O nosso personagem de hoje é
Santo Agostinho, nascido na África romanizada, e filho de patrício, funcionário
municipal de Roma. Sua vivência entre Roma e Milão o fez alcançar a condição de
um dos maiores pensadores da humanidade.
A obra de Santo Agostinho tem
edições em 110 ou 120 volumes. Escreveu muito e impiedosamente. Durante três
anos de sua vida dedicou-se exclusivamente à organização de sua obra, de tal
forma que chega com bastante força aos dias de hoje. Platão, Aristóteles e
Cícero têm obras que até hoje não chegaram até nós.
A segunda coisa que devemos saber
sobre a obra agostiniana é que ela é dotada de qualidade literária que o coloca
na galeria dos grandes escritores do mundo. Há filósofos que não chamaram para
si o compromisso com o labor literário, e há complexidade em seu trabalho, o
que produziu interpretações diferentes sobre seus pensamentos.
Dito isso, é preciso que coloquemos
Santo Agostinho em seu contexto. Qual é? Ele era contemporâneo às quedas de
Roma. A crise imperial constituiu um fenômeno da mais alta magnitude histórica.
O império formalmente parecia sólido e dotado de uma incontrastável força;
entretanto viria a sucumbir ao ser conquistado pelos povos do norte, que havia
300 anos davam trabalho para Roma. Viviam nas fronteiras atacando as mais
distantes casas sob domínio romano. Ninguém deu importância maior àquela gente
que parecia destinada a viver circunscrita a esse ambiente rústico. Mas foi a
gente que, depois desse tempo, feriu de morte o Império Romano.
Acabou que os domínios do império
foram desurbanizados e novamente transformados em vilas. Foi o que gerou o
feudalismo pouco depois. As cidades viraram pó, e foram substituídas por feudos
e aldeias.
O Império Romano era marcado pelo
comércio, artesanato e latifúndio. A primeira coisa que mudou na história, com
a passagem do escravismo para o feudalismo foi a manutenção do latifúndio por
conta da exploração colonial da terra. Agora, para o feudalismo, o que
interessa não é a integralidade da terra, mas o maior parcelamento possível. As
feudalidades recém-formadas poderiam traçar seu próprio Direito, e proporcionar
ao senhor feudal a maior renda possível. O senhor feudal não era produtor e
explorador proativo da terra, mas exercia um empreendimento de exploração
parasitária da terra. Buscava a renda-trabalho, renda-produto e renda-dinheiro.
São as rendas que fizeram a história do feudalismo. Renda-trabalho: o barão da
terra é senhor da terra, seus vassalos ocuparão a terra, terão a posse dela, na
forma de campesinato, e o senhor dispõe de guarda privada. O camponês
trabalhava alguns dias para o senhor e outros para si mesmo.
A segunda forma de renda é a
renda-produto O barão da terra quer se divertir. Queria viver em festas,
torneios, cavalgadas, uma vida mais requintada possível e que não lhe custasse
nada. Por isso ele prefere que o camponês ocupe toda a terra durante seis dias,
trabalhando livremente nesse tempo sem que se lhe reconheça a propriedade. O
que lhe interessava era uma forma de repartição dos produtos que dali forem
colhidos, com participação desigualitária. O trabalho é objetivado em produtos
agrícolas e pastoris.
A terceira forma de renda é
reveladora de que o baronato da terra dá um tiro no pé, pois a economia feudal
é para o uso e não para a troca, justamente pelo caráter de isolamento que em
que os feudos viviam. Quando ganha escala maior, a troca tem a tentação de se
transformar em economia para troca. O excedente foi posto à disposição de quem
se interessasse. Deixou de ser uma economia natural como era no feudalismo, e
começou a ser regida pela moeda. Renasceu o mercado. O surgimento do mercado
levou à morte histórica do senhor feudal. Isso porque forçaram seus camponeses
a ir ao mercado vender o excedente da produção da terra.
Dessas três rendas o baronato da
terra auferiu o lucro no mundo feudal.
O mundo feudal, na verdade, é um
mundo contratual, regido por dois Direitos: o germânico, trazido pelos
bárbaros, e o Direito da Igreja, que criou o Direito Canônico. A fusão é o
Direito Germânico-Canônico. O Germânico se aplicava às questões territoriais e
o Canônico às relações não territoriais.
