Direito Processual Civil

quarta-feira, 16 de março de 2011

Requisitos de admissibilidade dos recursos - continuação

 


Hoje vamos continuar os requisitos de admissibilidade. Até hoje, sabemos que o recurso, para ter sua pretensão analisada, tem que ser adequado, daí preenchendo o requisito do cabimento. Superada essa etapa, o recurso tem que interposto por quem tenhapoder de recorrer.Quem tem poder de recorrer são as partes, o Ministério Público e o terceiro prejudicado. Partes são os que figuram no polo ativo ou passivo da relação jurídica processual. MP pode recorrer como parte ou fiscal da lei, e o terceiro prejudicado é aquele cuja intervenção tem ligação com a relação jurídica submetida à prestação jurisdicional; em outras palavras, é o terceiro com interesse jurídico na demanda. Endossatário, condômino, litisconsorte, opoente, sublocatário, fiador, avalista... Poderiam estar nos autos mas não estão.Os que se sentirem prejudicados por conta de fatos processuais e não se encaixarem na descrição de nenhum dos três poderão, se quiserem, ajuizar uma ação autônoma de impugnação, solução jurídica para o perito que é condenado ao pagamento de multa por desídia.

Faltou, entretanto, vermos um detalhe na aula passada.

O advogado atua em nome da parte. Pode ele, em alguma hipótese, recorrer em nome próprio? Esqueçam, por ora, a litigância em causa própria.A parte não quer recorrer. Seu advogado, mesmo assim, resolve recorrer. Pode fazer isso? Só em uma hipótese: quando se tratar de honorários de sucumbência. Pelo estatuto da OAB, os honorários de sucumbência pertencem ao advogado. São os honorários devidos em razão do julgamento do processo, fixados pelo juiz. Não são os honorários contratuais. O advogado pode abrir mão de seu direito aos honorários, mas não é a regra. O advogado tem o direito de executar, em nome próprio, naquele processo em que não atua como parte, mas irá, naqueles mesmos autos, executar os honorários como credor. Consequentemente, ele tem o poder de recorrer em relação aos honorários.

Exemplo: o advogado representa seu cliente numa ação de cobrança, pedindo R$ 10 mil que entende ter direito a receber do réu devedor. O pedido é parcialmente deferido; o juiz entende que ao autor são devidos R$ 8 mil ao invés dos 10.A parte está satisfeita e não tem intenção de recorrer em relação aos R$ 2 mil que deixou de receber. Na sentença, o juiz fixa os honorários em R$ 300,00. O advogado, naturalmente insatisfeito, poderá recorrer do valor ínfimo arbitrado. Significa que o advogado tem poder de recorrer em relação aos honorários de sucumbência. Lei 8906/94, o Estatuto da OAB:

Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

Quem tem legitimidade para interpor recurso, em outras palavras, quem tem poder de recorrer? Partes, MP, terceiro prejudicado e advogado, este último quando se tratar de honorários advocatícios.

Vamos agora à matéria de hoje, continuando os requisitos de admissibilidade.
 

Interesse

Requisitos de admissibilidade são exigências legais. Que exigência legal é essa chamada interesse? Exigência legal de que o recurso seja útil e necessário. Está vinculado à utilidade e necessidade do recurso. Como assim? Vamos ver agora.

Normalmente, quem recorre é quem sofreu prejuízo, e está querendo uma melhora. Quem ganhou tudo o que pediu, em tese, não tem interesse de recorrer porque não lhe teria utilidade ou necessidade. Útil, portanto, é um recurso que pode acarretar em vantagem para quem recorre, do ponto de vista prático mesmo.E o que é um recurso necessário? O recurso que representa a única forma de obter a vantagem.

Voltando ao exemplo anterior, em que pedi R$ 10 mil mas só ganhei 8. A parte contrária, por algum motivo, resolve completar os R$ 2 mil em favor da ex adversa. Isso faz cessar o interesse pelo recurso, pois o objeto já terá sido conquistado, tornando-o inútil.

Regra geral: quem tem interesse para recorrer é o vencido. Para ele, o recurso é útil e necessário. Quem tudo ganhou em tese não tem interesse, e não tem porquê de recorrer. 

Vamos elaborar mais. O vencedor total, aquele que teve sua pretensão integralmente atendida, como pedir os R$ 10 mil e ganhar os 10. Ganhar só 80% disso significa perda parcial, processualmente falando. Mas atenham-se ao vencedor total. Receber juros só a partir da citação e não do fato faria nascer o interesse recursal, afinal algum período de juros deixou de ser contado em favor do autor credor. Mas, se recebesse seus juros desde o fato, o recurso objetivando o recebimento de juros desde o fato e não da citação em tese não seria necessário ao autor.

