Voltemos a falar de Jean-Jacques
Rousseau. Vamos precisar
algumas coisas relativas ao que o professor disse ontem.
Das circunstâncias pessoais e
biográficas de Rousseau podemos
dizer que sua mãe morreu quando ele nasceu. É uma das razões
de seus
transtornos emocionais. Também é por isso que a Madame de Warens era
como uma mãe
para ele. O pai de Rousseau ficou em sua companhia até 10 anos de
idade. Era
irrequieto, mundano, e desapareceu igual o irmão do pensador. Cedo
alfabetizou
o filho, que, aos oito anos, já sabia todos os historiadores gregos e
romanos.
O gosto pela leitura acompanharia Rousseau para sempre.
Rousseau tinha uma doença que
eventualmente levou-o à morte,
na bexiga, que o incomodou muito e se aprofundou ao final de sua vida.
Hoje se
tem à mão, e é possível até olhar isso na Universidade de Genebra, os
dossiês
médicos que apontavam que ele era absolutamente estéril.
Sua governanta ficou 25 anos com ele.
O que há de peculiar é
que com ela ele teve 5 filhos, sendo absolutamente estéril! É um
retrato que
não deixa de ter seu quê de perverso. O que Rousseau fez com essas
crianças? Um
dia preparou a garotada para ir ao parque infantil, numa casa
estatal de
recepção de crianças abandonadas e nunca mais foi buscá-las. Isso fez
amargar
as críticas sobre ele.
Nas cartas anônimas que ele recebia,
isso era apontado: a
falta de responsabilidade moral. Certamente, porque Rousseau foi um dos
maiores
pedagogos da história da humanidade. Escreveu um livro indicando como
as
crianças devem ser amorosamente tratadas e educadas. Por isso foi
condenado à
morte na Suíça e na França. No mesmo ano ele publica o Do Contrato
Social. Começou
distribuindo na Holanda, mas, ao espalhar na Europa, foi condenado.
Isso o
levou à clandestinidade, a ser foragido, e elevou os traços nervosos de
sua psique.
De lá ele escreve as Cartas Escritas na Montanha, em que se defende de
todos os
processos.
Rousseau é alguém que estará
radicalmente envolvido com as
ideias mais febris que irão criar o espírito do iluminismo político. As
massas
teriam uma clarividência sobre a ordem que está se formando, e formou
um arco
histórico que terminará por derrubar o antigo regime. O antigo regime
era um
embate entre burguesia e os barões da terra, com feudalismo decadente e
capitalismo nascente. O feudalismo não quer sucumbir, mas acaba ficando
para
trás na velocidade da produção de riqueza. O próprio Marx era fascinado
por
capitalismo! O sistema econômico criou um desenvolvimento em questão de
décadas, que o feudalismo levou séculos para criar, enquanto o
escravismo antigo
levou milênios. Acelera-se o tempo social com o advento do capitalismo.
Comunicações, transportes, ideias, vivência mútua. A própria construção
econômica da riqueza se insere de maneira radical nesse ambiente. O
poder
germinativo do capitalismo é muito maior do que do feudalismo.
Do ponto de vista econômico, é
possível dizer que a massa de
riqueza socialmente gerada está sobretudo vinculada à própria economia.
Do
ponto de vista social o feudalismo já era página virada. Mas as forças
da terra
resistiram, e de lá surgiu a primeira teoria econômica sistematicamente
pensada: a chamada fisiocracia.
Pensamento fisiocrático remete-se à ideia de physis
= Natureza, krateia
= poder, força. François Quesnay (1694 – 1774), Ministro das Finanças
francês,
criou uma escola econômica de onde surge um pensamento sistemático:
toda riqueza
é proveniente da terra. Na sociedade escravista e feudal, a riqueza
vinha da
terra. No capitalismo não. Criou uma díade, um antagonismo entre
riqueza
natural e riqueza artificial. Quesnay impõe o argumento de que o Estado
devia
perseguir toda e qualquer forma de riqueza artificial e subsidiar toda
fonte de
riqueza natural. Significa dizer que política econômica de Estado é
política
econômica para a terra. Demonstrou com um livro chamado Tableau
Économique. É uma das altas tentativas de se criar um
fluxograma que explique como se constrói a riqueza. Explicou por que a
única
riqueza germinativa é a da terra, e defende que a riqueza urbana é
artificial e
estéril. Daí as forças do campo deveriam pressionar o Estado para criar
uma política
econômica voltada para a terra.
