Direito Administrativo

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Responsabilidades dos servidores públicos

 

Esta é a última aula sobre servidores públicos.

Como qualquer cidadão detém responsabilidades, o servidor público também terá responsabilidades e responderá pelos atos praticados, desde que venham a gerar danos, prejuízos, ou se praticar condutas tipificadas como crime.

Pois bem. Partindo-se do pressuposto que qualquer cidadão está sujeito a responder pelos seus próprios atos, não seria diferente com os servidores públicos. Aliás, as coisas são ainda piores. Hoje em dia é muito legal para um veículo de imprensa estampar nas páginas dos jornais as faces dos servidores supostamente envolvidos em irregularidades. Víamos até bem pouco tempo servidores públicos serem enclausurados e algemados. Surte bom efeito sobre a população. E tem que surtir mesmo, porque se exige uma conduta ímpar do servidor público, que é pago pelo Estado, que por sua vez é custeado por nós. O fiscal desse servidor público será o próprio cidadão. O cidadão exige que o servidor tenha uma conduta não correta, mas escorreita, ou seja, mais do que correta. Portanto é importante que saibamos, inclusive as pessoas que pretendam ser servidoras públicas, as responsabilidades do ofício. Não se trata mais servidor público como antigamente, que não fazia concurso público, entrava pela janela, tinha padrinho de algum lugar; hoje em dia a importância que se dá ao servidor público é grande. Onde há recurso público há uma fiscalização hoje por parte da sociedade, por parte do próprio cidadão, que o maior fiscal da máquina administrativa. Há circunstâncias, inclusive, no Direito Penal, em que a pena é aumentada quando o crime é praticado por servidor público. Servidor não pode arrumar confusão e ficar brigando na rua. Se a pena for maior do que quatro anos de prisão, perderá o cargo. Art. 92 do Código Penal, transcrito mais à frente.

Porém, a responsabilidade do servidor público também se baseia na responsabilidade subjetiva. E, a partir desse pressuposto, a partir do momento em que haja uma ação antijurídica, com link (nexo) de causalidade, que envolva dolo ou culpa, mais um terceiro prejudicado, há a necessidade de reparação. O servidor público está sujeito como qualquer cidadão.

Dois exemplos: primeiro deles, para generalizar bem, um caso real. Determinado servidor, depois de realizada a assinatura de um convênio entre uma prefeitura e o órgão em que ele trabalhava, convênio esse que envolvia repasse de recurso público, ao invés de mandar o dinheiro para o município, resolveu mandar o dinheiro para a conta da titia dele no interior do Piauí. Da noite para o dia a titia ficou rica, mas ela mesma nem sabia. Quem mexia na conta era o servidor mesmo. E agora? Em quais searas esse servidor poderá ser penalizado? Administrativa, para começar. Não cumpriu com seus deveres de servidor público. Poderá receber penalidades administrativas previstas na Lei 8112/1990. Seara civil: deu prejuízo aos cofres públicos, daí o dever de ressarcir. E na penal, porque teve uma conduta tipificada como crime, no caso, peculato (art. 312 do Código Penal). Uma conduta, três consequências, em três diferentes esferas.

O segundo exemplo é uma situação que gera somente responsabilidade subjetiva do servidor público: chega ao trabalho numa segunda-feira e encontra um computador “zero bala”. Acontece assim de modo geral: o equipamento recém-adquirido pela Administração é deixado lá na sala do servidor, que em seguida tem que ligar para o help desk para que alguém vá lá ligar o computador. “Mas é só enfiar na tomada!” – pensa o servidor. “Eu tenho que agilizar as coisas, sou eficiente, não tenho tempo a perder.” E trata de introduzir o plugue na tomada... mas a voltagem era diferente! Resultado: explosão do novíssimo equipamento, ao menos da fonte de alimentação. A logística ainda não tinha levado o estabilizador de voltagem, se existente. E agora? O que fazer? Botar a culpa no estagiário? Não. O servidor até pode alegar que ligou rapidamente o computador querendo ser eficiente, para trabalhar logo. Mas depois descobrindo uma resolução do órgão, da qual já deveria ter conhecimento, dispondo de que quem mexe com instalação e manutenção é só a área de informática... portanto, houve o descumprimento de um dever, que é o de observar as normas administrativas. A máquina era da Administração e queimou. O que o servidor terá que fazer? Ressarcir a Administração pelo dano que provou ao Estado. É uma responsabilidade civil em que se analisará se ele agiu com dolo ou culpa. No caso, ele se julgou capaz de fazer uma coisa que não tinha a expertise para tal, um misto de imperícia com imprudência. Responderá somente civilmente, talvez só pela via administrativa, com o direito de defesa, direito constitucional garantido, e, ao cabo do processo, ele terá de ressarcir o Erário pelo dano que provocou. Sendo estatutário, vingam dois atributos do ato administrativo que impõe a sanção: autoexecutoriedade e, por consequência, presunção de legitimidade e veracidade. O Estado não pedirá a autorização do Poder Judiciário para descontar da remuneração do servidor. Pode descontar até 10%. Jurisprudência recente do STJ, todavia, fala em necessidade de autorização do próprio servidor para que haja o desconto. Questão nada pacificada.

