Agostinho
é Romano do Norte da
África que tem a notícia remota da queda de Roma e que, em face dessa
queda,
desacredita na viabilidade desse fato. Escreve, de maneira cética,
consultando
a respeito da veracidade dessa notícia, que levaria depois à
desintegração da
banda ocidental do Império Romano.
Santo
Agostinho é colocado, do
ponto de vista, intelectual, numa grave crise. Até então, ele era
guiado pelas
modas e circunstâncias filosóficas da época. Abraçava todas as
correntes. Já
fora platônico, neoplatônico, aristotélico, estoico, maniqueísta...
Então ele
teve uma crise de concepções e pensou: o que fazer para que se chegue a
um
império que seja perduradouro?
É
isso o que levou Agostinho a
fundar um saber novo. Esse novo saber se chama Teologia do Histórico.¹
Para
estruturar esse saber e responder às suas perguntas, Santo Agostinho
escreveu um
livro chamado Cidade de Deus, obra que hoje é editada em cerca de 2000
páginas
em língua portuguesa. É a resposta agostiniana à queda do Império
Romano. Agostinho
tem apoio no livro A República, de Platão. Platão foi mestre de
Agostinho no
tocante à ‘arquitetura’ da Cidade de Deus. Ele próprio cristianizará
Platão, de
tal sorte que deu continuidade a um trabalho de cristianização da
Filosofia
grega, o que começou com Justino, antes. Toda a trindade filosófica em
Atenas
desembarcaria no Cristianismo Católico.
A
primeira ideia de Agostinho, na
Cidade de Deus, é que existe uma ruptura na história, que é exatamente
a que
ele está propondo: duas cidades, um só destino: a decadência, a queda,
o fim. O
maior exemplo é exatamente o que ele presenciou: a queda do Império
Romano, o
mais orgânico e universal que a humanidade já construiu. Chegou à
conclusão de
que havia uma cidade espiritual e uma temporal. Esse antagonismo
significa uma
ordem civil e uma ordem religiosa, uma laica e uma sacra. Considera que
essa
dualidade é o elemento mais nocivo da história da humanidade. Isso
porque, no
sentir agostiniano, sempre que se tem essa cisão, essa descontinuidade
entre
cidade temporal e espiritual, surge uma regra que lhe parece a mais
perniciosa
da história da humanidade: amor do homem a si mesmo contraposto ao
chamado
desamor do homem a Deus. Amor do homem a si simboliza a cidade
temporal,
desamor do homem a Deus simboliza a cidade espiritual. Cidades
puramente
profanas buscando bens materiais conduzem a um antagonismo o que foi a
causa da
queda de todos os impérios.
Marcos
históricos relevantes para
Agostinho foram, entre outros: Moisés realizando a aliança com Deus;
outro foi
que, em certo tempo, Israel se divide em dois, quando os príncipes
reivindicam
o direito de organizar as cidades puramente espirituais, se
desobrigando de
organizar as cidades sagradas. Chama isso de dissociação do homem da
esfera do
sagrado. O terceiro evento se encontra na condenação de Cristo pelo
poder
temporal romano. Quando Agostinho reflete sobre isso, ele chega ao
embate maior
entre o poder temporal e o poder espiritual. Agostinho está, de fato,
de
maneira subjacente preparando o argumento que lhe permita legitimar o
Estado
fundamentalista. Santo Agostinho foi o maior defensor da ideia de
Estado
fundamentalista na história da humanidade. Hoje, quando ouvimos o
termo,
pensamos logo em regimes de repressão teocrática. É uma forma de o
Ocidente
imputar um viés passadista às sociedades teístas, especialmente a
islâmica
contemporânea. São os países desvinculados do Ocidente. São Estados
dogmáticos,
fundados em verdades indiscutíveis, em pressupostos incontestáveis. E o
Estado
fundamentalista islâmico contemporâneo está assentado em um livro e em
um
homem: Alcorão e Maomé. Não precisa de ordem jurídica a não ser o
próprio
Alcorão.
