultura humanística, e tinha uma base
humanística forte, estava demonstrado desde cedo que seria um bom escritor. Foi
para a faculdade de Direito esperando que tivesse ali uma efervescência de
ideias. Quando chegou à faculdade, lhe deram grandes coleções de leis para ler.
Enfrentou esse universo e teve a expectativa que as aulas magnas seriam sua
redenção. Mas os professores iam à aula com o pressuposto de que os alunos não
soubessem ler. Às manhãs da faculdade de Direito era leitura de normas, com
tentativas de explicar o que estava escrito. Isso era uma afronta ao espírito,
para Charles.
Essa metodologia era avassaladora na faculdade de Direito. Formava
os alunos não em Direito, mas em Código. Montesquieu, então, tem vontade de
voar da faculdade, nunca mais vê-la, mas o pai lhe repreende e ele teve que
tirar o máximo de proveito das circunstâncias. Começou a construir seu paraíso
e sua gloria na faculdade. Criou uma paciência franciscana e, à medida que o
professor lia, ele reescrevia em sua consciência o que estava escrito. O
professor estava lendo a lei, e Montesquieu começou a construir o espírito. O
professor lia: “todos são iguais perante a lei”. Montesquieu perguntava-se: “o
que significa isso? O que é essa igualdade? Que lei é essa?” Nisso ele
construía o espírito. Começou a criar o método, e que foi de onde saiu a obra Do Espírito das Leis. “A letra mata”. É
uma regra hermenêutica fantástica e universal. É uma proposição paulina. A
letra mata, mas o espírito dignifica. Ele começa a desenvolver essa técnica de
construção do espírito. Chegou à sua formação jurídica e ao Direito se dedicou,
como pensador do Direito.
Mas é humanista plural e, ao mesmo tempo, é alguém de um
cuidado com suas circunstâncias muito grande: tinha os pés na nobreza feudal e
a alma relativamente voltada aos círculos liberais, onde foi objeto de muita desconfiança.
Para os nobres, ele é um transgressor, traidor e subversivo. Convivia com os
que queriam mudar a ordem feudal, e promover a ordem liberal, burguesa e
capitalista. E, entre os liberais, ele é visto como alguém merecedor de desconfiança,
um infiltrado, pois tinha origem nobre. Quem era ele? Vivia da nobreza da
terra, super-explorava a servidão que ela permitia, e vivia no circulo de poder
central da França. Uma dupla desconfiança.
Esta é a situação de Montesquieu.
Montesquieu vai, entretanto, escrever uma obra da qual dizia
o maior editor da França: “vai vender feito pão.” Só que Montesquieu é tão
cauteloso que publicou livros sobre livros sem assiná-los, por medo de ser alvo
de perseguições dos dois lados. Vamos entender essa perseguição, pela qual se
sentiu ameaçado não somente Montesquieu, mas Rousseau e outros. Os iluministas
serão proscritos, perseguidos, e condenados à morte. Rousseau foi condenado à
morte duas vezes. Queriam que fosse morto e remorto. No mesmo mês ele publicou “Emílio”
(ou “Da Educação”) e Do Contrato Social. Fugiu para a Suíça, em busca de sua
Genebra, onde pudesse ficar salvo da perseguição tenaz que era movida em seu
desfavor, mas, quando chega à fronteira, seus parentes o alertam para não se
aproximar de sua cidade natal pois ali também fora condenado à morte. Exilou-se
nas montanhas e passou dois anos, até que a poeira baixasse. Conseguiu se
defender escrevendo um livro maravilhoso chamado Cartas Escritas na Montanha:
exegese, hermenêutica e argumentação jurídica. O mundo liberal e burguês lutava
contra os senhores feudais. A história é a uma luta de privilégios contra
direitos. Os privilégios feudais são personificados pela aristocracia da terra...
ninguém entrega o bastão da história para ninguém. Os iluministas foram os primeiros
intelectuais da história que conseguem viver do ofício intelectual, sem
patrocínio, sem dependência de papas, generais, reis, porque até então, na
história da humanidade, o intelectual não era livre para pensar, mas era
cronista de seu patrono, que deveria escrever os grandes feitos dos grandes
homens. O pensador um cortesão que não tinha autonomia intelectual.
