Filosofia do Direito

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Rousseau – continuação



Voltemos a falar de Jean-Jacques Rousseau. Vamos precisar algumas coisas relativas ao que o professor disse ontem.

Das circunstâncias pessoais e biográficas de Rousseau podemos dizer que sua mãe morreu quando ele nasceu. É uma das razões de seus transtornos emocionais. Também é por isso que a Madame de Warens era como uma mãe para ele. O pai de Rousseau ficou em sua companhia até 10 anos de idade. Era irrequieto, mundano, e desapareceu igual o irmão do pensador. Cedo alfabetizou o filho, que, aos oito anos, já sabia todos os historiadores gregos e romanos. O gosto pela leitura acompanharia Rousseau para sempre.

Rousseau tinha uma doença que eventualmente levou-o à morte, na bexiga, que o incomodou muito e se aprofundou ao final de sua vida. Hoje se tem à mão, e é possível até olhar isso na Universidade de Genebra, os dossiês médicos que apontavam que ele era absolutamente estéril.

Sua governanta ficou 25 anos com ele. O que há de peculiar é que com ela ele teve 5 filhos, sendo absolutamente estéril! É um retrato que não deixa de ter seu quê de perverso. O que Rousseau fez com essas crianças? Um dia preparou a garotada para ir ao parque infantil, numa casa estatal de recepção de crianças abandonadas e nunca mais foi buscá-las. Isso fez amargar as críticas sobre ele.

Nas cartas anônimas que ele recebia, isso era apontado: a falta de responsabilidade moral. Certamente, porque Rousseau foi um dos maiores pedagogos da história da humanidade. Escreveu um livro indicando como as crianças devem ser amorosamente tratadas e educadas. Por isso foi condenado à morte na Suíça e na França. No mesmo ano ele publica o Do Contrato Social. Começou distribuindo na Holanda, mas, ao espalhar na Europa, foi condenado. Isso o levou à clandestinidade, a ser foragido, e elevou os traços nervosos de sua psique. De lá ele escreve as Cartas Escritas na Montanha, em que se defende de todos os processos.

Rousseau é alguém que estará radicalmente envolvido com as ideias mais febris que irão criar o espírito do iluminismo político. As massas teriam uma clarividência sobre a ordem que está se formando, e formou um arco histórico que terminará por derrubar o antigo regime. O antigo regime era um embate entre burguesia e os barões da terra, com feudalismo decadente e capitalismo nascente. O feudalismo não quer sucumbir, mas acaba ficando para trás na velocidade da produção de riqueza. O próprio Marx era fascinado por capitalismo! O sistema econômico criou um desenvolvimento em questão de décadas, que o feudalismo levou séculos para criar, enquanto o escravismo antigo levou milênios. Acelera-se o tempo social com o advento do capitalismo. Comunicações, transportes, ideias, vivência mútua. A própria construção econômica da riqueza se insere de maneira radical nesse ambiente. O poder germinativo do capitalismo é muito maior do que do feudalismo.

Do ponto de vista econômico, é possível dizer que a massa de riqueza socialmente gerada está sobretudo vinculada à própria economia. Do ponto de vista social o feudalismo já era página virada. Mas as forças da terra resistiram, e de lá surgiu a primeira teoria econômica sistematicamente pensada: a chamada fisiocracia. Pensamento fisiocrático remete-se à ideia de physis = Natureza, krateia = poder, força. François Quesnay (1694 – 1774), Ministro das Finanças francês, criou uma escola econômica de onde surge um pensamento sistemático: toda riqueza é proveniente da terra. Na sociedade escravista e feudal, a riqueza vinha da terra. No capitalismo não. Criou uma díade, um antagonismo entre riqueza natural e riqueza artificial. Quesnay impõe o argumento de que o Estado devia perseguir toda e qualquer forma de riqueza artificial e subsidiar toda fonte de riqueza natural. Significa dizer que política econômica de Estado é política econômica para a terra. Demonstrou com um livro chamado Tableau Économique. É uma das altas tentativas de se criar um fluxograma que explique como se constrói a riqueza. Explicou por que a única riqueza germinativa é a da terra, e defende que a riqueza urbana é artificial e estéril. Daí as forças do campo deveriam pressionar o Estado para criar uma política econômica voltada para a terra.

