O CDC possui 119 artigos, sendo que
os 54 primeiros são
normas de cunho civil, de direito privado, de efetiva regulamentação.
As demais
são normas de cunho administrativo, penal e processual. Portanto, os
três
primeiros capítulos do Código de Defesa do Consumidor são os mais
importantes.
Essa primeira parte do Código é
fundamental: estabelece
conceitos, conceitos básicos de consumidor e fornecedor, e é onde
trabalhamos,
de forma superficial, o conceito de produtos e serviços, para então
tratar da
defesa do consumidor em juízo. São três capítulos fundamentais.
Na aula de hoje vamos começar a
trabalhar com os princípios
do Código de Defesa do Consumidor.
Os direitos básicos estabelecidos no
art. 6º do CDC estão
fundamentados nos princípios. Assim, é muito provável que, quando
estivermos
lendo os direitos do art. 6º vamos recapitular os princípios. O que
está
disposto no art. 6º é a normatização dos princípios consagrados na
doutrina.
Objetivos
dos três
primeiros capítulos do CDC
Princípios e direitos básicos do
consumidor. Isso é o que
está nos três primeiros capítulos.
O professor nos passou, na aula
passada, que o Código de
Defesa do Consumidor é uma lei principiológica. Significa dizer que o
CDC
estabelece diretrizes de trato. Ou seja, o fornecedor terá que seguir
determinados padrões de conduta ao se relacionar com o consumidor.
Esses
padrões de conduta decorrem dos princípios. Quando o Código de Defesa
do
Consumidor estabelece, em seu art. 6º, os direitos básicos do
consumidor, ele o
faz com fundamento nos princípios. Como sabemos, existem regras e
existem
princípios.
Diferença básica entre norma regra e
norma princípio: a regra
é aquilo que ou tudo, ou nada vale. Ou respeita-se a regra, ou
desrespeita-se-a. Não
existe meio-termo. O princípio não; ele estabelece um padrão de conduta
ou um
valor social de uma disciplina, ou de uma determinada matéria. Então,
os
princípios que vamos começar a tratar estabelecem valores sociais de
trato
entre fornecedor e consumidor.
Muito bem.
Hoje vamos tratar de três princípios
básicos que norteiam o
Código de Defesa do Consumidor. São eles:
1 – Princípio da boa-fé. art. 4º,
inciso III do Código:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de
Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção
de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem
como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios: [...] III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; |
“Sempre com base na boa-fé.” Veja o
art. 51, inciso IV:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre
outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos
e serviços que: [...] IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; |
Tais cláusulas são nulas
de pleno direito. Estamos começando a falar de contratos!
Novamente temos o
CDC mencionando expressamente o princípio da boa-fé. Por isso, a boa-fé
é
fundamental, um princípio fundamental norteador do Código de Defesa do
Consumidor.
A boa-fé tem dois momentos de
interpretação. A boa-fé subjetiva
e a boa-fé objetiva. O que é a boa-fé subjetiva? Para que se analise a
boa-fé
subjetiva, é necessário analisar a consciência do agente no momento em
que ele está
se relacionando com o consumidor. Vamos colocar, portanto, o agente
como o
fornecedor. Temos que saber se o fornecedor está agindo com malícia,
com dolo,
se de alguma forma está agindo com culpa, ou seja, quando falamos da
boa-fé
subjetiva, entramos na cabeça dele e buscamos interpretar se ele tem
consciência da forma com a qual ele está agindo. Boa-fé subjetiva,
então, está
vinculada à psicologia, ao dolo, à consciência da conduta. O que
poderíamos
dizer com isso é que, sob o ponto de vista da boa-fé subjetiva, o
fornecedor
não tem responsabilidade por prejuízo causado ao consumidor se ele não
teve
malícia, dolo ou culpa. Veja como o fornecedor poderia ser isentado de
responsabilidade se não se conseguisse provar que ele agiu com dolo ou
culpa. O
fornecedor praticou um ato e prejudicou ou consumidor. Teríamos,
portanto, que
analisar se ele agiu com dolo ou culpa. Sem aferir, o consumidor
ficaria
desamparado, já que o fornecedor não teve malícia ou má-fé, ou pelo
menos elas
não foram comprovadas.