Os iluministas criaram o cerne do pensamento intelectual
autônomo. Por isso perguntaram a Voltaire qual era sua função. Respondeu:
“minha função é dizer o que penso”. Porque isso é possível? Porque agora
existe, nasce na história da humanidade um mercado de produtos intelectuais. É
mercado e comércio que alcança a cultura. Nasce uma indústria cultural. O ator
é o autor. Até então o artista, o intelectual, por meio de educação são, em sua
maioria, preceptores e educadores de outras pessoas. Tinham que viver de seus
ofícios. Produzia partituras musicais; Rousseau, por exemplo, tinha uma
multiplicidade de ofícios. E vendia também as conferências. Rousseau era
contratado, por exemplo, para falar sobre “o amor”. Os intelectuais se colocam
no mercado vivendo de seus próprios serviços, sem padrinhos.
O feudalismo sobrevive pelo controle de uma estrutura
jurídico-política feroz, que queria sua manutenção a qualquer preço. Quem ocupa
essa estrutura jurídico-política feudal são os nobres togados, com funções de
Estado. Quem tinha terra e riqueza delegava poderes aos nobres que não tinham.
Quem dizia o Direito era a nobreza togada. Nesse contexto surgiu Cesare
Beccaria, que escreveu Dos Delitos e das Penas. O próprio Beccaria foi preso
nas masmorras. Escreveu sobre o que viveu. Embateu-se amorosamente com uma
mulher casada, e seu marido termina com os poderes que tem por leva-lo à
masmorra. É dali que ele prega o humanismo penal.
É a nobreza togada dizendo a ferro e fogo, dizendo o que era
lei, para que o feudalismo sobrevivesse. O papel ambíguo e reticente de
Montesquieu em face dessas circunstâncias, que vai escrever uma obra composta
de novelas, além de ter escrito diálogos, poemas, peças de teatro, e sobre
numerosas coisas de relevância estética; mas as obras principais de Montesquieu
são três:
O professor mesmo é tentado a dizer que este último livro é
mais relevante do que o Do Espírito das Leis, temerário, mas uma tentação.
O que Montesquieu fez do ponto de vista científico? Fundou a
Sociologia jurídica antes que houvesse Sociologia geral. Montesquieu viveu de
1689 a 1755, mas a Sociologia geral seria fundada no século seguinte, por Auguste
Comte, engenheiro, matemático e filósofo, que será o líder do positivismo, e,
no curso de Filosofia positiva, ele funda a Sociologia como saber específico. O
espírito, método e objeto da Sociologia cria algo o que a coloca no topo do
saber social.
Mas alguém, com espírito avançado, um século antes havia
criado uma Sociologia específica. Eis a contribuição histórica de Montesquieu.
Cartas Persas: livro altamente maroto e de extrema
atualidade. Pérsia é o Irã. Mahmoud Ahmadinejad tem, mesmo hoje em dia, vontade
imperial. Foi quem queria lapidar Sakineh Mohammadi Ashtiani, acusada de adultério
e conspiração para a morte de seu consorte.
Mas Cartas Persas é o contrário: um persa que vive na Europa
ocidental, que considera os costumes do Ocidente absurdos. Manda cartas para
sua terra natal relatando cada coisa. Fez enorme sucesso. Na 25ª edição,
ninguém foi condenado à morte, surge a assinatura do nome de Barão de
Montesquieu.
