Filosofia do Direito

quinta-feira, 31 de março de 2011

Santo Agostinho

Agostinho é Romano do Norte da África que tem a notícia remota da queda de Roma e que, em face dessa queda, desacredita na viabilidade desse fato. Escreve, de maneira cética, consultando a respeito da veracidade dessa notícia, que levaria depois à desintegração da banda ocidental do Império Romano.

Santo Agostinho é colocado, do ponto de vista, intelectual, numa grave crise. Até então, ele era guiado pelas modas e circunstâncias filosóficas da época. Abraçava todas as correntes. Já fora platônico, neoplatônico, aristotélico, estoico, maniqueísta... Então ele teve uma crise de concepções e pensou: o que fazer para que se chegue a um império que seja perduradouro?

É isso o que levou Agostinho a fundar um saber novo. Esse novo saber se chama Teologia do Histórico.¹ Para estruturar esse saber e responder às suas perguntas, Santo Agostinho escreveu um livro chamado Cidade de Deus, obra que hoje é editada em cerca de 2000 páginas em língua portuguesa. É a resposta agostiniana à queda do Império Romano. Agostinho tem apoio no livro A República, de Platão. Platão foi mestre de Agostinho no tocante à ‘arquitetura’ da Cidade de Deus. Ele próprio cristianizará Platão, de tal sorte que deu continuidade a um trabalho de cristianização da Filosofia grega, o que começou com Justino, antes. Toda a trindade filosófica em Atenas desembarcaria no Cristianismo Católico.

A primeira ideia de Agostinho, na Cidade de Deus, é que existe uma ruptura na história, que é exatamente a que ele está propondo: duas cidades, um só destino: a decadência, a queda, o fim. O maior exemplo é exatamente o que ele presenciou: a queda do Império Romano, o mais orgânico e universal que a humanidade já construiu. Chegou à conclusão de que havia uma cidade espiritual e uma temporal. Esse antagonismo significa uma ordem civil e uma ordem religiosa, uma laica e uma sacra. Considera que essa dualidade é o elemento mais nocivo da história da humanidade. Isso porque, no sentir agostiniano, sempre que se tem essa cisão, essa descontinuidade entre cidade temporal e espiritual, surge uma regra que lhe parece a mais perniciosa da história da humanidade: amor do homem a si mesmo contraposto ao chamado desamor do homem a Deus. Amor do homem a si simboliza a cidade temporal, desamor do homem a Deus simboliza a cidade espiritual. Cidades puramente profanas buscando bens materiais conduzem a um antagonismo o que foi a causa da queda de todos os impérios.

Marcos históricos relevantes para Agostinho foram, entre outros: Moisés realizando a aliança com Deus; outro foi que, em certo tempo, Israel se divide em dois, quando os príncipes reivindicam o direito de organizar as cidades puramente espirituais, se desobrigando de organizar as cidades sagradas. Chama isso de dissociação do homem da esfera do sagrado. O terceiro evento se encontra na condenação de Cristo pelo poder temporal romano. Quando Agostinho reflete sobre isso, ele chega ao embate maior entre o poder temporal e o poder espiritual. Agostinho está, de fato, de maneira subjacente preparando o argumento que lhe permita legitimar o Estado fundamentalista. Santo Agostinho foi o maior defensor da ideia de Estado fundamentalista na história da humanidade. Hoje, quando ouvimos o termo, pensamos logo em regimes de repressão teocrática. É uma forma de o Ocidente imputar um viés passadista às sociedades teístas, especialmente a islâmica contemporânea. São os países desvinculados do Ocidente. São Estados dogmáticos, fundados em verdades indiscutíveis, em pressupostos incontestáveis. E o Estado fundamentalista islâmico contemporâneo está assentado em um livro e em um homem: Alcorão e Maomé. Não precisa de ordem jurídica a não ser o próprio Alcorão.