Tendo em vista haver uma relação unilateral em que o servidor está adstrito ao cumprimento do estatuto, e o estatuto permite o desconto, vinga a autoexecutoriedade. Não há necessidade de anuência do servidor desde que respeitado o devido processo administrativo, com direito de defesa.

Se houvesse dolo, aí haveria nova circunstância: ele poderia responder administrativamente também, coisa que vamos ver em breve.

No tocante à responsabilidade civil do servidor público, dado o direito de defesa e o devido procedimento legal administrativo, gera-se a responsabilidade do servidor ressarcir o Erário quando há prejuízo. E também quando é caso de prejuízo a terceiros. Digamos que o servidor seja motorista de uma viatura de determinada repartição. Nosso amigo-vítima, ao ser abalroado por um carro de uma repartição pública conduzido por um servidor público, terá três opções. Acionará o seguro? Não. Acionará o Estado, que tem a responsabilidade objetiva. É mais fácil cobrar dele. E veremos responsabilidade extracontratual do Estado, que, por via de regresso, cobrará do servidor que deu causa ao evento danoso, desde que se prove dolo ou culpa deste. A responsabilidade, nesta etapa, será subjetiva. Segunda opção é ajuizar diretamente contra o servidor. O servidor, quando demandado solitariamente, poderá dizer, por sua vez: “chame o Estado! Não somente eu.” Promove denunciação da lide. Ou então apela para a terceira opção, que é demandar os dois, servidor e Estado, diretamente em litisconsórcio.

Baseado no art. 70 do CPC, o servidor denunciará o Estado à lide. Ao final da fase de conhecimento formar-se-á um título executivo judicial que o Estado usará para acionar o servidor. E, entrando o Estado no processo, como ele foi denunciado à lide, a competência poderá ser deslocada para a Justiça Federal, caso o ente público seja a União ou entidade a ela vinculada ou órgão a ela subordinado.

Na responsabilidade subjetiva, as responsabilidades são pagas com o patrimônio.

Digamos, agora, que o ofensor não queira ter descontado de sua remuneração o quantum reparatório. E agora? O Estado pode sequestrar ou constranger seus bens para garantir uma futura sentença. Como também a Lei 8429/1992, a Lei de Improbidade Administrativa, que também irá imputar ao servidor uma multa de até cem vezes o valor de sua remuneração, além do ressarcimento ao Erário e perda dos direitos políticos. Teremos para frente uma aula só sobre a LIA.

E se não quiser pagar? Não pode fugir. Em Teoria Geral do Processo vimos a evolução da teoria da ação. Vimos que, em determinado momento, só existiria ação se houver sentença de mérito. Depois tivemos a teoria de Giuseppe Chiovenda, que tratava da ação como um novo tipo de direito: potestativo. O que é isso? Poder de manejar o Estado contra outra pessoa. E, com a Constituição Cidadã de 1988, o que aconteceu foi que o direito de ação se tornou um direito cívico. Se digo que alguém tem um direito cívico, baseado no inciso XXXV do art. 5º da Constituição, o que ele fará é acessar o Judiciário valendo-se do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Caberá a última palavra ao Poder Judiciário. Mesmo que haja presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo e consequente autoexecutoriedade, isso não impede a apreciação do Poder Judiciário.