O feudalismo não teve como sobreviver mais a não ser por controle tirânico. Quem a controlava era a nobreza decadente, que perdeu o vínculo com a terra. Passou a ter que ocupar as instâncias jurídicas e políticas para garantir o status quo. Isso significava fazer concessões. Veio a nobreza togada, a nobreza da terra, que não queria deixar o mundo se transformar.

Por isso que encontramos um iluminista italiano em estilo razoavelmente francês chamado Cesare Beccaria. Passou grande parte da vida preso. O próprio Beccaria disse que o juiz deve fazer tudo, menos interpretar a lei. Interpretava sempre em desfavor da verdade e da justiça. Em vez disso, defendia que o juiz deveria aplicar a lógica formal de Aristóteles, ou seja, aplicar a lei mecanicamente ao caso concreto sem dar a mínima opinião sobre ele.

Houve um contemporâneo de Beccaria chamado Pietro Verri que o acusou de ter copiado duas ideias postas no livro Dos Delitos e Das Penas. Escreveu um clássico chamado Observações Sobre a Tortura. Demonstrou a existência da tortura no procedimento judicial. “O juiz aplica uma fórmula para que a verdade transpareça.” Descrevia o braço armado do Estado como instrumento de tortura, pondo o acusado no cavalete, içando-o até 30 metros; assim a verdade transpareceria. Depois de ter estado nas alturas, ao descer, o acusado dizia: “mas qual é mesmo a verdade que Vossa Excelência quer que eu diga?” E subia novamente. Mais 30 metros e, então, o sujeito era solto. Na ata das audiências, ficava escrito: “por não haver mais nada, determinei que seu cadáver fosse retirado do pátio.” Não havia garantias processuais.

O antigo regime é expressão do patrimonialismo. A esfera pública é privilégio, direito hereditário das forças da terra. Patrimonialismo significa uma herança que se difunde no mundo, chegando a Portugal e vindo até o Brasil. o Brasil é inserido na história perifericamente num instante em que se faz uma transição do feudalismo para o capitalismo, mas o signo sobre o qual o Brasil é construído é bem mais feudalista. “Você sabe com quem está falando?”

“O patrimonialismo deve ser vencido pelo liberalismo!” Isso se pregou. Isso significa aplicar a Filosofia da Liberdade. Onde está a liberdade? Na esfera econômica, na jurídica, na política, e no mundo dos valores. Que ordem é essa? Emergência do indivíduo na história, que o mundo moderno está propondo por meio dessa vocalização dos iluministas, e pretende que o eixo central da vida se resolva entre indivíduo e Estado. A ordem jurídica deve girar em torno dessa dualidade e o Estado deve colocar todo seu poder jurídico e político a serviço do indivíduo, em torno dessa legenda da liberdade.

A liberdade econômica estava na livre empresa. O indivíduo é o ator que, por excelência, deve proativamente ocupar os espaços econômicos do Estado no exercício de empreender. Detém os capitais, a atitude proativa do mercado é dele, e o Estado deve ser uma força-tarefa cujo papel é a geração de segurança, criação de infraestrutura para seu empreendimento e concessão de subsídios para o ato de empreender. Laissez faire et laissez passer. Deixe o indivíduo fazer, deixe o indivíduo passar. O mercado não precisa de intervenção do Estado. O Estado deve conferir segurança ao proprietário.

Isso contrasta com uma sociedade em que se diz que tudo é Estado, que não há interesse individual, que o mercado não tem sua própria dinâmica e as empresas estatais devem fazer a construção da riqueza, e não os acordos individuais, não as empresas privadas.

A liberdade do mundo moderno se restringirá à dimensão econômica. Será problemático porque o ato de empreender implica posse de capitais, e capital não é visto como um bem democrático. Não havia a figura do pequeno empreendedor.

