Vamos
fazer uma
introdução rápida trabalhando com os elementos, e depois entrar numa
das
questões mais controvertidas de Direito do Consumidor, que é a
definição de consumidor.
Para que se possa classificar uma relação jurídica como sendo de
consumo, precisamos
saber quem é consumidor. Isso é fundamental. E não é muito simples
descobrir
quem é consumidor. Não necessariamente é quem compra várias coisas.
Prestem
atenção: relação social.
Nem toda relação social é uma relação jurídica. Mas toda relação
jurídica é uma
relação social. Como assim? A relação social pode decorrer de diversos
fatos.
Vamos andar no parque, vamos à igreja, cuidamos de nossos filhos, o que
são relações
sociais. Mas só haverá relação jurídica no momento em que a relação
social
importar para o Direito. Se a relação social não importa para o
Direito, ela
não é uma relação jurídica. E quando uma relação social importará para
o
Direito? Quando houver uma norma em abstrato que defina situações in concreto. Como funciona esse fenômeno
da juridicização? Bem simples: o legislador elege alguns fatos sociais
como
fatos de relevância, importantes, e criará uma norma para o
relacionamento
entre as partes que estão envolvidas nesse fenômeno, nesse fato. Vamos
entender.
Podemos
colocar assim: juridicização ocorre quando o
legislador
elege determinados fenômenos sociais como mais importantes e resolve
discipliná-los
por meio de normas.
Você,
correndo, ou fazendo
sua corridinha na rua, classificaria esse fenômeno como simplesmente
social ou
como um fenômeno jurídico? Social somente. Qual a norma que existe para que se ande na rua?
Existe
uma? Você precisa de tênis da Nike e Relógio Polar? Não. Mas andar de
carro é
uma relação jurídica, porque o “andar de carro” foi eleito pelo
legislador como
um fenômeno importante e, diante desse fenômeno importante, resolveu
criar
regras, em outras palavras, juridicizou. O fenômeno social pode também
ser
chamado de fato social.
Para
Savigny, a definição
de fato jurídico é bem interessante: todo o fato em que uma pessoa
exerce uma
pretensão a que outra pessoa está obrigada. Sem norma disciplinadora
não se tem
obrigação, então temos que ter pelo menos um contrato. Sem a norma
disciplinando a relação, norma obrigando a pessoa e com outra tendo a
pretensão, não temos um fato jurídico.
Fato
social, portanto,
não é igual a fato jurídico, apesar de que todo fato jurídico será um
fato
social. Este engloba aquele. O fato jurídico é um fato social
regulamentado.
Por
que isso importa para
nós? Porque todo fato social de consumo é
fato jurídico regulamentado por uma lei específica, qual seja, o Código
de
Defesa do Consumidor. E se é, podemos ter fatos sociais de
consumo que
venham a ser regulados por mais de uma lei. Existe alguma lei que
regulamente
especificamente os serviços bancários? Existe, e não é o Código de
Defesa do
Consumidor! Isso significa dizer, então, que estará excluído o Código
de Defesa
do Consumidor? Não, pois, sendo um fato social de consumo, por mais que
exista
uma lei que discipline especificamente a ação das instituições
bancárias, ainda
assim aplicar-se-á a esta relação jurídica de consumo o Código de
Defesa do Consumidor,
porque se trata de um fato social de consumo. Então, tudo que estamos
falando
justifica o que especificamente? A aplicação do Código de Defesa do
Consumidor
cumulativamente com outras leis que possam disciplinar outras matérias
específicas. Teremos, por exemplo, uma lei que trate de seguros
privados, o Decreto-lei
73/1966. Teremos a aplicabilidade de duas leis ao mesmo tempo. Ainda
que apliquemos
o Decreto-lei regulamentador dos seguros privados diretamente e somente
nos
princípios usemos CDC. Sendo fato social de consumo, deve-se aplicar o
Código
de Defesa do Consumidor, mesmo que só
principiologicamente.