Essa é a responsabilidade civil do servidor público. Envolve reparação do dano, tanto para o Estado quanto para terceiros.
 

Responsabilidade administrativa

Envolve descumprimento de quê? Deveres inerentes a servidor público. Malferimento de seu próprio estatuto de servidor. Se uma conduta foi tida como descumpridora de uma norma estatutária, e o servidor adere à regra unilateralmente preestabelecida, o servidor não poderá tergiversar sobre isso. Digamos que, no exemplo do computador detonado pela ligação em 220V, havia uma instrução, um ato ordinatório qualquer dizendo “o servidor não pode se aventurar a instalar ou realizar manutenção no computador; poderá somente operá-lo. Qualquer problema deverá ser dirigido ao help desk.”, isso é descumprimento de norma administrativa. O servidor deverá responder a processo administrativo. Na apuração da conduta ilícita administrativa do servidor público, deve-se apurar se há dolo ou culpa.

Observação: não veremos Processo Administrativo Disciplinar. Não está em nosso programa e precisaríamos de três aulas. Infelizmente.

É poder-dever da Administração apurar todo e qualquer ilícito e infração administrativa. O que é isso? Princípio da legalidade. Mesmo que haja um procedimento sumário preliminar de investigação.

Na seara administrativa, portanto, acontecerá algo muito parecido com a seara cível. Direito de defesa, devido processo legal, contraditório, que irá redundar em penas previstas no estatuto do servidor público. Podemos, na melhor das hipóteses, ver uma discrepância de penas. Se o ato impensado de ligar o computador em voltagem não verificada for praticado em duas repartições, é possível que a sanção administrativa aplicada por uma seja advertência, enquanto na outra seja suspensão. Mas nas circunstâncias que ensejam pena de demissão, a discricionariedade administrativa é quase nenhuma. São condutas colocadas em numerus clausus na Lei 8112/1990 que devem ter por consequência a pena de demissão, sem meio-termo. No tocante à pena de demissão, o professor entende ser praticamente impossível, em que pese haver administradores tentando contornar situações pesando o tempo de casa, os antecedentes, a gravidade. Alguns tentam converter para suspensão. Daí vemos na doutrina que, na aplicação da pena, poderá haver uma determinada discricionariedade, o que gera certas injustiças, tanto analisando internamente dentro do órgão, ou na comparação com servidores de outros.

Isso, também, obviamente, não inibe o acesso ao Poder Judiciário. Por quê? Inafastabilidade da jurisdição! O servidor que foi penalizado com uma pena de suspensão de 30 dias poderá manejar um mandado de segurança e conseguir uma liminar suspendendo a pena. Se aplicada pena de demissão, e em seguida o Judiciário manda o servidor retornar, o provimento é qual? Reintegração. Qualquer coisa que envolva direitos das pessoas tem que ser motivado sob pena de nulidade dessa decisão.

Exemplo: alguém está suspenso há 30 dias. Por quê? “Porque eu quero!” Não existe isso. Para imputar uma pena de suspensão, o administrador deverá se basear nas provas contempladas nos autos. Dá-se direito de defesa ao inquirido, e também ouvem-se testemunhas e podem-se juntar documentos. Nossa jurisdição é una, e não existe contencioso administrativo em nosso país.

Já vimos a seara administrativa e a cível. Falta a penal!
 

Responsabilidade penal do servidor público

Vamos voltar ao exemplo do rapaz que desviou o dinheiro para a conta de sua tia que mora no interior de outro estado. Ele começa a ostentar riqueza, chega com a caminhonete zero km e roupinhas novas, um sujeito burro mesmo. Começa a levar as coisas para o trabalho e põe-se a ostentar. Aí a polícia pega. É uma conduta reprovável com ou sem burrice. É reprovável a conduta por simplesmente malversar recursos públicos. O sujeito, ainda assim, muda de vestimenta, de carro, até de comportamento, e investigam. Nisso descobrem de quem era o login e a senha usados quando o recurso foi desviado. Quem irá apurar será o Poder Judiciário, o primeiro e único a apreciar. A Administração não aplica sanção penal. Responsabilidade subjetiva, claro. Conduta, dolo e culpa.

