Filosofia do Direito

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Jean-Jacques Rousseau


 

Vamos conversar sobre Jean-Jacques Rousseau hoje. Rousseau (1712 – 1778) mereceria todo um curso, mas temos uma agenda limitada no tempo, e temos que discuti-lo dentro da medida do possível.

Rousseau nasceu em Genebra, na Suíça, mas era de origem francesa. Genebra era e é um lugar muito bonito, centro do protestantismo. Um dos lideres da Reforma Protestante do século XVI era um suíço de Zurique. João Calvino, um francês, governou Genebra e estabeleceu um governo teocrático. Naquela cidade passa o Rio Ródano; é um lugar onde há de tudo: joalherias, sedes de vários bancos mundiais, e muitos escritórios de advocacia por acaso avizinhados das joalherias e dos bancos. Curiosa essa sequência. Já que é onde se opera o crime mundializado de lavagem, os escritórios estão disponíveis bem pertinho!

Mas foi ali que nasceu Jean-Jacques Rousseau, no Bairro de São João, um bairro católico. Ele é originário de segmentos intermediários da sociedade, mais especificamente a pequena burguesia relojoeira. Rousseau, entretanto, ascenderá à condição de grande burguês. Teve um irmão que teve um destino incógnito: ao sair de casa um dia, nunca mais foi visto. Existe um romance chamado O Filho Único, contado da perspectiva do irmão que ficou sozinho. Rousseau enfrentará a aventura do mundo. Fugirá de casa, mas dele sempre se terão notícias. Até pensou em retornar a Genebra.

Rousseau teve o infortúnio de, nos verdíssimos anos de sua vida, perder sucessivamente a mãe e o pai. Foi criado por tios e avós. Essa criação foi traumática para ele, ainda mais porque o menino atípico, que sentia profundamente falta do pai e da mãe, com a educação que os tios lhe conferiam, terminou conflitado com esse ambiente e foi mandado para uma instituição religiosa onde os jovens com problemas de família eram mandados. Quase um reformatório. Por isso Rousseau será criado por padres católicos e depois por pastores protestantes. Foi tanto católico quanto protestante. Quando a família o aceita socialmente e se torna parte da burguesia relojoeira suíça, quando a grande indústria do Paraguai e da China não lhe faziam concorrência, os relógios eram grandes obras de arte. Rousseau já havia partido para a aventura no mundo. Fugiu à pé da Suíça para a França, e viveu de maneira muito desigualitária do ponto de vista de sua experiência material. Conheceu tanto a necessidade quanto o fausto. Não sendo nobre, não tendo família e escopo social de Montesquieu ou Voltaire, sem chance de exercer funções na Administração, Igreja, Exército ou Nobreza, tornou-se protegido, em especial, de figuras riquíssimas e potentadas. Havia pessoas que queriam um acompanhante de alta sofisticação e que se dispusesse a viver nesses luxuosos castelos. Uma delas se fez como que sua mãe, Françoise-Louise de Warens, ou simplesmente “Senhora de Warens” e foi certamente a maior das protetoras de que dispôs.

Ele a chamava freudianamente de mamãe. Com ela, teve vida principesca. Não foi eterna porque nada é eterno; essa Madame de Warens se sentia com potencial para proteger mais de um Rousseau. Passou a abrigar, posteriormente, um oficial do exército. Estabeleceu-se um amor a três. Rousseau entra num processo de desconstrução psicológica que evidência um traço doentio de sua personalidade, e começa a fazer uma leitura patológica da realidade. O mundo era uma grande conspiração em seu desfavor. Levou-o a escolher o isolamento total, e rompeu com toda a humanidade. Onde está, considera que todos conspiram contra ele.

Rousseau é tão sofrido nesse particular que saiu em estado febril distribuindo manuscritos não publicados chamados “Rousseau, Juiz de Jean-Jacques”. Distribuía a qualquer estranho. Tratava de acusações reais e imaginárias. Essa atitude levou-o a receber cartas anônimas. Ele foi ameaçado de que escreveriam uma biografia não autorizada dele. Ficou mais louco do que poderia ser.