Mas
há um problema. Para
que tenhamos um caso em que possamos classificar um fato social como
sendo efetivamente fato social de consumo, precisamos conhecer os elementos
que
formam o fato social de consumo. Na verdade já os conhecemos, e vamos
aprofundar hoje. Só saberemos se existe relação de consumo se soubermos
classificar e depurar os elementos. Quais são os elementos de uma
relação
jurídica de consumo? Sujeitos, objeto e o elemento teleológico. É o que
vamos
estudar especificamente hoje. Conhecendo-o, vamos conseguir classificar
todos
os fatos sociais como de consumo ou não e, naquele caso específico,
saber se se
aplica o Código de Defesa do Consumidor ou não.
Vamos,
então, entrar no
elemento teleológico. Art. 2º do CDC:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. |
Como
destinatário final. O
elemento teleológico da relação de consumo se relaciona com essa
expressão: destinatário final. Quem
é o
destinatário final numa relação de consumo. É o consumidor? Sim. Mas
não é tão
simples saber quem é e quem não é consumidor! Para explicar o conceito
de
destinatário final, temos duas teorias. São elas:
O
problema é que teoria
minimalista faz parecer que a tem menos importância, e a ideia não é
essa.
Usemos um outro conceito para a teoria: teoria minimalista, finalista
ou
subjetiva. Expressões sinônimas aqui.
Essas
teorias explicam o
conceito de consumidor sob o ponto de vista de destinatário final. Para
a
teoria maximalista, o consumidor é toda pessoa que retira
o produto ou o serviço da cadeia de consumo, não importando qual
será a finalidade a ser conferida ou atribuída ao produto ou serviço.
O que
significa dizer que, a partir do momento em que alguém compra aquele
produto
para fazer o uso dele, trata-se de um consumidor, com uma exceção: não
será
consumidor aquele que comprar o produto para simplesmente revendê-lo.
Quem
compra dez computadores para revender aqui no Brasil não é consumidor.
Se,
entretanto, a pessoa compra para fazer uso, então ela é consumidora.
E
mais: se houver
modificação ou mutação substancial no produto que está sendo adquirido,
aquele
que o adquiriu o produto ou serviço é considerado consumidor. Ao
comprar
açúcar, se você é confeiteiro, então você modificou substancialmente o
produto
açúcar. Vai virar sonho ou bomba de chocolate, por exemplo.
Outro
exemplo é o da
concessionária de carros usados. Ela tem o intuito de revender. Já o comprador particular de carro novo é
consumidor, mesmo que venha a vender eventualmente. Também considera-se
mutação
substancial o próprio uso de um carro. Fazer uso próprio, por si só, já remove
a
intenção de revenda.
Imaginem
uma fábrica de
veículos que compra peças para montar carros. Esta é a montadora. Ela é
consumidora da fábrica de peças? Sim. Teve mutação substancial, mesmo
que a
peça a ser utilizada no veículo em fabricação seja individualizável. A
pequena
dúvida que poderíamos ter aqui é que uma autopeça, como um anel
elástico de
motor, não se imiscui no produto final como o açúcar no doce do
confeiteiro,
daí pensarmos que não existe mutação substancial, mas existe sim.
E
a teoria finalista?
Para ela, também chamada de teoria subjetiva, importa
a finalidade a ser atribuída ao produto ou serviço que está
sendo adquirido. Como assim? Se aquele que adquire o produto
tiver
intenções não somente de revender, mas de lucrar, de qualquer modo com
o
produto ou serviço que está sendo adquirido, este, que tem a intenção
de lucro,
não será consumidor. Se houver fins
lucrativos, aquele que adquiriu o produto
ou
serviço não será considerado consumidor.
Significa
que em ambas as
teorias, se há intenção de revender, o sujeito jamais será consumidor.
Mas,
aquele que tem, de alguma forma que não a revenda, uma finalidade
lucrativa, poderá
ou não considerado consumidor. Exemplo: tenho um empreendimento
individual em
que compro copos e cristais e revendo para empresas de buffet.
Se eu for a Istambul comprar algumas peças e quiser
repassá-las ao empresário do ramo de buffets,
não serei considerado consumidor por nenhuma das duas teorias, afinal,
a
intenção é de revenda. Se, por outro lado, eu mesmo sou o empresário de
buffets, e vou ao Bazar de Mahmutpaşa adquirir cálices para prestar um
serviço
mais refinado, eu poderei ou não ser considerado consumidor: pela
teoria
maximalista ou objetiva, não importa a finalidade da compra dos
cálices, ainda
que seja lucrativa, como de fato o é, afinal, revender
é o que eu não vou fazer, mas sim prestar meu serviço de buffet. Entretanto, para a teoria
minimalista ou subjetiva, como tenho finalidade lucrativa, ainda que
não seja
de revenda, não poderei ser considerado consumidor do lojista do Bazar
de Mahmutpaşa.