O que acontece e como é vista a
boa-fé hoje em dia? A
boa-fé, antigamente, era vista sob o ponto de vista subjetivo. Só se
poderia
dizer que uma pessoa desrespeitou o princípio da boa-fé se se provasse
que ela
agiu com dolo, culpa, querendo prejudicar. Hoje em dia o que prevalece
é a
boa-fé objetiva. Hoje alguém pode violar o princípio da boa-fé
inconscientemente.
Alguém pode desrespeitar um direito de um consumidor sem mesmo saber
que o está
fazendo. Como isso funciona? É bem simples.
Existe um padrão ético de conduta que
tem que ser respeitado
por todos os fornecedores. Hoje, o homem médio, ou o fornecedor
enquanto homem
médio, tem que saber tratar o consumidor. Existe um padrão de conduta
exigido
do fornecedor. Se houver um desvio desse padrão de conduta, não importa
se o
fornecedor agiu com dolo, com culpa, se tinha ou não malícia; se houver
o desvio
do padrão de conduta, haverá violação ao princípio da boa-fé.
Hoje sabemos como temos que ser
tratados. Hoje qualquer
fornecedor sabe como se deve tratar o consumidor. Se ele se desviar
desse
caminho, desse padrão de conduta, ele estará, provavelmente, violando o
princípio da boa-fé.
Pois bem.
Não importa hoje, para o Direito do
Consumidor, para o
princípio da boa-fé, indagar ou investigar se o fornecedor tinha
malícia, se
tinha consciência que estava causando prejuízo. Isso não importa. A
boa-fé não
é mais vista em seu aspecto subjetivo. Hoje sabemos se aquele
fornecedor se
desviou, ou se ele violou o princípio da boa-fé simplesmente analisando
o
comportamento dele. Se não é igual ao dos outros fornecedores, então
ele não
está agindo com deveria agir. Obviamente, se o comportamento não for
igual ao
dos outros fornecedores e se ele estiver
causando prejuízo.
O Código de Defesa do Consumidor vê a
boa-fé sob o ponto de
vista objetivo. O Código Civil também o vê sob o aspecto objetivo.
E quem irá fazer a análise valorativa
sobre o comportamento
do fornecedor? Duas pessoas. O juiz, provocado pelo consumidor.
"Excelência!
Hoje, para o Código de Defesa do Consumidor, não importa mais a
malícia, o
dolo, a culpa. Hoje a boa-fé é vista sob o aspecto objetivo! Ele se
desviou do
padrão de conduta, do fornecedor homem médio, prejudicando meu cliente." Assim
violou a boa-fé objetiva.
A boa-fé também possui funções. ¹
Funções da
boa-fé
Primeira delas: função
integrativa. A boa-fé é fonte de direitos acessórios,
direitos anexos. Como
assim? Quando contratamos com o fornecedor, quando compramos
determinado
produto, o objeto da negociação é o produto. É só pagar e receber o
produto.
Esse é o objeto da negociação. Existe uma obrigação, claro, de pagar, e
outra,
de entregar a coisa, ou prestar o serviço. Está e a obrigação
principal. Mas a
boa-fé estabelece outras obrigações, que são acessórias a essa
obrigação
principal. Além de pagar, deve-se ser
honesto ao pagar. Agir com lealdade, com honestidade. Além de
o fornecedor
entregar o contratado ao consumidor e prestar um determinado serviço,
ao
estabelecer essa negociação, o fornecedor passará a ter outras
obrigações,
quais sejam: de ser honesto e leal. Essas obrigações acessórias, tais
como a lealdade,
honestidade, ausência de malícia são obrigações
acessórias.
O fornecedor não poderá dizer:
“entrego-te um carro. Tome!
Mas tu me pagas 100 prestações de 450 mil reais.” A obrigação principal
foi
cumprida, mas as acessórias não. Por isso, o juiz poderá mitigar o
princípio do
pacta sunt servanda, justamente pela
não observância às obrigações acessórias. As funções acessórias
decorrem da
função integrativa da boa-fé. E pode fazer isso de ofício. Por que
mesmo?
