Filosofia do Direito

sexta-feira, 25 de março de 2011

O Império Romano depois de Jesus e introdução a Santo Agostinho

O nosso personagem de hoje é Santo Agostinho, nascido na África romanizada, e filho de patrício, funcionário municipal de Roma. Sua vivência entre Roma e Milão o fez alcançar a condição de um dos maiores pensadores da humanidade.

A obra de Santo Agostinho tem edições em 110 ou 120 volumes. Escreveu muito e impiedosamente. Durante três anos de sua vida dedicou-se exclusivamente à organização de sua obra, de tal forma que chega com bastante força aos dias de hoje. Platão, Aristóteles e Cícero têm obras que até hoje não chegaram até nós.

A segunda coisa que devemos saber sobre a obra agostiniana é que ela é dotada de qualidade literária que o coloca na galeria dos grandes escritores do mundo. Há filósofos que não chamaram para si o compromisso com o labor literário, e há complexidade em seu trabalho, o que produziu interpretações diferentes sobre seus pensamentos.

Dito isso, é preciso que coloquemos Santo Agostinho em seu contexto. Qual é? Ele era contemporâneo às quedas de Roma. A crise imperial constituiu um fenômeno da mais alta magnitude histórica. O império formalmente parecia sólido e dotado de uma incontrastável força; entretanto viria a sucumbir ao ser conquistado pelos povos do norte, que havia 300 anos davam trabalho para Roma. Viviam nas fronteiras atacando as mais distantes casas sob domínio romano. Ninguém deu importância maior àquela gente que parecia destinada a viver circunscrita a esse ambiente rústico. Mas foi a gente que, depois desse tempo, feriu de morte o Império Romano.

Acabou que os domínios do império foram desurbanizados e novamente transformados em vilas. Foi o que gerou o feudalismo pouco depois. As cidades viraram pó, e foram substituídas por feudos e aldeias.

O Império Romano era marcado pelo comércio, artesanato e latifúndio. A primeira coisa que mudou na história, com a passagem do escravismo para o feudalismo foi a manutenção do latifúndio por conta da exploração colonial da terra. Agora, para o feudalismo, o que interessa não é a integralidade da terra, mas o maior parcelamento possível. As feudalidades recém-formadas poderiam traçar seu próprio Direito, e proporcionar ao senhor feudal a maior renda possível. O senhor feudal não era produtor e explorador proativo da terra, mas exercia um empreendimento de exploração parasitária da terra. Buscava a renda-trabalho, renda-produto e renda-dinheiro. São as rendas que fizeram a história do feudalismo. Renda-trabalho: o barão da terra é senhor da terra, seus vassalos ocuparão a terra, terão a posse dela, na forma de campesinato, e o senhor dispõe de guarda privada. O camponês trabalhava alguns dias para o senhor e outros para si mesmo.

A segunda forma de renda é a renda-produto O barão da terra quer se divertir. Queria viver em festas, torneios, cavalgadas, uma vida mais requintada possível e que não lhe custasse nada. Por isso ele prefere que o camponês ocupe toda a terra durante seis dias, trabalhando livremente nesse tempo sem que se lhe reconheça a propriedade. O que lhe interessava era uma forma de repartição dos produtos que dali forem colhidos, com participação desigualitária. O trabalho é objetivado em produtos agrícolas e pastoris.

A terceira forma de renda é reveladora de que o baronato da terra dá um tiro no pé, pois a economia feudal é para o uso e não para a troca, justamente pelo caráter de isolamento que em que os feudos viviam. Quando ganha escala maior, a troca tem a tentação de se transformar em economia para troca. O excedente foi posto à disposição de quem se interessasse. Deixou de ser uma economia natural como era no feudalismo, e começou a ser regida pela moeda. Renasceu o mercado. O surgimento do mercado levou à morte histórica do senhor feudal. Isso porque forçaram seus camponeses a ir ao mercado vender o excedente da produção da terra.

Dessas três rendas o baronato da terra auferiu o lucro no mundo feudal.

O mundo feudal, na verdade, é um mundo contratual, regido por dois Direitos: o germânico, trazido pelos bárbaros, e o Direito da Igreja, que criou o Direito Canônico. A fusão é o Direito Germânico-Canônico. O Germânico se aplicava às questões territoriais e o Canônico às relações não territoriais.