Mas existem casos em que sim, o vencedor total pode sim interpor um recurso. Embargos de declaração, por exemplo, podem ser interpostos sem que a parte tenha perdido nada. Existem outros recursos, mais objetivos, que vamos entender. Suponham um caso em que o processo é extinto sem julgamento de mérito. O réu ganhou. Mas, para ele, é melhor uma extinção sem mérito (nos termos do art. 267 do CPC) ou uma improcedência do pedido, que é meritória, alusiva às hipóteses do art. 269? Com mérito, para criar coisa julgada material em seu favor! Do contrário poderia ensejar uma nova demanda já que a coisa julgada seria apenas formal. Então o réu poderá sim, se quiser, recorrer para que tenha uma extinção com mérito. Recurso é válido para se obter uma vantagem ainda maior. Mesmo que a parte seja totalmente vencedora.

Outro exemplo é o do sujeito que propõe execução, mas prescreveu o prazo para executar o título de que dispunha. A via da ação executiva não seria mais cabível para ter sua pretensão de receber atendida. Mas não esgotariam as opções do exequente, que poderia tentar uma ação de locupletamento, ação monitória ou mesmo a ação ordinária de cobrança, que tem prazo prescricional bem mais longo. Mas o que é melhor para o réu? Acabar com a discussão aqui mesmo, recorrendo para provar não a caducidade do direito de executar, mas o mérito, já que é sua oportunidade para arguir a improcedência do pedido do autor.

E o MP? Quando for parte, recorre se for vencido. E como fiscal da lei? Onde está o interesse do Ministério Público enquanto fiscal? O MP não defende o interesse das partes, mas sim o Direito objetivo. A sucumbência do MP está vinculada à não observância da lei.

Cabimento, legitimidade e interesse: já temos três requisitos. Vamos para o próximo.
 

Inexistência de fato impeditivo ou extintivo

É um requisito de admissibilidade negativo. Interesse é positivo. A inexistência de fato impeditivo ou extintivo é a exigência legal de que não haja nenhum fato que impeça a admissibilidade do recurso ou que extinga o direito de recorrer. Não pode haver alguns fatos. Que fatos são esses? São atitudes tomadas pelas partes no processo que ensejam o não conhecimento do recurso. Vejamos alguns exemplos.

Desistência da ação. A parte interpõe o recurso e desiste da ação em seguida. São atos logicamente contrários. É uma atitude tomada pela parte, o que faz que esse recurso não seja conhecido. Reconhecimento do pedido e acordo são outras dessas atitudes. As partes acordaram, e não tem mais razão de ser o recurso. Não se julga somente pela tese; o que importa é a solução do conflito.

Mas existem fatos vinculados ao recurso. Desistência recursal, aceitação da decisão... O que vale? A aceitação da decisão ou o recurso? A aceitação. Não pode haver dúvida quanto à vontade daquele que recorre;recorrer deve ser um ato inequívoco.

Desistência recursal: interponho um recurso e depois abro mão dele. O conceito de “abrir mão de um recurso interposto” está mais vinculado à desistência ou renúncia? Desistência. Vamos entender. A desistência, como no art. 501, é abrir mão de um recurso já interposto:

Art. 501.  O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso.

A desistência leva ao não conhecimento do recurso já interposto. Pressupõe, portanto, recurso interposto. Bastante lógico.

E a renúncia recursal? É abrir mão do direito de recorrer, mas não de recurso já interposto. Proferida a decisão, já me manifesto nos autos, peticionando, dizendo, simplificadamente: “excelência, renuncio ao meu direito de recorrer.”. Na prática não se faz isso, exceto em processos de família, em que as partes gostam de livrar-se logo.

Na desistência, precisa-se da anuência da outra parte? Não, é ato unilateral. Esta é uma diferença entre a desistência recursal e a desistência da ação. Nesta, se intentada depois da citação, o réu terá que ser consultado.

E o momento? Até que momento pode-se desistir do recurso? O juízo a quo já admitiu. Tem problema? Não, a parte pode desistir a qualquer momento desde que antes do início do julgamento. Significa que ela pode desistir na sustentação oral, pois ainda não há pronunciamento dos magistrados. Entretanto, se houver voto de dois desembargadores e o terceiro pedir vista, a desistência já não pode ter lugar pois o pronunciamento judicial já começou.E, claro, o advogado precisa de poderes especiais para desistir (não poderá estar munido somente da procuração geral para o foro).

