Direito Processual Civil

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Teoria geral dos recursos



Vamos introduzir a matéria hoje. Vamos falar sobre o conceito de recurso, recursos e ação autônoma de impugnação, fundamento dos recursos, a razão de ser deles, por que a doutrina sustenta a existência dos recursos, a ideia de duplo grau de jurisdição, como é a estrutura do Poder Judiciário hoje, e a natureza jurídica dos recursos. Na aula que vem vamos para decisão judicial e melhor visualizar a matéria.
 

Conceito de recurso

A ideia agora é visualizar é o que significa esse ato, esse instrumento processual chamado recurso. Para que ele serve? Qual a ideia dele em nosso ordenamento jurídico? É diferente de outros países. No Brasil, portanto, o que é esse ato chamado recurso?

Do ponto de vista processual, temos o conceito amplo e o restrito de recurso.

Temos na própria Constituição, no inciso LV do art. 5º:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Que recursos são esses, garantidos pela Constituição? Isso está no conceito amplo. “O sujeito tem o direito”. Qual o recurso que ele tem para exercer esse direito? Qual a forma que ele tem para se defender? Esse conceito, do ponto de vista amplo, é um instrumento jurídico processual. O recurso é um instrumento jurídico processual. E para que serve? Para a defesa de um direito que a parte entende possuir. Como assim?

Bateram em meu carro. Acho que a culpa foi da outra pessoa. O indivíduo que abalroou meu veículo não quer pagar o conserto. Temos um conflito, sem solução. Qual a forma para solucionar, se amigavelmente não for possível? Processo. Daí perguntamos: “qual o recurso que o cidadão tem para garantir esse direito?” Ajuizar uma ação judicial. Daí fará a petição inicial, exercendo o seu direito de ação. Note que o “recurso” aqui chama-se “ação judicial”.

Nisso, o réu será citado. Ele acha que não tem culpa. Qual o recurso que ele tem para se defender? Contestação. É o instrumento (jurídico-processual) de defesa do réu. Ele pode, também, alegar que o juiz é incompetente, de forma relativa. Qual o instrumento, ou melhor, o recurso que ele tem? Exceção de incompetência. E se discordar do valor da causa? Impugnação do valor da causa. Para cada possível gravame, um recurso!

Assim pudemos entender, então, o conceito amplo de recurso: instrumento de defesa de um direito que a parte entende ter.
 

Conceito restrito de recurso

Também é um instrumento jurídico processual. Alguns chamam de remédio, pois dá a ideia de cura. Mas, do ponto de vista específico, o recurso é o instrumento jurídico processual direcionado contra uma decisão judicial. O que se busca nesse recurso, de forma bem geral? Se a parte não gostou da decisão, ela quer que ela seja revisada, alterada. Ela busca, portanto, o reexame da decisão judicial.

Próxima pergunta: a quem é direcionado esse instrumento jurídico processual visando ao reexame? A um órgão hierarquicamente superior, como regra. Também existem casos em que o recurso é dirigido ao mesmo órgão julgador.

Outra indagação: esse recurso é apresentado dentro da relação jurídica processual que já existe, ou é considerado ação nova? É um exercício do direito de agir? Com o recurso, apenas prolonga-se a relação jurídica processual. O processo já existe, e a relação jurídica processual também já está formada. A discussão é estendida.

Muito cuidado com a expressão “dentro do processo”. Não é sinônimo de “autos”. O agravo de instrumento, por exemplo, forma um caderno processual novo. Mas é o mesmo processo! Há outros recursos que são interpostos dentro do mesmo caderno. O novo caderno formado chama-se “autos apartados”.

Finalizando: o recurso, do ponto de vista processual estrito, é o instrumento jurídico processual direcionado, em regra, ao órgão hierarquicamente superior dentro da mesma relação jurídica processual, visando ao reexame da decisão judicial.