Porque as normas consumeristas são normas de ordem pública. E a boa-fé
é uma
norma do Código de Defesa do Consumidor. Art. 4º, inciso III, e art.
51, inciso
IV, como acabamos de ler. A função integrativa é uma função da boa-fé,
portanto
o juiz pode proceder de ofício.
Lembrem-se que quem conduz o barco é
o advogado. O juiz fica
ali sentadinho. Dificilmente o juiz procurará chifre em cavalo. Pode,
mas não
necessariamente o fará, então o advogado deverá apontar onde estão as
desproporcionalidades.
Segunda função da boa-fé: a função interpretativa. Pela função
interpretativa, ao juiz e
àqueles que estão vinculados ao contrato é proibido interpretar a
avença de
forma maliciosa, tendenciosa, de uma maneira que possa causar prejuízo
ao
consumidor. Além da função integrativa temos a função interpretativa.
Se
estivermos diante de uma cláusula que possa, em sua interpretação,
prejudicar o
consumidor, ela terá que ser interpretada de forma contrária. Não se
pode estabelecer
uma cláusula dúbia, que causa confusão àquele que está submetido ao
contrato. A
função interpretativa da boa-fé é importante porque na maioria das
vezes os
contratos são elaborados pelo fornecedor, já que são, quase todos, de
adesão. Significa
que é possível que o fornecedor coloque no contrato disposições que só
interessem a ele. Tratam-se de questões que, ao serem interpretadas,
podem
prejudicar o consumidor. Pela função interpretativa proíbe-se a
interpretação
maliciosa. O juiz sempre interpretará o contrato visualizando os
direitos do
consumidor. E, novamente, se um contrato for interpretado pelo
fornecedor de
forma tendenciosa e maliciosa, os efeitos dessa interpretação maliciosa
poderão
ser anulados pelo juiz e a interpretação correta da cláusula poderá ser
colocada pelo próprio juiz. Ou, ainda, se não for possível uma
interpretação
benéfica, compatível com a boa-fé, a cláusula poderá ser anulada, ou
revogada. Veremos
mais para frente a anulação e a revogação.
Observação: o Procon, pela Lei de
Ação Civil Pública (Lei
7347/85), tem poder para ajuizar ações. Mas não presta serviços
vinculados a um
produto específico, ou a alguma prestação específica. A Aneel é uma
agência
administrativa reguladora. A quem compete estabelecer multas caso a CEB
descumpra um direito do consumidor? Compete à agência encarregada de
fiscalizar. Mas a Aneel não consegue desempenhar esse papel de forma
preponderante em todos os Estados. Daí ela se aproveita de outros
órgãos que
possam fazer isso por ela. Por exemplo, o Procon! Mas, originariamente,
não
pertence ao Procon essa iniciativa. Não é função do Procon aplicar
multa.
Conselho Administrativo de Defesa
Econômica, o CADE: existe
uma defesa horizontal e uma defesa vertical da economia. Quando se
trabalha com
propriedade intelectual, marcas, patentes e defesa da concorrência, evitando práticas caracterizadoras da concorrência
desleal,
atua-se, se de acordo com o a Lei de Propriedade Industrial (Lei
9279/96), de
forma horizontal: impedir a Pepsi de usar a marca da Coca-Cola.
Presumem-se em
igualdade de condições as empresas envolvidas. O CADE atua em primeira
instância para proteger a concorrência. E pode intervir no aspecto
vertical em
última instância porque, se se protege a Coca-Cola contra a Pepsi,
protege-se o
consumidor contra o monopólio, e o consumidor é hipossuficiente em
relação às
grandes empresas de refrigerantes.