Na terceira obra, Montesquieu cria a metodologia da chamada
pluricausal. Para entender o que é a metodologia pluricausal, podemos tomar a
metodologia unicausal conforme pensada por Marx, que é: os fenômenos têm uma
causa em que as relações humanas decorrem das relações econômicas. Daí seria
uma circunstância unicausal. A economia tudo determina, inclusive as
mentalidades. A metodologia pluricausal de Montesquieu prega que não existe a causa, mas as causas, que, simultaneamente, funcionam para que um fenômeno
possa existir. Com essa metodologia ele explica a origem, desenvolvimento e
decadência do mundo romano. É uma obra prima. Elencou 20 causas para a
derrocada do Império Romano.
E, por fim, Do Espírito das Leis. Montesquieu leva 20 anos
para escrever esse livro. Viajava pelo mundo, tinha uma vida de “grande
sacrifício”. Não parava de viajar. Trabalhava entre oito e doze horas por dia.
Diz, numa carta famosa, que será o retrato da dificuldade que irá viver para
escrever esse livro: “a respeito de minhas leis, trabalho nelas oito horas por
dia no mínimo... serão quatro volumes em 24 livros, em grande formato.”
Quando ele sentou para ler o primeiro volume do que havia
escrito, ele decidiu que perdeu seu tempo, pois estava ininteligível. Trabalhou
em demasia. A possibilidade de trabalhar de maneira concisa foi jogada fora. A
ideia foi incinerar os manuscritos. Eis aí o príncipe, eis aí a utopia, uma
pletora da vida de sínteses. Nisso ele senta e escreve um livro de apenas 100
páginas, um resumo, como diria. Quando leu, pensou que era um nada mais que um telegrama,
uma traição a tudo que pensava. De novo para o fogo. Até que chegou à terceira
versão do Livro, com cerca de 700 páginas, muito curioso. Há capítulos de uma
página, e outros de sessenta. Não há simetria. Hoje entende-se que o ensaio tem
que ter simetria. O livro de Montesquieu não passa por essa prova.
Mas outra questão curiosíssima do livro é que, quando alguém
se debruça sobre o Do Espírito das Leis pela primeira vez, fica se perguntando:
onde está o Direito? Isso aqui é só história do comércio, história universal do
comércio! Mas aqui está: Montesquieu coloca em prática de maneira bem sutil sua
metodologia: comércio é uma fonte civilizatória da história da humanidade.
Quanto mais a civilização estabelecer um comércio, mais desenvolverá suas
instituições jurídicas e políticas. Chegam-se aos institutos jurídicos e
políticos pelos pactos materiais da vida. Estabelece-se o diálogo de
proximidade de povos e civilizações distantes. Assim chega-se a civilização, e
lá se pergunta pelas instituições jurídicas e políticas.
E Montesquieu, então, publica seu livro em Genebra, na
Suíça, sem autor. Poderia provocar celeuma na realeza, ou ser perseguido pela
Igreja, poderia fomentar a fúria da inquisição, então resolveu se manter nas
sombras. Disse: “este livro quase me matou. Não mais escreverei. É um filho sem
pai. Tive que escrever três versões em 20 anos para chegar a isso”. Exauriu-se.
Ele não se guiou pelo modelo de ninguém, e criou um modelo novo. Criou a
Sociologia jurídica.