Claro que o conceito restrito está dentro do conceito amplo. Qual o recurso para impugnar o valor da causa? É um instrumento jurídico chamado “impugnação ao valor da causa”. Qual o recurso usado para impugnar uma sentença, que e proferida na primeira instância? “Recurso de apelação!” Não confunda, então, o sentido restrito com o amplo de recurso.

Observe: recurso está ligado, necessariamente, à sucumbência? O que é sucumbente? É a ideia de prejuízo. Ou seja, se alguém sofreu prejuízo no processo, é porque a decisão judicial proferida foi contrária a ele. A parte sucumbente sofreu um prejuízo. Cuidado, pois não se trata somente de prejuízo econômico. A decisão desfavorável, por si só, já caracteriza sucumbência. Então fixe essa ideia: recurso está ligado à sucumbência. Quem tem sua pretensão integralmente atendida não tem razão de recorrer. Mesmo que a sucumbência seja mínima. Ter ganhado tudo o que foi pedido faz eliminar o interesse recursal. Não faz desaparecer o interesse processual, no entanto, a decisão que condena a parte contrária a pagar 98% do valor pedido em uma ação que tenha valor econômico claro; o autor pode recorrer para buscar os 2% remanescentes.
 

Decisão judicial

Dentro de um processo, o juiz, praticando os atos de impulso processual, chegará à decisão. E agora, quais os caminhos que o processo pode percorrer? Quem foi prejudicado pode apresentar um recurso. Nosso sistema processual brasileiro adota como regra a recorribilidade. O que significa isso? Proferida uma decisão judicial, em regra, algum recurso é cabível. Raras são as decisões judiciais das quais não cabem recurso.

Uma das opções, portanto, é recorrer da decisão. O recurso será julgado, ou por órgão hierarquicamente superior, ou pelo mesmo órgão, mas esta não é a regra. Será proferida uma nova decisão. E dela, cabe recurso? Sim! A regra do sistema continua valendo: a recorribilidade. Em último caso poderá chegar ao Supremo Tribunal Federal.

E se a parte não quiser recorrer? Qual a consequência? Preclusão. O processo vive de preclusão! Significa que, sem ela, o processo nunca acabaria. O processo tem que caminhar. A preclusão, assim, é a perda do direito de praticar determinado ato dentro do processo. Decidido e não recorrido, passa-se ao ato seguinte.

Qual é o nome da preclusão máxima em processo? Coisa julgada. O conflito, quando resolvido, leva ao trânsito em julgado.

Muito importante: a parte é obrigada a recorrer? É o recurso um ato obrigatório? Não. A parte tem a faculdade de recorrer. E quanto ao poder público? Há necessidade de recorrer? Na verdade, não, muito embora vejamos muitos recursos interpostos por pessoas jurídicas de direito público e entidades da Administração Pública em geral. Recorre-se por obrigação derivada da política da administração. Ainda assim não existe obrigação processual de recorrer.

Não confunda recurso com a remessa necessária, que são decisões judiciais reexaminadas de ofício. É imposição legal que haja o reexame.
 

Recursos e ações autônomas de impugnação

Vimos aqui, no conceito processual restrito, que recurso é instrumento jurídico processual usado contra uma decisão judicial dentro de uma relação jurídica processual. É uma extensão daquele processo. Mas existem ações autônomas que também se dirigem contra decisões judiciais. Proferida uma decisão judicial, o meio processual cabível para impugná-la, em regra, é o recurso. No entanto, existem casos em que o instrumento jurídico cabível não é um recurso, mas uma ação nova, visando ao ataque da decisão judicial proferida em outro processo.

Qual a semelhança entre recursos e ações autônomas de impugnação? Ambos se dirigem contra decisões judiciais. Dependerá do caso para que se saiba qual o instrumento cabível. Há também os sucedâneos recursais, que estudaremos depois. Não são recursos nem ações autônomas de impugnação.

Diferença: recurso é a extensão do direito de agir, enquanto a ação autônoma de impugnação é a instauração de uma nova relação jurídica processual.

