Filosofia do Direito

quinta-feira, 24 de março de 2011

Marco Túlio Cícero, conclusão do Direito Romano, a crise do Império e o Cristianismo

Rudolph Von Jhering (1818 – 1892) foi um jurista do século XIX, considerado um dos maiores de todos os tempos. Discípulo renegado de Savigny, escreveu um livro chamado o Espírito do Direito Romano. Lá ele se reporta àquelas três unidades: mesmo Estado, mesma religião e mesmo Direito. Enquanto houve magistério dos romanos sobre o mundo, as elites começam a viver para a guerra. Começou a decadência e isso levou à fragmentação do Estado Romano, que foi um Estado burocrático regido por um Direito Administrativo.

Os romanos advinham de um preconceito segundo o qual eram descendentes de uma raça de deuses. Havia uma dualidade jurídica: direito quiritário romano, que tinha três componentes: civitatis, indicando a incidência sobre todos os nascidos em Roma, libertatis, indicando os nascidos livres, e familiae, denotando os nascidos entre os patrícios. Esse Direito quiritário era se contrapunha o Direito das Gentes, imposto aos povos conquistados. Aplicava-se aos não romanos que integravam a sociedade, perifericamente, de maneira subordinada. Eram afinal as gentes nascidas não patrícias, não romanas, e sofriam o direito das gentes, pois não era um Direito emancipatório, mas de natureza disciplinar, de confirmação do poder dos romanos sobre o mundo.

O Direito se unifica na Era Cristã sob o imperador Caracala. É quando o império começa a ser ameaçado pela decadência. Já se assentava sobre um plano inclinado, e, sem medidas, o naufrágio seria inexorável. Decretou, então, que o direito quiritário romano seria de aplicação universal. A dignidade se estendeu a todos. A fragmentação era sinal de ruptura. O objetivo com essa extensão do Direito interno romano foi robustecer o Estado.

Terceira unidade era a da Igreja, que foi a que marcou o mundo romano, o mundo medieval e o mundo contemporâneo. O Cristianismo traz para a história um valor novo: o indivíduo tratado como pessoa humana, dotado de uma alma, de uma subjetividade. O argumento central é a regra de amor. João, 10, 10: “Deus é amor”. É aqui que vemos o imperativo do amor do homem a Deus sobre todas as coisas. O preceito do amor ao próximo como a si mesmo é o que funda a ética do Cristianismo. Essa metafísica e essa ética carregam para si, para seu território, um enunciado, que é a questão central, a garantia da salvação da alma. O Cristianismo subjetivou a história. Não era mais o poder do Estado, a autoridade constituída, mas a pessoa o ente central. Foi a maior subversão possível ao Império Romano, pois acabou com a tradição romana. É uma crise em potencial ao mundo objetivo, que divinizava os imperadores em detrimento dos súditos. Atacou-se a ideia de dignificação do imperador. O Cristianismo acredita na metáfora da família e não do Estado. A família, privada, é onde o cristianismo se organiza. Para que o solidarismo universal exista, a posse comum das coisas deveria ser a regra da vida. Daí o cristianismo primitivo pregou a desautorização da propriedade privada.

Quando se chega à evidência da crise, o que falta ao Estado imperial romano é um argumento universal que garanta a sobrevivência do Estado frente ao mundo. Todos os argumentos até então existentes se desgastaram e se deslegitimaram.

Para a unificação entre Estado e Igreja, ambos tiveram que fazer concessões. Um abre mão da exigência de posse comum das coisas, enquanto outro abre mão da diferenciação entre indivíduos, considerando-os pessoas humanas. Assim o Estado criou as condições de sobrevivência.

O que há, então, é um processo de mutação, a perseguição do paganismo e ocupação dos templos pagãos pela Igreja. Os templos pagãos foram transformados em templos cristãos. Até hoje há alguns panteões, entretanto. Há a Igreja de São Paulo, onde Paulo está sepultado, que era antes um templo pagão. Foi um grande símbolo do fim do entretenimento romano de jogar cristãos aos leões.