O
que Agostinho queria era
exatamente a organização de um Estado fundamentalista para superar a
dualidade
entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens. O representante seria o Papa,
representante de Deus na Terra. Santo Agostinho, portanto, pregando
isso,
sustentou que essa dualidade histórica deveria ser superada. O mundo
deveria
ser constituído de somente uma cidade para que se tivesse a
possibilidade da
superação do ciclo de nascimento, ascensão, hegemonia, decadência e
morte. A
ordem seria retilínea e intemporal. Essa unidade que seria criada
levaria à
transfiguração do mundo, conduzindo-se à renúncia do homem a si mesmo e
levando
ao amor do homem a Deus. Renúncia do homem a si mesmo, superação, toda
pretensão humana de colocar caminhos temporais e construir sua própria
história. A regra maior da Filosofia Agostiniana, e da Teologia, é uma
brevíssima legenda: entregar a Deus. Deus é o grande depositário da
história e
do destino dela. E eis que este “entregue a Deus” agostiniano é a
renúncia do
homem a si mesmo, para que possa existir essa condução da vida de cada
um pela
esfera do Sagrado, levando à afirmação do amor do homem a Deus.
Na
essência, isso é o que já
colocamos: amor do homem a Deus é regra metafísica do Cristianismo, e
amor do
homem ao homem é a regra ética. Se se entrega a Deus, cumprindo a regra
metafísica, a segunda estará automaticamente cumprida. Isso é o início
de uma
nova vida.
Agostinho
está pensando em um
Estado fundamentalista universal, que é religioso, personificado pela
Igreja.
Não nos esqueçamos de que nessa época temos críticas ao advogado, ao
Direito
Romano, ao Estado Romano, e de restrição aos ideais da liberdade e da
justiça. Está-se
em face do mundo novo, e a principal questão com a qual Agostinho
lidará é que
o maior trabalho do homem em sua vida terrena é garantir sua salvação.
É uma
subjetivação da história a algo mais relevante e poderoso que o próprio
Estado.
É a tarefa maior do homem na vida. Se isso é verdade, há de se
construir algo
novo, o que leva a que se construa um novo Estado, com a Teologia
regrando a
vida social, com o Papa e os Padres com a tarefa de resolver conflitos.
Esse é
o mundo novo.
Agostinho
é um dos entusiastas,
mentores desse mundo novo. A fórmula oficial usada é a forma teológica.
A forma
oficial de leitura do mundo é a forma jurídica, mas, no mundo
agostiniano, a
forma oficial de leitura do mundo será a forma teológica. A fé do mundo
novo
seria assentada em três bases:
É
em função desse projeto que
Agostinho coloca à mesa esse manancial de ideias construtivas de uma
arquitetura
político-jurídica para o mundo. Isso significa o advento de um Estado
fundamentalista universal, personificado pelo magistério da Igreja
sobre a
história. O ciclo do papado irá significar isso: magistério temporal e
espiritual. O poder civil será de natureza eclesiástica. Agostinho
queria um
Estado universal, Cristão Católico, dirigido por um monarca, que seria
o Papa.
É o que as Cruzadas iriam buscar séculos depois.
Esse
Estado fundamentalista
universal terá que tipo de poder? Poder monárquico. Será uma monarquia.
Por
quê? É a velha regra de Hermes, que desembarca na Filosofia grega, e,
por
consequência, no pensamento agostiniano. Regra fundamental era a da
unidade
cósmica entre o que está embaixo e o que está em cima, por isso
monarquia. A
vida humana tem que ser regrada por uma regra divina. O monarca
temporal tem
que ser único. Essa seria a forma de escolher o líder.
Direito
do Estado universal: Direito
Jusdivino, disciplinado pela
Teologia. Esse jusdivino é como se pronuncia o Direito Canônico, que
vem de canon, palavra que significa
“regra”.
Esse Direito Canônico regerá o mundo. É um Direito que nasceu primeiro
para
disciplinar as ordens religiosas reveladas e o mundo em geral, além de
declarar
as demais religiões heréticas por não se renderem ao poder central. É a
tradição da lavagem de sangue, que conduziu à crepitante fogueira.
Muitos
pegaram fogo.
É
o Direito para suceder o
Direito Romano, que teve aplicação desautorizada. Deve ser um Direito
capaz de disciplinar
o mundo, regrando a vida em sociedade. Este “disciplinar em geral”
significa
disciplinar as relações territoriais também. Várias questões
territoriais ficaram
sem disciplina jurídica. A Igreja permitiu, então, que se aplicasse o
Direito Germânico
às terras, Direito que era eminentemente estatutário. E, fora das
relações
territoriais, para todas as outras que os homens podem estabelecer
entre si, a
Igreja teria que resolver a questão, então o Direito Canônico aparece
para
substituir o Direito Romano.