Existe um adágio jurídico em latim que também é um preceito constitucional, tocante ao Direito Penal. Imputabilidade: nullum crimen nula poena sine lege. O servidor público só responderá penalmente se a conduta dele for tipificada como crime ou contravenção. “Não existe crime nem pena sem lei anterior que os definam.”

Responsabilidade do Estado será sempre objetiva no tocante à reparação do dano. Mas o Estado não vai para a cadeia; quem vai é o agente. Por isso é somente subjetiva a responsabilidade. O Estado não age por si só. O Estado não é um ser; é uma entidade inanimada. O querer do Estado é o querer de seus agentes. São eles quem responderão criminalmente. Vamos ter aula específica sobre isso.

E, claro, deve ser aferida a existência do nexo de causalidade entre a conduta do servidor e o dano causado.

A responsabilidade é subjetiva; há necessidade de uma norma, e não somente o Código Penal tipifica crimes. Há legislação penal extravagante, tal como a Lei do Inquilinato e o próprio Código de Defesa do Consumidor, além da Lei de Falências, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Na Lei de Improbidade Administrativa há outros exemplos. Há vários diplomas legais. Então, lei penal = Código Penal + leis esparsas. Só o Judiciário aprecia.

Aqui surge um problema: a concomitância de instâncias. O sujeito que colocou dinheiro na poupança de sua tia velhinha teve uma conduta ilícita civil, administrativa e penal. São todas independentes. Daí poderá ser sancionado nas três esferas. O aproveitador corre o risco de ser mandado embora do serviço público, mas ser absolvido no cível e no criminal. A regra, portanto, é a independência das instâncias.

Há exceções, entretanto. Deve-se notar qual o motivo da absolvição na seara penal: se por falta de provas, por inexistência do fato ou por negativa de autoria. Lei 8112:

Art. 126.  A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

Havendo condenação criminal, não há possibilidade de o juízo cível ou do juízo que aprecia a sanção administrativa ¹ decidir de maneira contrária. Art. 935 do Código Civil:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Isso porque a apreciação das provas no juízo penal é muito mais aprofundada, forçando o reconhecimento da situação jurídica nas esferas cível e administrativa. Agora, por exemplo, vinga a máxima in dubio pro reo. Será reintegrado o servidor que tiver sido absolvido por falta de provas? Não. Nem mesmo se ele for absolvido em virtude do princípio da insignificância. Porém, será reintegrado se o juízo criminal decidir pela absolvição por inexistência do fato ou negativa de autoria.

Código Penal:

Art. 92 - São também efeitos da condenação:

I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluído pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

II - a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado;

III - a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. 

Parágrafo único - Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença.

Até 1996, se fosse condenado por mais de dois anos, o servidor iria para a rua. Agora temos regra nova: pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos casos de crime com abuso de poder ou violação do dever para com a Administração Pública. É uma coisa muito aberta: “dever para com a Administração Pública”. O que é isso? O juiz pode abstrair bastante. Se o crime não importar em descumprimento de dever para com a Administração, o servidor perderá o cargo se condenado a mais de quatro anos de pena privativa de liberdade, desde que o juiz expresse esse efeito da condenação na sentença.

Se for para o cárcere, a família do servidor receberá auxílio reclusão (art. 185, II, c, e art. 229 da Lei 8112). Em 99% das sentenças, quando acontece isso, o juiz declara a perda do cargo, porque não é justo deixar o erário pagando alguém sem trabalhar, e segurando o cargo.

Art. 229.  À família do servidor ativo é devido o auxílio-reclusão, nos seguintes valores:

I - dois terços da remuneração, quando afastado por motivo de prisão, em flagrante ou preventiva, determinada pela autoridade competente, enquanto perdurar a prisão;

II - metade da remuneração, durante o afastamento, em virtude de condenação, por sentença definitiva, a pena que não determine a perda de cargo.

§ 1o  Nos casos previstos no inciso I deste artigo, o servidor terá direito à integralização da remuneração, desde que absolvido.

§ 2o  O pagamento do auxílio-reclusão cessará a partir do dia imediato àquele em que o servidor for posto em liberdade, ainda que condicional.

  1. Usei a expressão “juízo que aprecia a sanção administrativa” para não confundir com “juízo administrativo”, coisa que não existe em nosso país, que tem jurisdição una.