Liberdade jurídica: o que é isso? A ideia de que o indivíduo é sujeito de direitos, e que sua subjetividade precisa de tutela e proteção jurídica para que possa estar amparada no poder jurídico do Estado. Direito, nessa perspectiva liberal, nada mais é que tutela à liberdade. Liberdade aqui é jurídica, liberdade do indivíduo como expressão de sua subjetividade. Sujeito de direitos que está colocado de maneira central na esfera jurígena do Estado.

Liberdade política: que liberdade política é essa? Só a ética do consentimento manifestada pelo indivíduo, através de partido e eleição, por meio de votos, pode legitimar a ordem pública. Assim elegem-se lideres. A ética do consentimento representa o indivíduo. Ideia bem diferente da que tinha aquele rei (Luís XIV, 1638 – 1715) que dizia “L’État c’est moi.”

Fidel Castro disse, certa feita: “o regime foi legitimado no dia da revolução.” Isso é absolutismo, do mais radical possível. E em pleno século XX. Compreende-se aqui que a legitimação é um processo diário e permanente que a ordem precisa, e decorre da vocalização do cidadão, e não apenas num momento pontual, que seria o dia da revolução à qual Fidel se referia.

Por fim, onde está a liberdade na esfera dos valores e consciência? No livre exercício do chamado direito de consciência. O indivíduo tem poderes que são dele, não do príncipe, de escolher, fazer, falar, cultuar, transitar, se comunicar e nenhum poder do Estado deve suprimi-lo. Emitir opiniões, seguir qualquer credo, escrever e publicar segundo sua consciência, e assim por diante. É o direito de consciência, que ajudará a fundar o Direito moderno. Paz de Vestfália: não é poder do príncipe estabelecer a religião do Estado, mas direito de cada cidadão cultuar ou não seu transcendente de acordo com sua soberana vontade.

Liberalismo, afinal, é centralidade do indivíduo na história com a conferência desses poderes: liberdade, autonomia e vontade. Essa agenda, essa proposta, esse pensamento dos iluministas é aquele do qual Rousseau diverge. Rousseau é radicalmente contra o patrimonialismo, e desconfia profundamente da verdade dos ideais da burguesia. A burguesia não tem força histórica para, sozinha, derrubar o estabelecimento feudal vigente. Sozinha não poderia. A cidadela feudal, com seu monobloco jurídico-político, tem o vigor de uma força, personificados na bastilha, que não permite à burguesia, sozinha, controlar a ordem feudal. Seria necessário, para que se derrubasse a secular ordem feudal, a formação de um bloco histórico que reúna todas as forças descontentes com o feudalismo, numa só vontade para que se pudesse, numa ponderação nova, estabelecer um embate com o antigo regime sobrevivente. Nesse bloco histórico estão camponeses, os chamados sans-culottes, que eram radicais trabalhadores urbanos das classes mais baixas, a pequena burguesia tradicional, as novas classes médias urbanas, operariado, que não consegue espaço formal no mundo do trabalho, além da burguesia, novos e decadentes burgueses. Todos esses se reúnem numa força para fazer o combate ao antigo regime.

O apelo histórico da burguesia reflete nas três bandeiras da Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade. Essas bandeiras a burguesia liberal não inventou, mas eram da franco-maçonaria. O apelo é propiciar a liberdade, igualdade e fraternidade aproveitando a todo esse bloco histórico. Por que vamos todos juntos derrubar o antigo regime? Porque virá uma nova ordem de liberdade e igualdade. A burguesia manuseou o pano de toureiro, movendo todos contra o antigo regime, já que ela não conseguiria sozinha. Por isso Rousseau se antagoniza com os demais enciclopedistas e com os demais iluministas. Acreditava que o liberalismo no poder exprimiria a verdade nesses ideais. Queria combater os antigos privilégios e o novo engano e ele seria portador da única verdade em jogo. Por isso Rousseau ficou só. Quando chegou aos seis anos finais de sua vida, radicaliza o próprio combate dos iluministas. Disse que eram falsificadores da própria Filosofia e que a única explicação plausível é a que ele estava produzindo, para que se tivesse a antevisão do que seria uma verdadeira mudança. Reivindicava para si a condição de portador da única verdade em jogo nesse processo.