Fontes do Direito Canônico
Ninguém
se forma em Direito na
Europa sem estudar Direito Canônico. São elas:
Por
que Direito Romano como a última
das fontes, se era o mais desenvolvido do mundo? Foi um ato político da
Igreja.
Deus está revelado nos Livros Sagrados. Escrevê-los é um ato de
exercício do
poder, já que trata de controle eclesiástico da vida. A Bíblia, mesmo,
sofreu
algumas alterações depois de vários séculos. Retiraram-se os chamados
Livros Apócrifos,
que constituem, de acordo com a corrente que defendia a separação,
outra Bíblia.
Dentre eles há livros inspiradíssimos, mas que conduziriam, de acordo
com o que
sustentam, ao que seria outra concepção do que seria Cristo.
Segunda
fonte do Direito Canônico
é o homem. Papa é fonte do Direito Canônico porque no mundo agostiniano
e
plenamente medieval, o Papa tinha poder jurídico sobre o mundo,
especialmente
no que nasceria depois de Agostinho, com o surgimento dos reinos
cristãos.
Reino da Igreja, do Papado, tendo como figura maior o Papa. As Bulas
Papais,
que têm valor moral sobre o mundo, tinham valor jurídico. Eram chamadas
de Decretais;
tinham força cogente.
Concílios
são a terceira fonte do
Direito Canônico. São reuniões de príncipes da Igreja, Bispos e
Cardeais. Há o Rei,
que se reúne com os Bispos e Cardeais. Baixam os decretos, que elaboram
os Decretais
do papa. É como se fosse a legislação ordinária, a regulamentação dos
decretais.
Costumes
também são fonte de
Direito Canônico. Ele recepciona todo e qualquer costume romano e
germânico?
Não, pois há alguns vinculados ao humanismo. Não poderiam ser quaisquer
costumes. O costume deve ser um compatível com a razão canônica, com os
princípios, com os ordenamentos, as ordenanças teológicas. Havia
costumes
romanos e germânicos que colidiam com a razão canônica. Um exemplo de
costume
ancestral germânico é o direito do barão da terra à primeira noite.
Quando
servos sob a tutela de um barão de terra se casavam, a primeira noite
com a
mulher era reservada ao barão. A Igreja, evidentemente, não recepcionou
esse
costume.
Por
último, o Direito Romano. Por
que razão? Porque o mais desenvolvido dos Direitos não convém que
circule no
mundo. A Igreja só recorre a eles por exceção. É a última das formas
porque
buscou-se apagar da memória o Direito Romano e o Estado Romano.
Justiça em Santo Agostinho
A
justiça para Santo Agostinho só
pode ser a justiça divina. E o que é? Agostinho está, primeiro,
realizando de
maneira subjetiva uma crítica, do ponto de vista humano. As justiças
humanas
são todas falíveis, e esse é o motivo pelo qual Aristóteles pensou na
equidade.
Há juízes que vendem sentenças, há cortes que cometem injustiças
agudas... Então
o que se quer é um patamar novo, uma reivindicação nova.
O
problema da justiça divina é:
quem a pronuncia? No Irã são os aiatolás. Então acredita Agostinho que
o
pronunciamento eclesiástico será unificador, e menos suscetível das
contingências humanas, portanto mais isento, purificado e verdadeiro em
relação
às contingências humanas. Mesmo porque essa justiça divina seria
principiologia
inspirada nos mandamentos sagrados. Buscou por em prática a Regra do
Amor: amar
a Deus sobre todas as coisas, amar ao próximo como a ti mesmo, tudo sob
o signo
da solidariedade, para que o mundo seja fraterno, e se caminhe para a
Família
Universal. Criar um mundo amoroso.
Santo
Agostinho também escreveu
sobre um outro conceito: a Paz Perfeita. Ele não se contenta com a paz.
Sinaliza, então, uma paz perfeita, já que o filósofo trabalha com a
lógica
formal, com a dedução socrática, platônica e aristotélica. O mundo
produto da
justiça é um mundo de concórdia, que levará a uma obediência tão
natural como
respirar, pois não haverá razão para dissídio maior. Um mundo em que se
viverá
de acordo com os mais elevados sentimentos e não haverá motivos ou
circunstâncias para embates, disputas, controvérsias, egoísmos e
reivindicações
entre os homens, pois ampliará as convergências entre eles.
É
o
processo crescente de Santificação
do
próprio homem.
Amanhã: São Tomás de Aquino.