 

Cícero

Vamos transcrever aqui o esquema passado ontem pelo professor:

Queda da Grécia e ascensão de Roma

Cícero era um homo novus, não detinha o status de cidadão, não nasceu em Roma nem era patrício. Rompeu o cerco e chegou ao exercício da função pública apesar de sua origem. Não fez como o avô ou pai; seu avô era homem de espírito intelectualizado, que aspirara o saber e o modo de vida grego. Este avô de Cícero preparou o filho (pai de Cícero) para o sonho de saber. Quase deu certo.

Foi só com a geração de Cícero que se conseguiram os meios para, de maneira refinada, chegar à esfera pública. Cícero foi o primeiro a ocupar função pública em Roma como se patrício fosse. A tradição era que a função pública era prerrogativa dos patrícios, mas ele foi desde cedo educado por filósofos.

Cícero viajou a Éfeso, cidade grega transformada em romana na Turquia. Ali contratou um preceptor, que ensinou a ele e seu irmão, Quinto Túlio Cícero, o patriciado daquela região do mundo. Quinto se notabilizou como militar, e Cícero se destacou como jurista e filósofo. Só então Cícero volta a Roma, quando encontrou, na vida pública, Júlio César, Otávio Augusto e Marco Antônio, aqueles que fariam a história do Império Romano. Sofreu discriminação na escola e logo criou antipatia pelo ambiente. Refugiou-se em meio aos judeus, começou a escrever em hebraico e formou-se na teologia.

Cícero, em três outros momentos de sua vida, foi a Atenas estudar Direito, Retórica e Filosofia. Tinha, portanto, uma formação eminentemente grega.

Voltou ao mundo romano, onde, ao chegar, teve condições de se notabilizar como advogado. A questão da ordem do dia era Caio Verres, um patrício romano que foi denunciado ao Tribunal porque teria governado a Sicília da maneira mais impiedosa, com genocídio, e ainda criando uma máquina colossal de corrupção que teria o levado junto com os seus a se locupletarem, fraudando o erário. Houve um júri comprado, mas Cícero foi contratado para ser acusador de Verres. Confrontou-se com Quinto Hortêncio Hórtalo, grande orador quem venceu nos debates forenses. Cícero ficou odiado no patriciado, mas se notabilizou como advogado. Acabou casando-se com uma Patrícia e isso lhe abriu as portas para o patriciado. Não tinha raízes na elite mas superou essa circunstância pela aliança no dedo.

O avô de Cícero dizia desde o começo que os netos não deveriam se sentir diminuídos. Eles teriam que combater no plano da política com a maior força.

Os filhos de patrícios eram mandados para as periferias para aprender a mandar e, com isso, fazer um exercício administrativo. Vinham para o centro lentamente, até chegar a Roma, por fim disputando um cargo político. Com Cícero, bem casado, foi diferente. Começou sua vida como governador da Sicília, e lá fez uma revolução administrativa, aplicando suas ideias solidaristas. Aplicou um bem mais comum.

Assim ele subiu na carreira política. Chegou a Roma, alcançando o Senado, e posteriormente o consulado, como primeiro cônsul, que se tornaria o eixo do poder romano. Cícero venceu a conspiração de Catilina ¹, que institucionalizaria a corrupção em todo o poder imperial romano. Cícero alcançou a condição de alguém que, pelo brilho oratório, avocava para si a capacidade de dizer as circunstâncias jurídicas e morais de Roma. Combateu Catilina em quatro discursos célebres, as chamadas Catilinárias.¹ “até quando, ó Catilina, abusarás de nossa paciência? [...]²

Cícero também combateu politicamente Marco Antônio, a quem acusou de participar na conspiração contra Júlio Cesar. Combateu em dezessete discursos, quando demonstrou o que Marco Antônio estava prestes a causar a derrubada da república e instituindo o Império. Marco fez aliança com Lépido e Otávio Augusto, que formaram o Segundo Triunvirato, e dividiram o mundo romano em si, derrubando a república e instituindo o império com o fim da trio. Entendiam que só com Cícero morto é que o golpe de estado seria possível.

“Ó Origem causa das causas, não te esqueças de mim!” – esta foi a frase que Cícero pronunciou pouco antes de ser morto pela espada de um soldado. Isso revela sua percepção estoica do mundo. Era a ideia de logos, a causa das causas, que Cícero traduzia por Deus.