Vamos aos exemplos. Temos a apelação, agravo, embargo de declaração, embargo de divergência... Todos são recursos, e importam prolongamento da ação já proposta. Uma ação autônoma de impugnação muito conhecida é a ação rescisória. Volte à batida do carro. A questão foi a juízo, ganhei, o réu recorreu, ganhei novamente. A decisão de segundo grau transitou em julgado. O que eu, o vencedor, irei fazer? Requerer meu direito, que é o cumprimento de sentença, a satisfatividade. E o réu sucumbente? Ele poderá rediscutir a causa, novamente! Desta vez, não mais por recurso, mas por meio de uma ação rescisória. Irá impugnar a decisão que já transitou em julgado por meio de uma nova ação. Mesmo que já tenha sido examinada pelo o STJ. Entretanto, felizmente, os requisitos para a propositura de uma ação rescisória são bem específicos. O autor terá, por exemplo, que fazer um depósito por causa de sua nova tentativa. E o caso deverá ser gravíssimo, tal como ter passado desapercebido o fato de o juiz da causa ser irmão do autor, um impedimento grave. Também válida para casos de incompetência absoluta, ação de investigação de paternidade, especialmente depois do advento do DNA.

Outro exemplo de ação autônoma de impugnação é o embargo de terceiro. Serve, por exemplo, para a ocasião em que um terceiro tem um bem penhorado. E mais um exemplo, mais raro, mas com força em alguns casos: mandado de segurança, impugnando uma decisão judicial. Somente em casos excepcionais, pois a regra é o recurso.
 

Fundamento dos recursos

Agora vamos entender o que a doutrina diz em relação à razão de existência dos recursos.

Valem a pena os recursos? Os juízes são em regra preparados, fizeram concurso, têm experiência jurídica, e nem todas as vagas são preenchidas. O recurso, portanto, serviria para desconfiar de um próprio ato do Estado! Seria, em tese, retirar importância da decisão de um juiz que se presume perfeitamente qualificado. Por que, então, permitir uma decisão após a outra? Porque a decisão do Supremo é melhor que a decisão do juiz de primeiro grau?

O juiz é qualificado, mas é um ser humano, e está sujeito a erros. Há também a má-fé, um problema grave. Há juízes que também não gostam nem do próprio advogado da parte, e acabam por prejudicar o cliente, que nada tem a ver com a desavença entre juiz e advogado. Qual a forma de controlar essa imperfeição? Recurso. Outro órgão julgador irá revê-la. O controle interno do Poder Judiciário é o recurso. É o Estado, internamente, revendo os atos dele mesmo (enquanto o controle externo é feito pelo Conselho Nacional de Justiça).

Outro fundamento é que o órgão superior é mais experiente que o órgão inferior. Em tese, um ministro do Supremo tem muito mais experiência que um juiz de primeiro grau. Pode haver juízes de 26 anos resolvendo controvérsias judiciais dentro de um complicado processo de família, com partes além dos 50 anos de idade, e com filhos, momentos que o próprio juiz pode não ter vivenciado ainda. É um ponto frequentemente posto pela doutrina.

Terceiro: o juiz, entrando na carreira, deve ter a pretensão de chegar ao topo dela. Essa é a pretensão de todos: subir! Ele, sabendo que as decisões dele serão reexaminadas por desembargadores ou ministros que um dia poderão votar nele por merecimento, proferirá decisões mais fundamentadas, com mais cuidado. O juiz de primeiro grau, portanto, faz um autoexame de suas próprias decisões. Para saber se um magistrado é bom basta ler suas decisões, mesmo que esse juízo seja subjetivo. É, portanto, a utilidade preventiva do recurso.

Insatisfação natural: é natural do ser humano, e, quanto ao brasileiro, até cultural. Estamos sempre insatisfeitos com a decisão desfavorável. O recurso faz a pessoa aceitar melhor a decisão que não lhe agrada. Sem recurso, haveria um caos de inquietação mental. O recurso é, portanto, uma resposta do Estado à insatisfação.