Em estado febril escreveu um clássico chamado Confissões. Livro único na história da humanidade. Raríssimas vezes alguém terá se desnudado psicologicamente com a força e riqueza de detalhes que Jean-Jacques Rousseau fez nesse livro, parecido com as Confissões de Santo Agostinho. Custa-se a crer que tudo aquilo tenha acontecido na vida de um homem só. Assim ele foi ao mais absoluto isolamento. Em sua companhia só tinha um cão. Rousseau uma vez declarou que descrê absolutamente da condição humana.

Esse Jean-Jacques conhecerá também as necessidades porque, inimizado por todos, não terá as âncoras sociais e as estabilidades possíveis a quem dispunha de seu talento. Viveu sobretudo como preceptor, como educador de nobres. É um grande mestre da cultura. Mas Rousseau, ordinariamente, litiga com seus próprios empregadores. Não tem a inteligência emocional para conviver com diferenças e rompe sucessivamente com eles. Até escreveu uma tal “Carta de Saint Marie Sobre Educação de Seus Filhos”. Começa, no primeiro parágrafo, por escrever um desaforo: “eu educo seus filhos da maneira mais refinada durante as manhãs e tardes, e você os deseduca durante as noites. Não servirão para nada! Vou lhe dizer o que é a verdadeira educação.”

Viveu também como copista de obras musicais. Vendia-as para sobreviver. Ao mesmo tempo, desempregando a si mesmo, sobrevive também fazendo conferências, porque aquela é a época em que surgia um mercado para arte, para as letras para a cultura em geral. Por exemplo, uma vez, foi chamado para fazer uma "conferência sobre o amor". Recebe direitos autorais, fica desempregado várias vezes como preceptor, recebe pelos seus serviços, profere conferências e tira uma graninha. Assim sobrevive. Mas nas entressafras desses momentos ele conhece a necessidade. Assim foi sua vida.

A experiência religiosa foi algo profundamente marcante na vida de Rousseau, e ele jamais se despedirá da fé de Deus e da Religião. Bateu de frente com os demais iluministas, anticlericais, que faziam pregação antieclesial. Rousseau sempre carregou a marca da religiosidade e expressará em toda sua vida. Paralelamente escreveu um dicionário musical.

Existiu também o Rousseau escritor, maravilhoso escritor. Se não tivesse um significado como sociólogo, politicólogo ou filósofo, sobreviveria como esteta. Era da família de Platão, de Cícero, dos grandes escritores, que importavam-se não apenas com o conteúdo, mas com o estilo. Estilo absolutamente extraordinário de alguém que sobreviveria pelo lavor literário. Escreveu romances, e é o autor que, entre outras peças, escreveu A Nova Heloisa. É o fundador do Romantismo. O que significa? A elevação do indivíduo a uma dignidade no mundo das artes sem precedentes. A validação do eu, da subjetividade e deste mundo emocional de que cada um é portador. Cada homem é um universo, e suas experiências subjetivas frente ao mundo é dos maiores patrimônios emocionais.

Rousseau filósofo: absolutamente singular. É filósofo da Natureza, ecologista num mundo que legitima a depredação da Natureza; é filósofo da política, do Estado e do Direito. É também filósofo do ser, da ontologia, da dimensão metafísica da vida. É um saber grande da história da Filosofia. Escreveu como arte literária.

No Direito, a contribuição de Rousseau está nas obras Do Contrato social, Discursos Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, chamado por Norberto Bobbio de “absolutamente clássico”; há também as Cartas Escritas na Montanha, e também temos Direito no Projeto de Constituição para a Córsega e para a Polônia. Este foi um livro recentemente muito requisitado porque a Polônia entrou de vez na transição da modernidade para a pós-modernidade, e com o fato de o Papa João Paulo II ser originário de lá. Derrubou o socialismo real. Nesta ocasião, o livro de Jean-Jacques Rousseau foi muito reeditado no mundo. Polônia ficou afirmada na história, já que em todas as vezes que o império russo se expandiu trouxe a Polônia para si.