A relação contratual envolvia o senhor e o servo. O senhor era o dono da terra, e o servo era o que se submetia. Celebravam um contrato público. Formavam a relação de suserania e vassalagem: o servo trabalha e fica adstrito à terra, enquanto o senhor o protege. Era dotado de uma carga de honra, de ambos os lados. O dever do senhor é conferir proteção e manutenção ao servo. Proteção no sentido de o “o servo é cão, mas com dono.” Ninguém mais molestará o servo, e este não deve satisfações a mais ninguém. Dever de manutenção é a estabilidade. De fome não morrerá, ao contrário do trabalhador livre, que pode sofrer com as vicissitudes politicas, econômicas, e do mundo em geral. Manter o servo é questão de honra para o senhor. Deixá-lo morrer de fome é o mesmo que cair em desgraça.

O dever do servo era de serviços e de conselhos. Serviços de toda ordem; o que o senhor precisava haveria a quem pedir. De serviços domésticos até bélicos. E que espécie de conselhos? Os anciãos são detentores da sabedoria, e isso é a tradição do povo germânico. Sabe como se resolve, como se enfrenta, como preservar os costumes, quais os caminhos, artifícios, caminhos errados, e muito mais. É o manancial de sabedoria.

Eis o contrato de vassalagem.

É esse mundo novo que irá se instalar no Ocidente com a queda de Roma. O Estado Imperial romano se fragmenta em sua banda ocidental. Quando isso acontece, Agostinho é um jovem, e um navio chega com a notícia de que o império se fragmentara. A morte do Estado levou à crise de morte do Direito positivo. Proibiu-se a aplicação do Direito Romano. Na Inglaterra mesmo foi até proibido que se conversasse sobre ele.

A Igreja também transitou incólume com a mudança do império ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, e sobreviverá à eventual passagem para o socialismo.

A Igreja passou da periferia à centralidade do mundo feudal. Das três, é a única unidade que sobrevive íntegra. Qual a diferença entre o escravo e o servo? Há os pontos de vista filosófico e jurídico. De acordo com o primeiro, o escravo não é pessoa, mas coisa. Já o servo é considerado pessoa. Do ponto de vista jurídico, a rigor, sendo coisa, não dispõe de personalidade jurídica e não pode praticar atos da vida civil. O servo, sendo pessoa, é dotado de uma capitis diminutio. Tem capacidade, pode vender, comprar, e praticar os atos da vida contratual, pagar renda-trabalho, renda-produto, renda-dinheiro, ir ao mercado, negociar o quinhão do que foi produzido... O que lhe falta para ser pessoa em sua plenitude é “só” a liberdade, a autonomia e a vontade. Três pequenos elementos.

Nesse mundo novo, a Igreja, assistindo a transição do escravismo para o feudalismo, tinha outro problema para lidar durante todos os séculos. O local da autoridade! Cristo não pregou no Ocidente, mas no Oriente. A banda oriental resistiu à ideia de um bispo de Roma ser a autoridade. Padres gregos formaram a Igreja Greco-Ortodoxa.

Isso dividiu a Igreja em duas. A banda oriental constituiu sua própria Igreja, repudiando a ideia de que um bispo de Roma deva ser a autoridade máxima da Igreja, o Papa universal. Roma se tornou um referencial por causa de seu peso simbólico de ser o local em que os discípulos Pedro e Paulo morreram. O primeiro por construir a Igreja, outro por ter expandido a fé.

A Igreja Católica Apostólica Romana se colocou numa singular situação. Quando ela nasce, surgem os sintomas de decadência do Estado imperial romano. Os patrícios compreenderam que essa Igreja, que era parte do Estado, era o lugar que deveriam ocupar. Assim dar-se-ia uma sobrevida ao Estado. Até porque a Igreja apoiava a salvação do Império.

Há fontes históricas que apontam que a origem dos Papas do primeiro milênio da Igreja no patriciado romano. Isso despertava muita antipatia, e significava um problema para o Cristianismo e seu destino, pois ele é o resultado de um Cristo histórico, nascido numa manjedoura, filho de carpinteiro, e que veio redimir o mundo repleto de vícios. Era uma Igreja que tinha a vocação da Igreja de Deus. Por isso foi necessário misturar óleo e água para fundar o Cristianismo institucional.

Essa condição levou à dissociação do Cristianismo de suas raízes judaicas, que estava presente do Cristianismo primitivo. Este era o Cristianismo vivido enquanto o Cristo histórico ensinava sua palavra ao mundo, pregando a redenção universal.