A relação contratual envolvia o
senhor e o servo. O senhor era o dono da terra, e o servo era o que se
submetia. Celebravam um contrato público. Formavam a relação de suserania e
vassalagem: o servo trabalha e fica adstrito à terra, enquanto o senhor o
protege. Era dotado de uma carga de honra, de ambos os lados. O dever do senhor
é conferir proteção e manutenção ao servo. Proteção no sentido de o “o servo é
cão, mas com dono.” Ninguém mais molestará o servo, e este não deve satisfações
a mais ninguém. Dever de manutenção é a estabilidade. De fome não morrerá, ao
contrário do trabalhador livre, que pode sofrer com as vicissitudes politicas,
econômicas, e do mundo em geral. Manter o servo é questão de honra para o
senhor. Deixá-lo morrer de fome é o mesmo que cair em desgraça.
O dever do servo era de serviços
e de conselhos. Serviços de toda ordem; o que o senhor precisava haveria a quem
pedir. De serviços domésticos até bélicos. E que espécie de conselhos? Os
anciãos são detentores da sabedoria, e isso é a tradição do povo germânico. Sabe
como se resolve, como se enfrenta, como preservar os costumes, quais os
caminhos, artifícios, caminhos errados, e muito mais. É o manancial de
sabedoria.
Eis o contrato de vassalagem.
É esse mundo novo que irá se
instalar no Ocidente com a queda de Roma. O Estado Imperial romano se fragmenta
em sua banda ocidental. Quando isso acontece, Agostinho é um jovem, e um navio
chega com a notícia de que o império se fragmentara. A morte do Estado levou à
crise de morte do Direito positivo. Proibiu-se a aplicação do Direito Romano.
Na Inglaterra mesmo foi até proibido que se conversasse sobre ele.
A Igreja também transitou
incólume com a mudança do império ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo,
e sobreviverá à eventual passagem para o socialismo.
A Igreja passou da periferia à
centralidade do mundo feudal. Das três, é a única unidade que sobrevive
íntegra. Qual a diferença entre o escravo e o servo? Há os pontos de vista
filosófico e jurídico. De acordo com o primeiro, o escravo não é pessoa, mas
coisa. Já o servo é considerado pessoa. Do ponto de vista jurídico, a rigor,
sendo coisa, não dispõe de personalidade jurídica e não pode praticar atos da
vida civil. O servo, sendo pessoa, é dotado de uma capitis diminutio. Tem capacidade, pode vender, comprar, e praticar
os atos da vida contratual, pagar renda-trabalho, renda-produto, renda-dinheiro,
ir ao mercado, negociar o quinhão do que foi produzido... O que lhe falta para
ser pessoa em sua plenitude é “só” a liberdade, a autonomia e a vontade. Três
pequenos elementos.
Nesse mundo novo, a Igreja, assistindo
a transição do escravismo para o feudalismo, tinha outro problema para lidar
durante todos os séculos. O local da autoridade! Cristo não pregou no Ocidente,
mas no Oriente. A banda oriental resistiu à ideia de um bispo de Roma ser a
autoridade. Padres gregos formaram a Igreja Greco-Ortodoxa.
Isso dividiu a Igreja em duas. A
banda oriental constituiu sua própria Igreja, repudiando a ideia de que um
bispo de Roma deva ser a autoridade máxima da Igreja, o Papa universal. Roma se
tornou um referencial por causa de seu peso simbólico de ser o local em que os
discípulos Pedro e Paulo morreram. O primeiro por construir a Igreja, outro por
ter expandido a fé.
A Igreja Católica Apostólica
Romana se colocou numa singular situação. Quando ela nasce, surgem os sintomas
de decadência do Estado imperial romano. Os patrícios compreenderam que essa
Igreja, que era parte do Estado, era o lugar que deveriam ocupar. Assim
dar-se-ia uma sobrevida ao Estado. Até porque a Igreja apoiava a salvação do
Império.
Há fontes históricas que apontam
que a origem dos Papas do primeiro milênio da Igreja no patriciado romano. Isso
despertava muita antipatia, e significava um problema para o Cristianismo e seu
destino, pois ele é o resultado de um Cristo histórico, nascido numa
manjedoura, filho de carpinteiro, e que veio redimir o mundo repleto de vícios.
Era uma Igreja que tinha a vocação da Igreja de Deus. Por isso foi necessário
misturar óleo e água para fundar o Cristianismo institucional.
Essa condição levou à dissociação
do Cristianismo de suas raízes judaicas, que estava presente do Cristianismo
primitivo. Este era o Cristianismo vivido enquanto o Cristo histórico ensinava
sua palavra ao mundo, pregando a redenção universal.