Diz que sua metodologia é a única que permite que se veja
por inteiro o que está posto no mundo: uma visão totalizante das coisas. Mais
tarde, Montesquieu assume o livro, e vai viver desses embates assumidos
principalmente com a Igreja, que o considerou maldito. Considerou-se que ele
cedia à mais subversiva das doutrinas. Sociedade de mercado, burguesa e
capitalista. Mas é acusado, ao mesmo tempo, pelos liberais, de ser conservador,
porque pregava uma mudança sob controle. É acusado também de ser reacionário,
de querer levar para o passado as instituições jurídicas e políticas ou
fazê-las agora a voltar à forma historicamente pretéritas. Marcha à ré: daí vem
o nome reacionário. É acusado, pelos conservadores, que querem a manutenção do
Estado das coisas, de ser revolucionário, de ceder espaço para ideais perigosíssimos
de mudanças. A mais grave das acusações, entretanto, foi a de spinozista: partidário das ideias de Baruch
de Spinoza (1632 – 1677): filósofo judeu holandês de origem portuguesa e
espanhola, família perseguida nos dois países, vivendo depois em Amsterdã. Maldito
pelos cristãos, judeus e mouros. Este sim vivia numa boa, era perseguido por
representantes das três grandes religiões! Spinoza valorizava sobremaneira os
aspectos materiais do mundo, e, nessa Filosofia incompreendida, foi acusado de
ser propagandista do materialismo, pregando preponderância do materialismo
sobre o espírito e sobre a fé. Por isso foi expulso de toda comunidade
religiosa, a começar pela judaica. Sua Filosofia panteísta, ao contrário, é
altamente complicada porque ele vê a transcendência na imanência, que,
simplificadamente, significa ver o que está para além do mundo, o que é
metafísico, nas coisas do mundo, materiais, visíveis e palpáveis. Quando se
diz, então, que Montesquieu é spinozista, ele é jogado na mão do Tribunal do
Santo Ofício. Por isso Montesquieu se refugia nessa estratégia de viajar
enquanto a poeira não baixa.
O que há, então, em Montesquieu é que ele vai para o Index Librorum Prohibitorum. Lista de livros
que não deveriam ser livros, que não deveriam ser publicados, de autores
malditos, cuja alma estaria perdida para sempre. É como uma excomunhão
espiritual. Mas ele foi tão sutil em sua capacidade de transitar sobre espinhos
que, mesmo no Index, ele conseguiu se
eleger para a academia francesa. Rei da França instituiu, e, quem chegasse a
essas 40 cadeiras, seria membro de uma academia invulgar.
A partir daí podemos dizer hoje, de Montesquieu, que ele
vive este embate patrimonialista feudal vs. liberalismo capitalista. Patrimônio
de família, patrimônio da nobreza. Esse é o patrimonialismo. Por causa disso
que se considera que o Brasil nasceu sobre esse signo do patrimonialismo. Veja
como se sente Sarney. A preponderância dos interesses da família. A família
como titular da esfera pública.
O mundo feudal, portanto, é um mundo patrimonialista. Há uma hereditariedade nele, e essas funções públicas, como exército, administração, magistratura e Igreja só são alcançadas por quem é nobre. Não existe meritocracia. O mérito é ser nobre. Montesquieu provou isso. Ele próprio chegou à magistratura sendo nobre da terra; ele próprio se distraia do mundo e da vida vivendo num castelinho. Era patrimonialista, mas namorava o liberalismo. Queria que a esfera pública fosse aberta para o mérito, através da difusão da educação. Montesquieu está com um embate entre a nobreza, o Primeiro Estado, o clero, o Segundo Estado, e o povo, o Terceiro. Eis o mundo feudal que Montesquieu viu. Terceiro Estado é a burguesia. O quantitativo do povo na França daquela época era em torno de 26 milhões de almas. Extraordinária maioria. O que eles podiam? Sofrer a vida. No segundo patamar, da base para o cume da pirâmide, estava o Clero. Tradição das forças da terra, que designava seus membros para as funções clericais. Tanto material quanto espiritual. Mandavam-se filhos para serem cardeais. Subindo, chegamos à nobreza, o primeiro Estado, detentor de superprivilégios. Era um mundo estamental feudal, fechado em si mesmo, com dificílima hipótese de mobilidade social. O nascimento demarcava diferenças. Na nobreza não havia mais que 200 mil almas, enquanto o segundo Estado era composto por 100 mil delas... daqui podemos dizer: que coisa absurda! Como é que 300 mil dominavam 26 milhões? Minorias organizadas dominam a história. É o que mais vemos hoje: quem mais adquire direitos mediante pressão junto às Casas Legislativas são as minorias organizadas, já que as massas inorgânicas nada fazem.
Montesquieu é originário na nobreza, mas contestado lá mesmo e no clero. Amor longínquo pelo povo.