Rousseau fará da França seu lugar de eleição. De origem francesa, embora suíço, a França será o lugar de sua vida. Inscreveu-se em concursos literários que as academias lançam periodicamente sob a chancela real. Lança-se um tema, dá-se um prazo, lançam-se inscrições, e monografias são submetidas. Quem ganha leva dinheiro e ampla legitimação real e intelectual. O trabalho é publicado e ingressa num clube dos produtores de ideias. Rousseau ganhou vários desses concursos. Começou um processo de crescente transformação que lhe conferirá notoriedade, e começa a haver um jogo de egos que vai encontrar em Voltaire o principal opositor de Rousseau. Voltaire até então estava confortavelmente legitimado como o mais celebre da França, e Rousseau começa a abalá-lo. Voltaire chega à condição de seu arqui-inimigo, inclusive um dia denunciou Rousseau para que a polícia prendesse-o e deportasse-o para a Suíça, pois era nocivo à vida social. Foi um jogo de vaidades.

Isso, claro, em desfavor de um homem que tinha aquelas condições psicológicas.

Rousseau entra para os iluministas, para as enciclopédias, e entrou no desafeto deles por causa de sua singularidade de pensamento. Portador desse quadro nervoso, também litigou de maneira interpessoal e terminou inimigo de todos. Considerou os iluministas todos conspiradores.

De resto, devemos dizer que o traço maior do iluminismo está no racionalismo. Desautoriza o mundo emocional, sentimental. Mas Rousseau não. Uma das suas singularidades é que ele também é racionalista, profundamente vinculado, preso, relacionado com o mundo das emoções, dos sentimentos, das volições, da subjetividade, com o mundo sentimental. Considerando essa dimensão emocional e intuitiva em detrimento do que era a regra dos iluministas, que era a valoração exclusiva da razão, que construiria a vida simétrica, geométrica, planejada, enfim, totalmente marcada pelo princípio da racionalidade. Uma vez solidificada, seria transformada em regra de vida do mundo, tirando as superstições.

Rousseau não acredita nisso, pois considera que a vida jamais será racional e sempre a razão dividirá espaço com um agudo mundo sentimental, volitivo, poético e intuitivo. É uma crucial singularidade que fez a diferença entre Rousseau e os iluministas. Não era um clube exclusivamente francês, mas também escocês, espanhol, inglês, e até português. Havia iluministas até nos Estados Unidos! Em Portugal, coincide com o magistério de Marques de Pombal. Tentou fazer uma reforma pedagógica no sistema educacional português.

Que relação Rousseau tem com o Brasil? Rousseau nunca esteve aqui mas, na verdade, agiu como se conhecesse o Brasil. Não esteve fisicamente aqui, mas é um grande leitor, e leu profundamente a obra Mensagens, que fala no Brasil, de Michel de Montaigne (1533 - 1592), e mais uma coisa chamada Literatura dos Viajantes. Mandavam-se espiões, cientistas, sociólogos e antropólogos para conhecer o Brasil. Isso foi feito de 1500 até meados do século XIX. Rousseau conheceu as observações existentes até seu tempo. Era tudo publicado na Europa, não aqui.

Leu também descrições de como vivia o índio brasileiro. Nisso Rousseau diz: “eis aqui o Bom Selvagem, como sempre sonhei!” O índio brasileiro é o último remanescente na existência de um Estado de Natureza, do elo perdido do paraíso. A partir da descrição do modo de vida do índio brasileiro, de sua relação idílica com sua ambiência, Rousseau constrói o Mito do Bom Selvagem. O que é o Bom Selvagem? Alguém que, no Estado de Natureza, revelou a existência de uma antropologia fazendo com que a percepção da natureza humana fosse diametralmente oposta à descrita por Thomas Hobbes. Para o pensador inglês o homem era o lobo do homem, portanto deveria viver em estado de permanente beligerância. O lobo teria que preventivamente matar outro para não morrer. Para Hobbes o homem era mau por definição. Rousseau, ao contrário, disse que o homem era, por definição, bom. O último testemunho do homem original era o índio brasileiro. O homem, nas origens, foi bom, puro e doce. Assim como o índio brasileiro!