Os soldados voltaram a Roma dando a noticia de que a cidade se livrava naquele momento daquele que, pelo poder da palavra, subvertia a ordem e o poder constituído.

Daí se estabelece o Império.

 

Legado de Cícero

O núcleo do pensamento de Cícero se encontra em quatro livros: Das Leis, Da República, Da Ética e Tratado dos Deveres.

Entendia o político-filósofo-advogado-orador-publicista que cada pessoa humana era uma centelha divina, detentora de uma fagulha do logos universal. A pessoa humana pode ser dignificada e respeitada em toda parte, a todo tempo. Antes do Estado e da cidade já existia a relação umbilical do logos universal com cada pessoa humana. Portanto, o Direito daí decorrente, natural por excelência, antecipava o Direito da Cidade Universal, que atingia as pessoas onde quer que estivessem. Bastava que fossem pessoas humanas, pois já teriam a centelha divina advinda do logos universal, e poderiam ser sujeitos de direitos.

É o que diziam os estoicos: onde quer que estivesse a pessoa humana, ela carregava consigo sua condição de digna. Por isso o necessário respeito e a dignificação. Esse Direito estoico e universalista irá marcar profundamente o Direito: Direito divino, mandamental, que se bebe nos livros sagrados, portanto jurídicos, fonte do Direito da época. A Bíblia contêm normas mandamentais, muito além do Decálogo. No Antigo Testamento há o Livro dos Juízes. Diziam o Direito e detinham o poder.

O Estado aprendeu o Direito com a tradição religiosa cristã.

O outro Direito que se reconhece é o natural. É o Direito da natureza humana, da condição humana. É a condição racional. O Direito natural para Cícero é aquele que permitiu o entendimento do Código Sagrado e, segundo a razão, valorativamente fazer o que prometia. Deveria servir ao bem mais comum.

Justiça para Cícero é um aprendizado de natureza moral. Se explica no agir, uma consciência que se transmuta em atitude. Cícero descreve que, no deserto, longe do Estado e seu braço armado, há uma legião de gente aventureira que, numa marcha só, vai daqui para lá, mas volta homens frágeis e solidários, carregando consigo a maior riqueza do ser humano: a sabedoria.

Paz no mundo para Cícero é resultado da proporção do outro. É o primeiro filósofo da história a dizer: “o outro é igual a mim”. Nem Aristóteles nem Platão disse isso. É o fundamento da integração e inclusão social.

Boa-fé recíproca para a criação de uma nova República, com inclusão dos então excluídos, sem engodo. Assim se permitiria aos romanos de maneira retificada a preservação seu magistério imperial sobre o mundo.

Cícero foi fundador do humanismo latino. Foi o primeiro filósofo a escrever Filosofia em latim e primeiro escritor a escrever poesia e prosa literária. No latim não havia norma culta e gramática. Ele criou a gramática latina e a norma culta. Foi criticado porque o latim era tido por língua bárbara, e que não poderia ser usada para formalizar grandes saberes.

Somente cerca de 500 anos depois de Cícero que se evidencia a vitória de seu pensamento, quando foi revisto por Santo Agostinho. Foi retomado fortemente pelo renascimento, já que se buscava uma feição para o Direito moderno. Chegou-se a coletar quase mil cartas, muitos tratados de Filosofia e Direito, de Ética, livros, e inspirou até Norberto Bobbio.

Morreu em 44 a.C., invocando Deus em seu último segundo de vida.

1 – Discursos de grande gabarito de Cícero enquanto acusava um político chamado Lucius Sergius Catilina. Eis os discursos, para os interessados: http://www.culturabrasil.pro.br/catilinaria.htm

2 – Continuação: “...quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas do Palatino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar do Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste? [...]”

3 – Em outro momento da aula, enquanto respondia a uma pergunta, o professor falou sobre a origem do Cristianismo, que assimilou componentes judaicas e estoicas. Monoteísmo, paraíso, queda do paraíso e redenção. Do estoicismo herdou o conceito de pessoa humana, dignificação humana e universalismo.