Cristo era um profeta, ligado a uma tradição de um profetismo judaico. O Judaísmo é repleto de profetas, e houve um tempo em que eles eram muito, muito comuns no mundo judaico. Havia uma profusão de profetas por volta do primeiro milênio antes de Cristo. O próprio Moisés, por exemplo. Também a fé de Amós, a fé de Isaias, entre outras. Isso tudo é a fé que antecede cronologicamente o Cristianismo.

Quando a Igreja institucional se estabelece, esse patriciado não tinha relação nenhuma com a profecia judaica. Estavam sob um paganismo empiricamente vivido, uma religião instrumentalizada.

Então, o que fazer com a fé? Vejamos. Até agora, a fé foi fé na revelação. O profeta, com sua hipersensibilidade, sintonizou os mandamentos divinos, e traduziu isso como palavra de Deus. Essa é a profecia. Depois, a fé passou a ter que ser, necessariamente, conhecimento. Conhecimento divino, conhecimento sagrado. Quando se faz isso, o que se instaura é a questão do saber como fonte do poder, quando tratamos dos gregos. Os simples e humildes passaram a poder ser profetas, a exemplo de Amós. Inclusive se analfabetos. Se a fé for sobretudo conhecimento, segundo a razão, segundo a Teologia, forma-se um saber sistemático a partir de Orígenes e Alexandrino.

Agora a fé é conhecimento, é razão, e está atrelada ao pensamento complexo, à Filosofia; tem pensamento regrado, com base histórica, linguística, filosófica, teológica. É uma fé que será deixada de ser enunciada por testemunhos. A fé do conhecimento depois veio a fazer com que a fé do simples perca a voz e ensina-os a escutarem e a ouvirem. Os que outrora eram proativos condutores da fé passaram a ser receptores da mensagem. Isso porque a fé agora é conhecimento complexo. Os doutores da Igreja deverão conduzi-la. Traumas, angústias, inquietações? Quem os tivesse encontraria a solução com os doutores da igreja. Foi isso que fez surgir um efeito colateral sobre a Igreja, pois, já que “quem sabe pode”, surgiram as heresias.

Funda-se a Teologia como conhecimento sistemático da fé. O fundador da Teologia é um sujeito chamado Orígenes. Havia os padres gregos, da banda oriental da Igreja, e os latinos, da ocidental. Orígenes é um dos instituidores da chamada Patrística, um extraordinário círculo intelectual que durou do século I ao século VI d.C. É o movimento dos pais da Igreja. São os fundadores da doutrina da Igreja. Quais os polos desse movimento patrístico? Parte de Orígenes e Justino, no século I da cristandade, até o momento em que ela, cumprindo o seu papel, construiu um bloco doutrinário sólido.

Orígenes é o fundador da Teologia, é o pai da doutrina do Catolicismo, com grande sabedoria, tentando unificar os dois lados. Sofreu perseguição e sobreviveu.

O argumento da patrística para legitimar a Igreja como centro de dominação da Terra é de que não há relação direta entre o povo e Deus, pois não se sabia o caminho para Deus. O único caminho possível, seguro, certo, inquestionável e ortodoxo era a Igreja. Isso legitimava muito mais a Igreja no mundo. Pregou-se, por exemplo, que o Batismo era a primeira chave para a Salvação e só a Igreja poderia praticá-lo.

Isso elevou a Igreja a uma centralidade simbólica. É um poder maior que o político e econômico, pois dizia respeito ao consciente e ao inconsciente. A Salvação passou a ser a questão central do homem no mundo. Tinha a capacidade de decretar a excomunhão, o que era visto como a perda do direito de se salvar. “Seu excomungado!” expressão corrente nos sertões brasileiros.

A Igreja quer fazer desaparecer na história um mundo regido pelo Estado, que disciplinava a vida social segundo do Direito, em que o advogado era o operador do Direito, encontrando sua justificativa de existência no mundo da justiça e liberdade. Buscou constituir outra coluna para realizar a regência da história da humanidade: o mundo não precisa de Estado, pois a Igreja é, em si, o Estado religioso e espiritual. Não precisava de Direito, pois a Teologia é uma forma de disciplina da vida em sociedade. O mundo também não precisa de advogados porque o operador da teologia é o Padre. Ele e outras autoridades eclesiásticas teriam o poder de solver conflitos. Viveriam em paz para a conquista da Salvação e, assim, obter a vida na Eternidade. Usou como prova a queda do Império Romano, que vivia exatamente sob essa estrutura criticada pela Igreja.

Depois entramos em Santo Agostinho propriamente dito.