Afonso Arinos de Melo Franco (1905 - 1990), jurista de Minas Gerais, que foi senador da constituinte, Ministro das Relações Exteriores do governo parlamentarista de 61, escreveu um livro reeditado recentemente chamado O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa. É a relação de Rousseau para criar o Mito do Bom Selvagem com o índio brasileiro.

Estado de Natureza permitirá a Rousseau disser que ali se vivia pacificamente, em estado de pureza, bondade e doçura. Havia posse comum das coisas, tudo era fraternalmente partilhado. O homem encontrava-se em sintonia com o outro, e todos viviam num Estado de equilíbrio com a natureza e tudo era preservado. Eis o estado de Natureza de Rousseau, contrastante com o estado de natureza de Hobbes.

O que existiu num dia? Outra obra. Narrava que, num mês de verão, um bando amigo e fraterno caminhava sobre a Natureza e, de repente, numa manhã esplendente de Sol, um homem mais forte que os demais do grupo apontou para algo e disse “isto é meu. Ai de quem me contestar!” O que ele tinha era a força. Por ela, criou a propriedade. Efetivamente exclui a posse comum das coisas, fazendo com que, no mesmo dia, dois males tenham surgido na história da humanidade: propriedade e desigualdade. Isto é meu, e não do resto da humanidade. Esses são os dois males da humanidade para Rousseau.

Rousseau prenunciou Karl Marx do século XIX, que nunca o citou em suas obras, mas o leu de cabo a rabo e o replicou.

Qual o remédio desses dois males? Rousseau diz que a propriedade se purifica na medida em que o proprietário efetivamente trabalha e que a propriedade se torna proveito social e não apenas pessoal, e que a propriedade se torna objeto de um proveito social quando cumpre com a função social, e que partilha, na forma de lucro, seus resultados. Resgata a legenda de São Tomás de Aquino da função social da propriedade e a especifica: o que é produzido é do proprietário e da comunidade que o produziu. A comunidade externa deve ser beneficiada pelo cumprimento da função social da propriedade, o que é, hoje, um direito em nossa Constituição de 1988. Veja o alcance que tem a função social da propriedade. Com o proprietário trabalhando ativamente, partilhando com a comunidade o produto da propriedade, e distribuindo o lucro também com os que nela trabalham, assim a humanidade se purifica.

Rousseau não é contrário à propriedade, mas só quer que ela se purifique.

E a desigualdade? Como se purificaria? A propriedade se purificaria se se incluísse numa agenda de uma democracia social. A ideia seria haver uma massa de proprietários cada vez maior. Isso é “democratizar”, para Rousseau. Tornar cada vez mais horizontal a experiência da propriedade. Era a democracia social. Assim fundar-se-ia uma sociedade fundamentalmente social. Sociedade majoritariamente de classe média. Com isso, a desigualdade se purificaria.

A força do cantão, que é de natureza comunitária, e o passado histórico do mundo romano são dois caracteres. Dominaram a Suíça por mais de 500 anos. Rousseau pensa poderosamente na vida comunitária. Os iluministas voltam aos gregos, enquanto Rousseau volta sobretudo aos romanos. Sua Suíça foi romana. Rousseau pensa nisso: em democracia social. Existirá quanto maior for o número de proprietários, que tenham a vivência da propriedade, um fato que preocupou Roma e os romanos. O Império Romano legaliza a propriedade privada, a grande propriedade. Com as crescentes reclamações dos estrangeiros e homens pertencentes a classes mais baixas da sociedade, o Estado resolveu difundir o espírito da propriedade tornando a propriedade móvel cada vez mais possível. A propriedade imóvel que permanece reservada. Mas a propriedade móvel também legitima o instituto da propriedade privada.

Rousseau sonha com o estabelecimento social de uma sociedade de classe média. Em certo sentido, a sociedade americana é a que mais se aproxima do ideal de Rousseau. Foi o segredo dos Estados Unidos no mundo! Foi ali que primeiramente as classes médias foram expandidas. No século XIX o Brasil não tinha classe média. A rigor, não existia povo. Só havia despojados e proprietários. Tanto que o Código Civil é um produto do século XX no Brasil, e não do século XIX ou antes.

Rousseau contesta o falso contrato social. Matéria para amanhã!