O feudalismo não teve como sobreviver
mais a não ser por
controle tirânico. Quem a controlava era a nobreza decadente, que
perdeu o
vínculo com a terra. Passou a ter que ocupar as instâncias jurídicas e
políticas para garantir o status quo.
Isso significava fazer concessões. Veio a nobreza togada, a nobreza da
terra,
que não queria deixar o mundo se transformar.
Por isso que encontramos um
iluminista italiano em estilo
razoavelmente francês chamado Cesare Beccaria. Passou grande parte da
vida
preso. O próprio Beccaria disse que o juiz deve fazer tudo, menos
interpretar a
lei. Interpretava sempre em desfavor da verdade e da justiça. Em vez disso, defendia que o juiz deveria aplicar a
lógica formal
de Aristóteles, ou seja, aplicar a lei mecanicamente ao caso
concreto sem
dar a mínima opinião sobre ele.
Houve um contemporâneo de Beccaria
chamado Pietro Verri que
o acusou de ter copiado duas ideias postas no livro Dos Delitos e Das
Penas. Escreveu
um clássico chamado Observações Sobre a Tortura. Demonstrou a
existência da
tortura no procedimento judicial. “O juiz aplica
uma fórmula para que a verdade transpareça.” Descrevia o
braço armado do
Estado como instrumento de tortura, pondo o acusado no cavalete,
içando-o até
30 metros; assim a verdade transpareceria. Depois de ter estado nas
alturas, ao
descer, o acusado dizia: “mas qual é mesmo a verdade que Vossa
Excelência quer
que eu diga?” E subia novamente. Mais 30 metros e, então, o sujeito era
solto. Na
ata das audiências, ficava escrito: “por não haver mais nada,
determinei que
seu cadáver fosse retirado do pátio.” Não havia garantias processuais.
O antigo regime é expressão do
patrimonialismo. A esfera
pública é privilégio, direito hereditário das forças da terra.
Patrimonialismo
significa uma herança que se difunde no mundo, chegando a Portugal e
vindo até
o Brasil. o Brasil é inserido na história perifericamente num instante
em que
se faz uma transição do feudalismo para o capitalismo, mas o signo
sobre o qual
o Brasil é construído é bem mais feudalista. “Você sabe com quem está
falando?”
“O patrimonialismo deve ser vencido
pelo liberalismo!” Isso
se pregou. Isso significa aplicar a Filosofia da Liberdade. Onde está a
liberdade? Na esfera econômica, na jurídica, na política, e no mundo
dos
valores. Que ordem é essa? Emergência do indivíduo na história, que o
mundo
moderno está propondo por meio dessa vocalização dos iluministas, e
pretende
que o eixo central da vida se resolva entre indivíduo e Estado. A ordem
jurídica deve girar em torno dessa dualidade e o Estado deve colocar
todo seu
poder jurídico e político a serviço do indivíduo, em torno dessa
legenda da
liberdade.
A liberdade econômica estava na livre
empresa. O indivíduo é
o ator que, por excelência, deve proativamente ocupar os espaços
econômicos do
Estado no exercício de empreender. Detém os capitais, a atitude
proativa do
mercado é dele, e o Estado deve ser uma força-tarefa cujo papel é a
geração de
segurança, criação de infraestrutura para seu empreendimento e
concessão de
subsídios para o ato de empreender. Laissez
faire et laissez passer. Deixe o indivíduo fazer, deixe o
indivíduo passar.
O mercado não precisa de intervenção do Estado. O Estado deve conferir
segurança ao proprietário.
Isso contrasta com uma sociedade em
que se diz que tudo é
Estado, que não há interesse individual, que o mercado não tem sua
própria
dinâmica e as empresas estatais devem fazer a construção da riqueza, e
não os
acordos individuais, não as empresas privadas.
A liberdade do mundo moderno se
restringirá à dimensão
econômica. Será problemático porque o ato de empreender implica posse
de
capitais, e capital não é visto como um bem democrático. Não havia a
figura do
pequeno empreendedor.