Terceira função: a função
de controle. Pela função de controle, o juiz pode modificar
ou revisar
cláusulas contratuais. A função de controle funciona em dois momentos:
o
primeiro da função de controle é o momento anterior ao contrato, e o
segundo é
o posterior ao contrato. O momento anterior funciona da seguinte forma:
existe,
pela função de controle, um limite ao exercício de direitos subjetivos. Pela função de controle da boa-fé, o fornecedor, ao
estabelecer um
contrato, ou ao elaborar um, que via de regra são de adesão, não poderá
colocar
determinadas cláusulas. Quais são as cláusulas que o fornecedor não
pode
colocar no contrato? Dúbias, abusivas, e cláusulas que, de alguma
forma,
possam, injustificadamente, prejudicar o consumidor. A função de
controle
estabelecida pela boa-fé, neste primeiro momento, impõe limites ao
exercício de
direitos subjetivos. O fornecedor não é completamente livre para
elaborar o
contrato. Ele possui determinadas restrições. Esse é o primeiro momento.
O segundo momento é: depois de
elaborada uma cláusula
abusiva pelo fornecedor, o juiz pode declarar essa situação, declarar
que o
fornecedor assim o fez, então revisará ou modificará essa cláusula
abusiva. Em
um primeiro momento a função de controle é realizada antes de se
estabelecer o
contrato, e outra, depois que o contrato já está pronto e que é posto
ao
consumidor.
Tanto a função integrativa, quanto a
interpretativa, quanto
a de controle são analisadas em conjunto. Ao analisar um contrato, uma
relação
jurídica entre fornecedor e consumidor, o juiz analisará o conjunto: se
há
lealdade, se há cooperação, se o fornecedor não está agindo de forma
tendenciosa, e se o fornecedor não excedeu os limites que lhe são
impostos ao
elaborar o contrato. Daí a as importantíssimas funções da boa-fé.
Detalhes: essas funções terão sempre
que ser analisadas
tanto pelo juiz quanto pelo advogado. Isso porque é um princípio, e,
como
fundamentação normativa, pode-se aproveitar da boa-fé, apontando
condutas
desconformes com ela. Assim o direito já está escorado. O Art. 4º,
inciso
III do CDC pode ser invocado neste momento.
Este foi o princípio da boa-fé. É o
primeiro princípio!
Junto com ele existe outro princípio
fundamental que é o da
vulnerabilidade. Mas vamos ver um outro agora.
Princípio da
transparência
Pelo princípio da transparência, o
consumidor tem o direito
de ser informado e o fornecedor tem o dever de informar. O alimento
contém glúten?
É obrigatório informar. Todas as características devem ser informadas
pelo
fornecedor. O fornecedor que não informa, que não repassa para o
consumidor
todas as características e informações necessárias sobre o produto está
descumprindo com o dever de informar. Princípio da transparência =
dever de
informar.
Há alguns produtos em que o dever de informar é mais pesado, e o princípio da transparência é mais rigoroso. Vemos isso nos agrotóxicos, em venenos para rato, que têm que apresentar um destaque maior na informação de que são produtos tóxicos. Deve haver destaque de forma que não cause confusão. Quando se trata de produto nocivo à saúde, a fiscalização sobre essa informação é muito mais rigorosa. Existem determinadas características de outros produtos que devem constar de forma destacada. Por exemplo: “não contém açúcar.” Ou então, “contém açúcar.” Justamente pelo fato de sabermos que grande parte da população apresenta diabetes, essa informação tem que ser destacada. A nocividade tem que ser destacada. Quando se trata de produto naturalmente nocivo, a própria rotulagem tem que ser destacada.
Princípio da
confiança
Pelo princípio da confiança, o
fornecedor deve atender às legítimas
expectativas do consumidor. Quando
falamos em legítima expectativa, o que queremos dizer é que, ao comprar
algo,
temos a expectativa de que o produto irá funcionar e não irá arrebentar
nada em
minha casa, e que não irá explodir. Se por um caso for frustrada essa
legítima
expectativa, então haverá violação ao princípio da confiança. E a
relação de consumo
é baseada na confiança que se estabelece entre consumidor e fornecedor,
principalmente pelo fato de aquele ser uma pessoa leiga com relação ao
produto
que está adquirindo. O consumidor não sabe todas as características e
funcionalidades, não conhece o produto a fundo. Quem compra um iPad
compra
porque “confia na Maçã”.
Atenção: expectativas devem ser
legítimas. Não se pode
esperar que o iPad vá coar café. Com esse exemplo podemos entender a
ideia do
que seja a legítima expectativa.