O que Agostinho queria era exatamente a organização de um Estado fundamentalista para superar a dualidade entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens. O representante seria o Papa, representante de Deus na Terra. Santo Agostinho, portanto, pregando isso, sustentou que essa dualidade histórica deveria ser superada. O mundo deveria ser constituído de somente uma cidade para que se tivesse a possibilidade da superação do ciclo de nascimento, ascensão, hegemonia, decadência e morte. A ordem seria retilínea e intemporal. Essa unidade que seria criada levaria à transfiguração do mundo, conduzindo-se à renúncia do homem a si mesmo e levando ao amor do homem a Deus. Renúncia do homem a si mesmo, superação, toda pretensão humana de colocar caminhos temporais e construir sua própria história. A regra maior da Filosofia Agostiniana, e da Teologia, é uma brevíssima legenda: entregar a Deus. Deus é o grande depositário da história e do destino dela. E eis que este “entregue a Deus” agostiniano é a renúncia do homem a si mesmo, para que possa existir essa condução da vida de cada um pela esfera do Sagrado, levando à afirmação do amor do homem a Deus.

Na essência, isso é o que já colocamos: amor do homem a Deus é regra metafísica do Cristianismo, e amor do homem ao homem é a regra ética. Se se entrega a Deus, cumprindo a regra metafísica, a segunda estará automaticamente cumprida. Isso é o início de uma nova vida.

Agostinho está pensando em um Estado fundamentalista universal, que é religioso, personificado pela Igreja. Não nos esqueçamos de que nessa época temos críticas ao advogado, ao Direito Romano, ao Estado Romano, e de restrição aos ideais da liberdade e da justiça. Está-se em face do mundo novo, e a principal questão com a qual Agostinho lidará é que o maior trabalho do homem em sua vida terrena é garantir sua salvação. É uma subjetivação da história a algo mais relevante e poderoso que o próprio Estado. É a tarefa maior do homem na vida. Se isso é verdade, há de se construir algo novo, o que leva a que se construa um novo Estado, com a Teologia regrando a vida social, com o Papa e os Padres com a tarefa de resolver conflitos. Esse é o mundo novo.

Agostinho é um dos entusiastas, mentores desse mundo novo. A fórmula oficial usada é a forma teológica. A forma oficial de leitura do mundo é a forma jurídica, mas, no mundo agostiniano, a forma oficial de leitura do mundo será a forma teológica. A fé do mundo novo seria assentada em três bases:

É em função desse projeto que Agostinho coloca à mesa esse manancial de ideias construtivas de uma arquitetura político-jurídica para o mundo. Isso significa o advento de um Estado fundamentalista universal, personificado pelo magistério da Igreja sobre a história. O ciclo do papado irá significar isso: magistério temporal e espiritual. O poder civil será de natureza eclesiástica. Agostinho queria um Estado universal, Cristão Católico, dirigido por um monarca, que seria o Papa. É o que as Cruzadas iriam buscar séculos depois.

Esse Estado fundamentalista universal terá que tipo de poder? Poder monárquico. Será uma monarquia. Por quê? É a velha regra de Hermes, que desembarca na Filosofia grega, e, por consequência, no pensamento agostiniano. Regra fundamental era a da unidade cósmica entre o que está embaixo e o que está em cima, por isso monarquia. A vida humana tem que ser regrada por uma regra divina. O monarca temporal tem que ser único. Essa seria a forma de escolher o líder.

Direito do Estado universal: Direito Jusdivino, disciplinado pela Teologia. Esse jusdivino é como se pronuncia o Direito Canônico, que vem de canon, palavra que significa “regra”. Esse Direito Canônico regerá o mundo. É um Direito que nasceu primeiro para disciplinar as ordens religiosas reveladas e o mundo em geral, além de declarar as demais religiões heréticas por não se renderem ao poder central. É a tradição da lavagem de sangue, que conduziu à crepitante fogueira. Muitos pegaram fogo.

É o Direito para suceder o Direito Romano, que teve aplicação desautorizada. Deve ser um Direito capaz de disciplinar o mundo, regrando a vida em sociedade. Este “disciplinar em geral” significa disciplinar as relações territoriais também. Várias questões territoriais ficaram sem disciplina jurídica. A Igreja permitiu, então, que se aplicasse o Direito Germânico às terras, Direito que era eminentemente estatutário. E, fora das relações territoriais, para todas as outras que os homens podem estabelecer entre si, a Igreja teria que resolver a questão, então o Direito Canônico aparece para substituir o Direito Romano.