Esse é o caminho que levou Rousseau à afirmação da democracia social. É a única forma evidente e verdadeira de vencer antigos e novos privilégios. A única forma de repudiar antigos e novos aristocratismos, para que o mundo não crie novas tiranias.

Há um quê de verdade subjacente a Rousseau aqui. Houve pregação iluminista, que levou à Revolução Francesa, estabelecendo o caos, e quem retomou a ordem foi alguém que se tornaria novo tirano: Napoleão Bonaparte. Tirania agora fardada, agora militar, agora guerreira. “Eu sou o freio da Revolução Francesa” o que sobrara da revolução seria o que ele consentisse.

Napoleão queria literariamente ser como Rousseau. Até o estilo foi copiado; Napoleão lia muito as obras do filósofo. Mas, como político, no poder, foi anti-Rousseau. Tornou-se um tirano.

Olhando para as tiranias do mundo, Rousseau prega a democracia social, que é antídoto para o falso contrato social: aquele que derruba uma tirania para constituir outra; que derruba algumas aristocracias para estabelecer outras.

Falso contrato social é a nova e falsa ordem. A nova ordem recriará os arcaísmos do mundo de tirania, privilégios, aristocratismo típico do feudalismo. Rousseau diz que a propriedade sem função social, a desigualdade que a propriedade sem função social cria será resguardada pelo Estado a serviço do arbítrio e não da liberdade. Uma ordem jurídica neotirânica. A desigualdade mais crua e cruel se estabeleça no mundo e esse Estado da nova ordem iria criar novas formas de arbítrio, tirania e opressão. Esse é o falso contrato social.

Por isso que Rousseau dirá um dia: o homem nasceu bom e feliz; a sociedade o corrompeu e o colocou sob ferro em toda parte. É a sociedade do falso contrato social. A sociedade do antigo regime e do falso contrato social. A sociedade o torna miserável.

Então Rousseau propõe um remédio para tudo isso: o verdadeiramente novo contrato social. Quem é portador dele? “Eu estou só!” Disse Rousseau. Disse que os iluministas eram mercadores da verdade. “Eu quem estou preso visceralmente a duas verdades.” Criou arrepio: a verdade da Bíblia e a verdade de Cristo. “Não quero ser mais do que discípulo da Bíblia e de Cristo.” Foi antagonizado por tudo e todos, inclusive pelos enciclopedistas com os quais conviveu.

Por isso ele estabelece o que é o escudo ético do novo e verdadeiro contrato social: produzir “um mundo em que não haja ninguém tão rico que possa comprar um miserável e ninguém tão miserável que tenha que se vender a um potentado”. E vejam que Rousseau está trabalhando com dois nexos frasais reveladores: comprar e vender. Típico do liberalismo! Esse comércio não poderia existir. É o fim ético para uma verdadeira ordem social.

Drama de Rousseau é que ele sinalizava para o mundo utópico. Ele diz: é o mundo que seria viável se a burguesia fosse verdadeira. O mundo giraria exclusivamente em torno de interesses, e teria o antidoto para isso: a democracia social, o mundo da representação substituído pela participação. Como haveria participação direta da cidadania organizada? Como convocar 27 milhões de pessoas para participar das decisões jurídicas e políticas? Não serviu naquele tempo, mas mas os que defendem a ideia de Rousseau dizem que ele tem a seu favor, hoje, a revolução técnica e científica do cybermundo atual. Twitter!

E diz mais: participação. Participação porque toda vez que a sociedade perde o senso comunitário ela cria uma ordem fria. É uma profecia. O traço que se coloca é o sentimento de solidão dentro da multidão e essa epidemia de depressão mundial.