Por último, há a necessidade de uniformização da jurisprudência. Num país de dimensões como o nosso, é comum que haja duas pretensões idênticas julgadas de maneira diferente em Manaus e Aracaju. Os recursos, assim, provocam o afunilamento dos órgãos julgadores, até que as causas chegam ao STJ ou ao Supremo, sabendo que só existe um de cada. É a ideia do novo Código de Processo Civil que está tramitando. A ideia é a uniformização de tudo. Quando começarem a surgir ações em primeiro grau idênticas, haverá a previsão de dar eficácia erga omnes a elas, sem necessidade de recurso. Também ajuda a manter a isonomia.
 

“Duplo” grau de jurisdição

A ideia do duplo grau de jurisdição é a garantia do cidadão de buscar o reexame da decisão. Esse é o duplo grau de jurisdição. Não se limitar somente a um julgador. É a previsão do direito de recorrer da decisão. Significa que não se resumirá a uma decisão apenas. A busca desse reexame se dá com o duplo grau de jurisdição. Proferida uma decisão judicial, a parte tem direito ao reexame.

A garantia é de um único reexame, mas em algumas hipóteses haverá mais de um reexame. A Constituição obriga a que haja o reexame, ou há casos em que há limitação do duplo grau de jurisdição? Não há garantia absoluta do acesso ao duplo grau de jurisdição! Curiosamente, na Constituição de 1967, criada em tempo supostamente mais inseguro para o indivíduo, era absoluta a garantia do duplo grau.

Instâncias: quando falarmos em “instâncias ordinárias”, estamos falando no primeiro e segundo graus. As instâncias superiores se referem ao STJ e ao STF. A instância superior especial é o STJ, enquanto a instância superior extraordinária é o STF. Isso é para entendermos a nomenclatura usada no sistema recursal.

A maioria dos processos começam no primeiro grau, mas há os que iniciam nas instâncias superiores. São os casos de competência originária de tais órgãos jurisdicionais.
 

Natureza jurídica do recurso

Tem natureza de ação ou de extensão do direito de agir? É uma extensão do direito de agir. Somente são ações, evidentemente, as ações autônomas de impugnação.

O ato de recorrer é um dever processual, um ônus processual ou uma faculdade processual? Não confunda, pois do ponto de vista da vida recorre-se se desejar. Mas e do ponto de vista processual? Vamos rever a diferença entre dever, ônus e faculdade. A especificação muda de acordo com o momento do processo. O sujeito tem o ônus de provar, mas a faculdade de especificar provas. O que é dever? O que é dever processual? Praticar o ato para satisfazer o direito alheio. É uma obrigação para satisfazer o direito de outrem. Dever de pagar, por exemplo, que for imposto à parte. Quem paga satisfaz o direito da outra parte.

Faculdade processual: quando dizemos que alguém tem a faculdade processual, a consequência jurídica é a mesma. Praticando ou não o ato, sobrevirá a mesma consequência. Exemplo: especificar provas. Se a parte disser que não tem provas a produzir, ou ficar silente, a consequência será a mesma. Se não ganhar no reexame, a consequência é a mesma que já ocorreria caso não ocorresse (exceto quanto às custas).

E quando se diz que “determinada pessoa tem o ônus da prova”? Quando o Código de Defesa do Consumidor diz: “o consumidor tem direito à inversão do ônus da prova”. Se o fornecedor não provar, ele será o prejudicado. Ônus é satisfação do direito próprio. A parte tem o ônus de provar, em regra, o alegado. Ao deixar de provar, ela deixa de satisfazer interesse próprio. Da mesma forma que na contestação: quem é citado tem o ônus de contestar, e não a faculdade ou dever, pois a não apresentação de contestação implica um prejuízo à própria parte que deixou de fazê-lo.

Não pensem, portanto, que faculdade é “opção por fazer ou não fazer”. É assim na vida, mas não no processo.