Direito do Consumidor

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Relação jurídica de consumo e seus elementos


Vamos fazer uma introdução rápida trabalhando com os elementos, e depois entrar numa das questões mais controvertidas de Direito do Consumidor, que é a definição de consumidor. Para que se possa classificar uma relação jurídica como sendo de consumo, precisamos saber quem é consumidor. Isso é fundamental. E não é muito simples descobrir quem é consumidor. Não necessariamente é quem compra várias coisas.

Prestem atenção: relação social. Nem toda relação social é uma relação jurídica. Mas toda relação jurídica é uma relação social. Como assim? A relação social pode decorrer de diversos fatos. Vamos andar no parque, vamos à igreja, cuidamos de nossos filhos, o que são relações sociais. Mas só haverá relação jurídica no momento em que a relação social importar para o Direito. Se a relação social não importa para o Direito, ela não é uma relação jurídica. E quando uma relação social importará para o Direito? Quando houver uma norma em abstrato que defina situações in concreto. Como funciona esse fenômeno da juridicização? Bem simples: o legislador elege alguns fatos sociais como fatos de relevância, importantes, e criará uma norma para o relacionamento entre as partes que estão envolvidas nesse fenômeno, nesse fato. Vamos entender.

Podemos colocar assim: juridicização ocorre quando o legislador elege determinados fenômenos sociais como mais importantes e resolve discipliná-los por meio de normas.

Você, correndo, ou fazendo sua corridinha na rua, classificaria esse fenômeno como simplesmente social ou como um fenômeno jurídico? Social somente. Qual a norma que existe para que se ande na rua? Existe uma? Você precisa de tênis da Nike e Relógio Polar? Não. Mas andar de carro é uma relação jurídica, porque o “andar de carro” foi eleito pelo legislador como um fenômeno importante e, diante desse fenômeno importante, resolveu criar regras, em outras palavras, juridicizou. O fenômeno social pode também ser chamado de fato social.

Para Savigny, a definição de fato jurídico é bem interessante: todo o fato em que uma pessoa exerce uma pretensão a que outra pessoa está obrigada. Sem norma disciplinadora não se tem obrigação, então temos que ter pelo menos um contrato. Sem a norma disciplinando a relação, norma obrigando a pessoa e com outra tendo a pretensão, não temos um fato jurídico.

Fato social, portanto, não é igual a fato jurídico, apesar de que todo fato jurídico será um fato social. Este engloba aquele. O fato jurídico é um fato social regulamentado.

Por que isso importa para nós? Porque todo fato social de consumo é fato jurídico regulamentado por uma lei específica, qual seja, o Código de Defesa do Consumidor. E se é, podemos ter fatos sociais de consumo que venham a ser regulados por mais de uma lei. Existe alguma lei que regulamente especificamente os serviços bancários? Existe, e não é o Código de Defesa do Consumidor! Isso significa dizer, então, que estará excluído o Código de Defesa do Consumidor? Não, pois, sendo um fato social de consumo, por mais que exista uma lei que discipline especificamente a ação das instituições bancárias, ainda assim aplicar-se-á a esta relação jurídica de consumo o Código de Defesa do Consumidor, porque se trata de um fato social de consumo. Então, tudo que estamos falando justifica o que especificamente? A aplicação do Código de Defesa do Consumidor cumulativamente com outras leis que possam disciplinar outras matérias específicas. Teremos, por exemplo, uma lei que trate de seguros privados, o Decreto-lei 73/1966. Teremos a aplicabilidade de duas leis ao mesmo tempo. Ainda que apliquemos o Decreto-lei regulamentador dos seguros privados diretamente e somente nos princípios usemos CDC. Sendo fato social de consumo, deve-se aplicar o Código de Defesa do Consumidor, mesmo que só principiologicamente.