 

Fontes do Direito Canônico

Ninguém se forma em Direito na Europa sem estudar Direito Canônico. São elas:

  1. Deus;
  2. Papa;
  3. Concílio;
  4. Costume;
  5. Direito Romano.

Por que Direito Romano como a última das fontes, se era o mais desenvolvido do mundo? Foi um ato político da Igreja. Deus está revelado nos Livros Sagrados. Escrevê-los é um ato de exercício do poder, já que trata de controle eclesiástico da vida. A Bíblia, mesmo, sofreu algumas alterações depois de vários séculos. Retiraram-se os chamados Livros Apócrifos, que constituem, de acordo com a corrente que defendia a separação, outra Bíblia. Dentre eles há livros inspiradíssimos, mas que conduziriam, de acordo com o que sustentam, ao que seria outra concepção do que seria Cristo.

Segunda fonte do Direito Canônico é o homem. Papa é fonte do Direito Canônico porque no mundo agostiniano e plenamente medieval, o Papa tinha poder jurídico sobre o mundo, especialmente no que nasceria depois de Agostinho, com o surgimento dos reinos cristãos. Reino da Igreja, do Papado, tendo como figura maior o Papa. As Bulas Papais, que têm valor moral sobre o mundo, tinham valor jurídico. Eram chamadas de Decretais; tinham força cogente.

Concílios são a terceira fonte do Direito Canônico. São reuniões de príncipes da Igreja, Bispos e Cardeais. Há o Rei, que se reúne com os Bispos e Cardeais. Baixam os decretos, que elaboram os Decretais do papa. É como se fosse a legislação ordinária, a regulamentação dos decretais.

Costumes também são fonte de Direito Canônico. Ele recepciona todo e qualquer costume romano e germânico? Não, pois há alguns vinculados ao humanismo. Não poderiam ser quaisquer costumes. O costume deve ser um compatível com a razão canônica, com os princípios, com os ordenamentos, as ordenanças teológicas. Havia costumes romanos e germânicos que colidiam com a razão canônica. Um exemplo de costume ancestral germânico é o direito do barão da terra à primeira noite. Quando servos sob a tutela de um barão de terra se casavam, a primeira noite com a mulher era reservada ao barão. A Igreja, evidentemente, não recepcionou esse costume.

Por último, o Direito Romano. Por que razão? Porque o mais desenvolvido dos Direitos não convém que circule no mundo. A Igreja só recorre a eles por exceção. É a última das formas porque buscou-se apagar da memória o Direito Romano e o Estado Romano.

 

Justiça em Santo Agostinho

A justiça para Santo Agostinho só pode ser a justiça divina. E o que é? Agostinho está, primeiro, realizando de maneira subjetiva uma crítica, do ponto de vista humano. As justiças humanas são todas falíveis, e esse é o motivo pelo qual Aristóteles pensou na equidade. Há juízes que vendem sentenças, há cortes que cometem injustiças agudas... Então o que se quer é um patamar novo, uma reivindicação nova.

O problema da justiça divina é: quem a pronuncia? No Irã são os aiatolás. Então acredita Agostinho que o pronunciamento eclesiástico será unificador, e menos suscetível das contingências humanas, portanto mais isento, purificado e verdadeiro em relação às contingências humanas. Mesmo porque essa justiça divina seria principiologia inspirada nos mandamentos sagrados. Buscou por em prática a Regra do Amor: amar a Deus sobre todas as coisas, amar ao próximo como a ti mesmo, tudo sob o signo da solidariedade, para que o mundo seja fraterno, e se caminhe para a Família Universal. Criar um mundo amoroso.

Santo Agostinho também escreveu sobre um outro conceito: a Paz Perfeita. Ele não se contenta com a paz. Sinaliza, então, uma paz perfeita, já que o filósofo trabalha com a lógica formal, com a dedução socrática, platônica e aristotélica. O mundo produto da justiça é um mundo de concórdia, que levará a uma obediência tão natural como respirar, pois não haverá razão para dissídio maior. Um mundo em que se viverá de acordo com os mais elevados sentimentos e não haverá motivos ou circunstâncias para embates, disputas, controvérsias, egoísmos e reivindicações entre os homens, pois ampliará as convergências entre eles.

É o processo crescente de Santificação do próprio homem.

Amanhã: São Tomás de Aquino.


1 – Fiquei na dúvida se o certo era “Teologia do Histórico” ou “Teologia do Estoico”. A diferença no áudio é imperceptível. Nenhum dos dois termos aparecem, entre aspas (para conferir a precisão), no Google.