A desistência pode ser parcial, também. E também praticada de forma expressa ou tácita. Como se faz de forma expressa? Sustentação oral ou petição. A desistência tácita se faz pela prática de um ato contrário ao ato de recorrer. Recursos retidos: a parte deverá, posteriormente, fazer uma ratificação do recurso interposto no passado. A não ratificação/reiteração importa desistência tácita.

Proferida a decisão, no quinto dia do prazo (assumindo que estamos falando de um recurso cujo prazo para interposição seja de 15 dias), eu, advogado, apresento meu recurso. Depois reflito e converso com colegas e chego à conclusão de que não está muito bom. Desisto do recurso. No décimo terceiro dia daquele prazo, apresento novo recurso, acreditando está-lo fazendo tempestivamente e deste não desisto. Mas, no momento em que pratico o ato, já exerci o direito de recorrer, e ocorre preclusão consumativa, a perda do direito de praticar o ato pelo exercício. O fim do prazo foi antecipado, então recurso interposto depois é intempestivo, ainda que dentro de 15 dias. O ato tem que estar perfeito e acabado no momento de recorrer. O preparo tem que ser feito no ato da interposição, e não em dia posterior, ainda que dentro do prazo legal.

Quem desiste não pode recorrer novamente. Essa já foi uma questão de prova.
 

Renúncia

Também é ato unilateral, requer poderes especiais e não admite retratação.

Renúncia expressa é a manifestação nos autos de que a parte abre mão do direito de recorrer. Tácita: deixar fluir o prazo, até chegar ao trânsito em julgado. Não confundam, pois. Desistir é abrir mão de um recurso já interposto, enquanto renunciar é abrir mão do direito de recorrer.

Pode-se renunciar em parte, desde que a parte seja bem específica, ou totalmente.

Por último: pode-se renunciar previamente da decisão? É comum nos processos de separação consensual. Teórica e doutrinariamente, issonão existe. Não se pode renunciar a um direito que ainda não existe. Na prática é claro que existe. Até cartórios já cutucam advogados e partes por não terem manifestado a renúncia prévia ao direito de recorrer.¹
 

Aceitação

É a prática de um ato incompatível com o recurso. Não se pode recorrerlogo após aceitar uma decisão. É a prática de ato incompatível com o exercício do direito de recorrer. A parte pode,se quiser, ao invés de pagar, depositar judicialmente o que lhe é cobrado para não caracterizar o ato incompatível com o direito de recorrer. A prática de ato que signifique aceitação enseja preclusão lógica.
 

Multa processual

O que é isso? A lei, nalguns casos, impõe a quem recorre com má-fé uma multa por isso. É o caso do recurso com intuito protelatório. Pode o julgador desse recurso, considerando a má-fé, impor multa? Sim, com multa de até 1% do valor da causa conforme o art. 17 do Código de Processo Civil, além da indenização não superior a 20% do valor da causa. Essa disposição da parte geral do Código também é aplicada na parte dos recursos. Para se recorrer novamente, a multa deverá ser depositada. Entenderemos depois quais os casos. O não depósito por aquele que foi considerado litigante de má-fé é fato que impede a admissibilidade do recurso. Não confundir multa processual com custas processuais! Não pagamento de custas está vinculado ao preparo.

Os recursos que impõem multa específica são: embargos de declaração, no art. 538, parágrafo único do Código de Processo Civil,

Art. 538. Os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos, por qualquer das partes.

Parágrafo único.  Quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou o tribunal, declarando que o são, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente de 1% sobre o valor da causa. Na reiteração de embargos protelatórios, a multa é elevada a até 10% , ficando condicionada a interposição de qualquer outro recurso ao depósito do valor respectivo.

Outro exemplo, para terminarmos, é o agravo regimental.

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.  

[...]

§ 2º Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor.

O art. 557 contém mais um caso em que a lei prevê a possibilidade da imposição de multa seguida da exigência do depósito da multa para que se recorra novamente.


  1. A partir desse momento da aula o professor contou uma história sobre empréstimos bancários para financiamento de veículos à época da desvalorização do Real frente ao Dólar, a pretensão dos bancos em receber em dólar para fiel cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda), contrapostos aos consumidores que alegaram a teoria da imprevisão e o princípio rebus sic stantibus. A causa subiu ao STJ e aqui o professor aproveitou para nos descrever o caráter estratégico do manejo do Direito, tratá-lo como um jogo, manter pessoas monitorando a todo tempo as causas no Tribunal que versassem sobre esse assunto, anotar as decisões favoráveis, observar a turma e o gabinete para o qual a ação foi distribuída, comparar com o posicionamento conhecido daquela turma ou ministro, desistir do recurso se distribuído para um ministro com tendência mais consumerista, e assim por diante.