Mas há um problema. Para que tenhamos um caso em que possamos classificar um fato social como sendo efetivamente fato social de consumo, precisamos conhecer os elementos que formam o fato social de consumo. Na verdade já os conhecemos, e vamos aprofundar hoje. Só saberemos se existe relação de consumo se soubermos classificar e depurar os elementos. Quais são os elementos de uma relação jurídica de consumo? Sujeitos, objeto e o elemento teleológico. É o que vamos estudar especificamente hoje. Conhecendo-o, vamos conseguir classificar todos os fatos sociais como de consumo ou não e, naquele caso específico, saber se se aplica o Código de Defesa do Consumidor ou não.

Vamos, então, entrar no elemento teleológico. Art. 2º do CDC:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Como destinatário final. O elemento teleológico da relação de consumo se relaciona com essa expressão: destinatário final. Quem é o destinatário final numa relação de consumo. É o consumidor? Sim. Mas não é tão simples saber quem é e quem não é consumidor! Para explicar o conceito de destinatário final, temos duas teorias. São elas:

O problema é que teoria minimalista faz parecer que a tem menos importância, e a ideia não é essa. Usemos um outro conceito para a teoria: teoria minimalista, finalista ou subjetiva. Expressões sinônimas aqui.

Essas teorias explicam o conceito de consumidor sob o ponto de vista de destinatário final. Para a teoria maximalista, o consumidor é toda pessoa que retira o produto ou o serviço da cadeia de consumo, não importando qual será a finalidade a ser conferida ou atribuída ao produto ou serviço. O que significa dizer que, a partir do momento em que alguém compra aquele produto para fazer o uso dele, trata-se de um consumidor, com uma exceção: não será consumidor aquele que comprar o produto para simplesmente revendê-lo. Quem compra dez computadores para revender aqui no Brasil não é consumidor. Se, entretanto, a pessoa compra para fazer uso, então ela é consumidora.

E mais: se houver modificação ou mutação substancial no produto que está sendo adquirido, aquele que o adquiriu o produto ou serviço é considerado consumidor. Ao comprar açúcar, se você é confeiteiro, então você modificou substancialmente o produto açúcar. Vai virar sonho ou bomba de chocolate, por exemplo.

Outro exemplo é o da concessionária de carros usados. Ela tem o intuito de revender. Já o comprador particular de carro novo é consumidor, mesmo que venha a vender eventualmente. Também considera-se mutação substancial o próprio uso de um carro. Fazer uso próprio, por si só, já remove a intenção de revenda.

Imaginem uma fábrica de veículos que compra peças para montar carros. Esta é a montadora. Ela é consumidora da fábrica de peças? Sim. Teve mutação substancial, mesmo que a peça a ser utilizada no veículo em fabricação seja individualizável. A pequena dúvida que poderíamos ter aqui é que uma autopeça, como um anel elástico de motor, não se imiscui no produto final como o açúcar no doce do confeiteiro, daí pensarmos que não existe mutação substancial, mas existe sim.

E a teoria finalista? Para ela, também chamada de teoria subjetiva, importa a finalidade a ser atribuída ao produto ou serviço que está sendo adquirido. Como assim? Se aquele que adquire o produto tiver intenções não somente de revender, mas de lucrar, de qualquer modo com o produto ou serviço que está sendo adquirido, este, que tem a intenção de lucro, não será consumidor. Se houver fins lucrativos, aquele que adquiriu o produto ou serviço não será considerado consumidor.

Significa que em ambas as teorias, se há intenção de revender, o sujeito jamais será consumidor. Mas, aquele que tem, de alguma forma que não a revenda, uma finalidade lucrativa, poderá ou não considerado consumidor. Exemplo: tenho um empreendimento individual em que compro copos e cristais e revendo para empresas de buffet. Se eu for a Istambul comprar algumas peças e quiser repassá-las ao empresário do ramo de buffets, não serei considerado consumidor por nenhuma das duas teorias, afinal, a intenção é de revenda. Se, por outro lado, eu mesmo sou o empresário de buffets, e vou ao Bazar de Mahmutpaşa adquirir cálices para prestar um serviço mais refinado, eu poderei ou não ser considerado consumidor: pela teoria maximalista ou objetiva, não importa a finalidade da compra dos cálices, ainda que seja lucrativa, como de fato o é, afinal, revender é o que eu não vou fazer, mas sim prestar meu serviço de buffet. Entretanto, para a teoria minimalista ou subjetiva, como tenho finalidade lucrativa, ainda que não seja de revenda, não poderei ser considerado consumidor do lojista do Bazar de Mahmutpaşa. Isso, claro, considerando que a legislação consumerista turca seja semelhante à brasileira, e desconsiderando os procedimentos e encargos aduaneiros.