Isso, claro, considerando que a legislação consumerista turca seja
semelhante à
brasileira, e desconsiderando os procedimentos e encargos aduaneiros.
São
teorias bem sutis.
Qual
é aplicada no
Brasil? Nenhuma das duas! A teoria aplicada é a do finalismo
aprofundado, que vamos ver cinco parágrafos abaixo.
Até
o ano de 2004 era
aplicada no Brasil a teoria maximalista. A partir daquele ano,
especificamente
em virtude de um caso que envolvia uma empresa de cartões de crédito e
uma grande
rede de farmácias, o STJ mudou seu entendimento sobre a aplicação das
teorias.
Por quê? Tratava-se de uma rede de farmácias muito grande que utilizava-se
de
cartões de crédito. Num belo dia o sistema de cartões deu um problema, e essa
empresa, que
era muito grande, se aproveitou de um inciso específico do Código de
Defesa do
Consumidor para pleitear uma indenização milionária contra a empresa de
cartões
de crédito. O STJ, ao ponderar, verificou que não existia desequilíbrio
na
relação jurídica. Diante desse fato, o STJ viu que havia um problema
muito
sério com a teoria maximalista. Isso porque o simples fato de não
querer estar
revendendo a coisa, o cartão de crédito, tornava as coisas complicadas
porque
havia situações não desequilibradas e a aplicação do Código de Defesa
do
Consumidor ficava injusta. Acabava desequilibrando a situação em prol
da rede
de farmácias.
Entendeu, então, a Corte que não poderia
aplicar a teoria maximalista. Não se pode, portanto, considerar aquele que tem
a
intenção de lucrar como consumidor. Essa é a teoria finalista. E se
aplicou, a
partir dessa data, a teoria finalista, e começaram a surgir os
problemas que
aduzimos.
Este
foi o Conflito de
Competência nº 41.056/SP. Posteriormente houve o julgamento do REsp
541.867/BA,
com discussão semelhante: Empresa de Cartões de Crédito de um lado e
Revendedora de Tintas de outro.
Aconteceu
de um advogado
recém formado adquirir um livro de Direito numa livraria e, quando
arrancou o
plástico, ele estava sem impressão. A intenção era fazer uma petição.
Se era,
então ele tinha intuito de lucro. Sem conseguir elaborar corretamente
sua peça
ele teve problemas em assistir seu cliente e acabou tendo prejuízo.
Acionou a
livraria com supedâneo no CDC. Na contestação, a livraria buscou
afastar a
fundamentação na medida em que o advogado, que comprara o livro com o
intuito
de lucrar (recebendo seus honorários advocatícios) não era consumidor,
portanto
não poderia valer-se das normas consumeristas.
Claudia
Lima Marques,
portanto, desenvolveu uma terceira teoria, que hoje é a utilizada pelo
STJ. Se
é a teoria utilizada pelo STJ, é a teoria que vamos usar. É a teoria do
finalismo aprofundado. Todos que se
utilizam de um produto ou serviço como insumo não são considerados
consumidores. Porém, se no caso específico, constatar-se a
vulnerabilidade do
adquirente, então este que adquiriu o produto como insumo poderá ser
considerado consumidor. Portanto, o que define alguém como consumidor é
a
vulnerabilidade em suas três espécies: fática, técnica e jurídica.
Pela
teoria do finalismo
puro, o advogado ou estudante de Direito que comprou um livro para
elaborar uma
petição é considerado consumidor? Não. Mas pela teoria do finalismo
aprofundado, o estudante que elabora sua petição é considerado
consumidor
porque existe vulnerabilidade técnica e fática em relação à livraria.
Pessoa
jurídica pode ser
considerada consumidora? Claro que pode. Desde que fique comprovada, no
caso
concreto, a vulnerabilidade. Lembrem-se que frisamos demais o princípio
da
vulnerabilidade.