Liberdade jurídica: o que é isso? A
ideia de que o indivíduo
é sujeito de direitos, e que sua subjetividade precisa de tutela e
proteção
jurídica para que possa estar amparada no poder jurídico do Estado.
Direito,
nessa perspectiva liberal, nada mais é que tutela à liberdade.
Liberdade aqui é
jurídica, liberdade do indivíduo como expressão de sua subjetividade.
Sujeito
de direitos que está colocado de maneira central na esfera jurígena do
Estado.
Liberdade política: que liberdade
política é essa? Só a
ética do consentimento manifestada pelo indivíduo, através de partido e
eleição, por meio de votos, pode legitimar a ordem pública. Assim
elegem-se
lideres. A ética do consentimento representa o indivíduo. Ideia bem
diferente
da que tinha aquele rei (Luís XIV, 1638 – 1715) que dizia “L’État c’est
moi.”
Fidel Castro disse, certa feita: “o
regime foi legitimado no
dia da revolução.” Isso é absolutismo, do mais radical possível. E em
pleno
século XX. Compreende-se aqui que a legitimação é um processo diário e
permanente que a ordem precisa, e decorre da vocalização do cidadão, e
não
apenas num momento pontual, que seria o dia da revolução à qual Fidel
se
referia.
Por fim, onde está a liberdade na
esfera dos valores e
consciência? No livre exercício do chamado
direito de consciência. O indivíduo tem poderes que são dele, não do
príncipe,
de escolher, fazer, falar, cultuar, transitar, se comunicar e nenhum
poder do
Estado deve suprimi-lo. Emitir opiniões, seguir qualquer credo,
escrever e
publicar segundo sua consciência, e assim por diante. É o direito de
consciência, que ajudará a fundar o Direito moderno. Paz de Vestfália:
não é
poder do príncipe estabelecer a religião do Estado, mas direito de cada
cidadão
cultuar ou não seu transcendente de acordo com sua soberana vontade.
Liberalismo, afinal, é centralidade
do indivíduo na história
com a conferência desses poderes: liberdade, autonomia e vontade. Essa
agenda,
essa proposta, esse pensamento dos iluministas é aquele do qual
Rousseau
diverge. Rousseau é radicalmente contra o patrimonialismo, e desconfia
profundamente da verdade dos ideais da burguesia. A burguesia não tem
força
histórica para, sozinha, derrubar o estabelecimento feudal vigente.
Sozinha não
poderia. A cidadela feudal, com seu monobloco jurídico-político, tem o
vigor de
uma força, personificados na bastilha, que não permite à burguesia,
sozinha,
controlar a ordem feudal. Seria necessário, para que se derrubasse a
secular
ordem feudal, a formação de um bloco histórico que reúna todas as
forças
descontentes com o feudalismo, numa só vontade para que se pudesse,
numa
ponderação nova, estabelecer um embate com o antigo regime
sobrevivente. Nesse
bloco histórico estão camponeses, os chamados sans-culottes,
que eram radicais trabalhadores urbanos das classes
mais baixas, a pequena burguesia tradicional, as novas classes médias
urbanas,
operariado, que não consegue espaço formal no mundo do trabalho, além
da
burguesia, novos e decadentes burgueses. Todos esses se reúnem numa
força para
fazer o combate ao antigo regime.
O apelo histórico da burguesia
reflete nas três bandeiras da
Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade. Essas
bandeiras a
burguesia liberal não inventou, mas eram da franco-maçonaria. O apelo é
propiciar a liberdade, igualdade e fraternidade aproveitando a todo
esse bloco
histórico. Por que vamos todos juntos derrubar o antigo regime? Porque
virá uma
nova ordem de liberdade e igualdade. A burguesia manuseou o pano de
toureiro,
movendo todos contra o antigo regime, já que ela não conseguiria
sozinha. Por
isso Rousseau se antagoniza com os demais enciclopedistas e com os
demais
iluministas. Acreditava que o liberalismo no poder exprimiria a verdade
nesses
ideais. Queria combater os antigos privilégios e o novo engano e ele
seria portador
da única verdade em jogo. Por isso Rousseau ficou só. Quando chegou aos
seis
anos finais de sua vida, radicaliza o próprio combate dos iluministas.