Cristo era um profeta, ligado a
uma tradição de um profetismo judaico. O Judaísmo é repleto de profetas, e
houve um tempo em que eles eram muito, muito comuns no mundo judaico. Havia uma
profusão de profetas por volta do primeiro milênio antes de Cristo. O próprio
Moisés, por exemplo. Também a fé de Amós, a fé de Isaias, entre outras. Isso
tudo é a fé que antecede cronologicamente o Cristianismo.
Quando a Igreja institucional se
estabelece, esse patriciado não tinha relação nenhuma com a profecia judaica.
Estavam sob um paganismo empiricamente vivido, uma religião instrumentalizada.
Então, o que fazer com a fé? Vejamos.
Até agora, a fé foi fé na revelação. O profeta, com sua hipersensibilidade,
sintonizou os mandamentos divinos, e traduziu isso como palavra de Deus. Essa é
a profecia. Depois, a fé passou a ter que ser, necessariamente, conhecimento.
Conhecimento divino, conhecimento sagrado. Quando se faz isso, o que se
instaura é a questão do saber como fonte
do poder, quando tratamos dos gregos. Os simples e humildes passaram a
poder ser profetas, a exemplo de Amós. Inclusive se analfabetos. Se a fé for
sobretudo conhecimento, segundo a razão, segundo a Teologia, forma-se um saber
sistemático a partir de Orígenes e Alexandrino.
Agora a fé é conhecimento, é
razão, e está atrelada ao pensamento complexo, à Filosofia; tem pensamento
regrado, com base histórica, linguística, filosófica, teológica. É uma fé que
será deixada de ser enunciada por testemunhos. A fé do conhecimento depois veio
a fazer com que a fé do simples perca a voz e ensina-os a escutarem e a ouvirem.
Os que outrora eram proativos condutores da fé passaram a ser receptores da
mensagem. Isso porque a fé agora é conhecimento complexo. Os doutores da Igreja
deverão conduzi-la. Traumas, angústias, inquietações? Quem os tivesse
encontraria a solução com os doutores da igreja. Foi isso que fez surgir um
efeito colateral sobre a Igreja, pois, já que “quem sabe pode”, surgiram as
heresias.
Funda-se a Teologia como
conhecimento sistemático da fé. O fundador da Teologia é um sujeito chamado Orígenes.
Havia os padres gregos, da banda oriental da Igreja, e os latinos, da
ocidental. Orígenes é um dos instituidores da chamada Patrística, um extraordinário círculo intelectual que durou do
século I ao século VI d.C. É o movimento dos pais da Igreja. São os fundadores
da doutrina da Igreja. Quais os polos desse movimento patrístico? Parte de
Orígenes e Justino, no século I da cristandade, até o momento em que ela,
cumprindo o seu papel, construiu um bloco doutrinário sólido.
Orígenes é o fundador da
Teologia, é o pai da doutrina do Catolicismo, com grande sabedoria, tentando
unificar os dois lados. Sofreu perseguição e sobreviveu.
O argumento da patrística para
legitimar a Igreja como centro de dominação da Terra é de que não há relação
direta entre o povo e Deus, pois não se sabia o caminho para Deus. O único
caminho possível, seguro, certo, inquestionável e ortodoxo era a Igreja. Isso
legitimava muito mais a Igreja no mundo. Pregou-se, por exemplo, que o Batismo
era a primeira chave para a Salvação e só a Igreja poderia praticá-lo.
Isso elevou a Igreja a uma
centralidade simbólica. É um poder maior que o político e econômico, pois dizia
respeito ao consciente e ao inconsciente. A Salvação passou a ser a questão
central do homem no mundo. Tinha a capacidade de decretar a excomunhão, o que
era visto como a perda do direito de se salvar. “Seu excomungado!” expressão corrente
nos sertões brasileiros.
A Igreja quer fazer desaparecer na história um mundo regido pelo Estado, que disciplinava a vida social segundo do Direito, em que o advogado era o operador do Direito, encontrando sua justificativa de existência no mundo da justiça e liberdade. Buscou constituir outra coluna para realizar a regência da história da humanidade: o mundo não precisa de Estado, pois a Igreja é, em si, o Estado religioso e espiritual. Não precisava de Direito, pois a Teologia é uma forma de disciplina da vida em sociedade. O mundo também não precisa de advogados porque o operador da teologia é o Padre. Ele e outras autoridades eclesiásticas teriam o poder de solver conflitos. Viveriam em paz para a conquista da Salvação e, assim, obter a vida na Eternidade. Usou como prova a queda do Império Romano, que vivia exatamente sob essa estrutura criticada pela Igreja.
Depois entramos em Santo Agostinho propriamente dito.