São teorias bem sutis.

Qual é aplicada no Brasil? Nenhuma das duas! A teoria aplicada é a do finalismo aprofundado, que vamos ver cinco parágrafos abaixo.

Até o ano de 2004 era aplicada no Brasil a teoria maximalista. A partir daquele ano, especificamente em virtude de um caso que envolvia uma empresa de cartões de crédito e uma grande rede de farmácias, o STJ mudou seu entendimento sobre a aplicação das teorias. Por quê? Tratava-se de uma rede de farmácias muito grande que utilizava-se de cartões de crédito. Num belo dia o sistema de cartões deu um problema, e essa empresa, que era muito grande, se aproveitou de um inciso específico do Código de Defesa do Consumidor para pleitear uma indenização milionária contra a empresa de cartões de crédito. O STJ, ao ponderar, verificou que não existia desequilíbrio na relação jurídica. Diante desse fato, o STJ viu que havia um problema muito sério com a teoria maximalista. Isso porque o simples fato de não querer estar revendendo a coisa, o cartão de crédito, tornava as coisas complicadas porque havia situações não desequilibradas e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ficava injusta. Acabava desequilibrando a situação em prol da rede de farmácias.

Entendeu, então, a Corte que não poderia aplicar a teoria maximalista. Não se pode, portanto, considerar aquele que tem a intenção de lucrar como consumidor. Essa é a teoria finalista. E se aplicou, a partir dessa data, a teoria finalista, e começaram a surgir os problemas que aduzimos.

Este foi o Conflito de Competência nº 41.056/SP. Posteriormente houve o julgamento do REsp 541.867/BA, com discussão semelhante: Empresa de Cartões de Crédito de um lado e Revendedora de Tintas de outro.

Aconteceu de um advogado recém formado adquirir um livro de Direito numa livraria e, quando arrancou o plástico, ele estava sem impressão. A intenção era fazer uma petição. Se era, então ele tinha intuito de lucro. Sem conseguir elaborar corretamente sua peça ele teve problemas em assistir seu cliente e acabou tendo prejuízo. Acionou a livraria com supedâneo no CDC. Na contestação, a livraria buscou afastar a fundamentação na medida em que o advogado, que comprara o livro com o intuito de lucrar (recebendo seus honorários advocatícios) não era consumidor, portanto não poderia valer-se das normas consumeristas.

Claudia Lima Marques, portanto, desenvolveu uma terceira teoria, que hoje é a utilizada pelo STJ. Se é a teoria utilizada pelo STJ, é a teoria que vamos usar. É a teoria do finalismo aprofundado. Todos que se utilizam de um produto ou serviço como insumo não são considerados consumidores. Porém, se no caso específico, constatar-se a vulnerabilidade do adquirente, então este que adquiriu o produto como insumo poderá ser considerado consumidor. Portanto, o que define alguém como consumidor é a vulnerabilidade em suas três espécies: fática, técnica e jurídica.

Pela teoria do finalismo puro, o advogado ou estudante de Direito que comprou um livro para elaborar uma petição é considerado consumidor? Não. Mas pela teoria do finalismo aprofundado, o estudante que elabora sua petição é considerado consumidor porque existe vulnerabilidade técnica e fática em relação à livraria.

Pessoa jurídica pode ser considerada consumidora? Claro que pode. Desde que fique comprovada, no caso concreto, a vulnerabilidade. Lembrem-se que frisamos demais o princípio da vulnerabilidade.

Classificar isto tudo é determinar a incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor. Fundamental, portanto.