Disse
que eram falsificadores da própria Filosofia e que a única explicação
plausível
é a que ele estava produzindo, para que se tivesse a antevisão do que
seria uma
verdadeira mudança. Reivindicava para si a condição de portador da única
verdade
em jogo nesse processo.
Esse é o caminho que levou Rousseau à
afirmação da
democracia social. É a única forma evidente e verdadeira de vencer
antigos e
novos privilégios. A única forma de repudiar antigos e novos
aristocratismos,
para que o mundo não crie novas tiranias.
Há um quê de verdade subjacente a
Rousseau aqui. Houve
pregação iluminista, que levou à Revolução Francesa, estabelecendo o
caos, e
quem retomou a ordem foi alguém que se tornaria novo tirano: Napoleão
Bonaparte. Tirania agora fardada, agora militar, agora guerreira. “Eu
sou o
freio da Revolução Francesa” o que sobrara da revolução seria o que ele
consentisse.
Napoleão queria literariamente ser
como Rousseau. Até o
estilo foi copiado; Napoleão lia muito as obras do filósofo. Mas, como
político,
no poder, foi anti-Rousseau. Tornou-se um tirano.
Olhando para as tiranias do mundo,
Rousseau prega a
democracia social, que é antídoto para o falso contrato social: aquele
que derruba
uma tirania para constituir outra; que derruba algumas aristocracias
para
estabelecer outras.
Falso contrato social é a nova e
falsa ordem. A nova ordem
recriará os arcaísmos do mundo de tirania, privilégios, aristocratismo
típico do
feudalismo. Rousseau diz que a propriedade sem função social, a
desigualdade
que a propriedade sem função social cria será resguardada pelo Estado a
serviço
do arbítrio e não da liberdade. Uma ordem jurídica neotirânica. A
desigualdade
mais crua e cruel se estabeleça no mundo e esse Estado da nova ordem
iria criar
novas formas de arbítrio, tirania e opressão. Esse é o falso contrato
social.
Por isso que Rousseau dirá um dia: o
homem nasceu bom e
feliz; a sociedade o corrompeu e o colocou sob ferro em toda parte. É a
sociedade do falso contrato social. A sociedade do antigo regime e do
falso
contrato social. A sociedade o torna miserável.
Então Rousseau propõe um remédio para
tudo isso: o
verdadeiramente novo contrato social. Quem é portador dele? “Eu estou
só!”
Disse Rousseau. Disse que os iluministas eram mercadores da verdade.
“Eu quem
estou preso visceralmente a duas verdades.” Criou arrepio: a verdade da
Bíblia
e a verdade de Cristo. “Não quero ser mais do que discípulo da Bíblia e
de
Cristo.” Foi antagonizado por tudo e todos, inclusive pelos
enciclopedistas com
os quais conviveu.
Por isso ele estabelece o que é o
escudo ético do novo e verdadeiro
contrato social: produzir “um mundo em
que não haja ninguém tão rico que possa comprar um miserável e ninguém
tão
miserável que tenha que se vender a um potentado”. E vejam
que Rousseau
está trabalhando com dois nexos frasais reveladores: comprar e vender.
Típico
do liberalismo! Esse comércio não poderia existir. É o fim ético para
uma
verdadeira ordem social.
Drama de Rousseau é que ele
sinalizava para o mundo utópico.
Ele diz: é o mundo que seria viável se a burguesia fosse verdadeira. O
mundo
giraria exclusivamente em torno de interesses, e teria o antidoto para
isso: a
democracia social, o mundo da representação substituído pela
participação. Como
haveria participação direta da cidadania organizada? Como convocar 27
milhões
de pessoas para participar das decisões jurídicas e políticas? Não
serviu naquele
tempo, mas mas os que defendem a ideia de Rousseau dizem que ele tem a
seu
favor, hoje, a revolução técnica e científica do cybermundo
atual. Twitter!
E diz mais: participação.
Participação porque toda vez que a
sociedade perde o senso comunitário ela cria uma ordem fria. É uma
profecia. O
traço que se coloca é o sentimento de solidão dentro da multidão e essa
epidemia de depressão mundial.