Direito do Consumidor

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Contratação padronizada, interpretação das cláusulas contratuais e direito de arrependimento


Contratação padronizada

Quando trabalhamos com contratação padronizada estamos trabalhando com contratos de adesão. Mas essa é uma visão brasileira importada da visão francesa. Vamos começar pelo começo e saber como as coisas ficaram assim.

Quando trabalhamos com contratação padronizada temos cláusulas pré-estabelecidas, pré-formuladas pelo fornecedor e que não há liberdade de negociação. Não há um acordo prévio, uma combinação entre as partes para a formulação daquele contrato. Então, o que se faz, na verdade, é o estabelecimento de um contrato cujas cláusulas são padronizadas e oferecidas a todos aqueles que quiserem a ele aderir.

Por conta disso, o fornecedor não dá liberdade para o consumidor opinar sobre o contrato.

Estamos diante, então, de um contrato que não é paritário. Temos um contrato padronizado em que de um lado há um sujeito chamado estipulante, que é aquele que formulará as cláusulas como bem entender, sem viabilizar para o outro sujeito, o aderente, neste caso o consumidor, qualquer tipo de liberdade, de opinião sobre o contrato.

Agora vamos pegar pesado. Posição germânica: no que diz respeito aos contratos padronizados, a visão germânica é a seguinte: o que se enfoca não é o momento de celebração do contrato. Pelo Direito Germânico, os contratos padronizados não são assim chamados; temos contratos em que as cláusulas são pré-estabelecidas pelo fornecedor. Para os germânicos, nesse contrato, em que o consumidor aderente não tem liberdade para opinar, o que importa não é o momento de celebração, mas sim a fase anterior à celebração. É a fase que tem que ser destacada. O que isso significa dizer? Que, na Alemanha, o juiz irá analisar não o momento em que o consumidor está assinando, mas a intenção do fornecedor ao criar as cláusulas contratuais. Quando um juiz alemão vai analisar um contrato que rege uma relação de consumo com cláusulas pré-estabelecidas, importará a intenção do fornecedor. Note que não estamos usando a expressão “contrato de adesão”. Isso porque não existe essa expressão no Direito Germânico. O que existe na Alemanha, na verdade, é um contrato com cláusulas gerais. O que nós chamamos de contrato de adesão aqui no Brasil na Alemanha é conhecido como contrato com cláusulas gerais.

Esse é o contrato com cláusulas gerais de acordo com o Direito Alemão: o contrato com cláusulas pré-estabelecidas em que o consumidor não tem condições de opinar, apenas aceita ou rejeita, e onde se enfoca o momento pré-contratual, e não o momento da celebração que é destacado.

Todavia, temos outra doutrina, a francesa. O que diz a doutrina francesa? Ela, por sua vez, entende que o que importa não é o momento pré-contratual. Não importará tanto o que o fornecedor pensou ao elaborar aquele contrato. O que importará, de acordo com o Direito Francês, é o próprio momento da celebração do contrato, ou seja, se o consumidor, no momento em que assinou, tinha ciência daquilo que estava contratando. Aquilo que o consumidor efetivamente conhecia no momento que estabelecia a relação. Lá sim se chama contrato de adesão.

O Direito Brasileiro importou a expressão de qual ordenamento jurídico? Do francês, para o qual importa o momento da celebração do contrato. Não importa a intenção do fornecedor. Se o consumidor não tinha ciência das cláusulas contratuais, elas sequer terão validade.

A doutrina germânica não foi integralmente adotada pelo Brasil. Vamos ver adiante por que temos influência da Alemanha também.

Continuando. Se perguntarmo-nos qual seria a diferença básica entre um contrato paritário e um contrato de adesão, saberíamos dizer a diferença. O paritário é regulado pelo Código Civil, existe negociação, acordo, paridade, predisposição bilateral. No de adesão, a predisposição é unilateral do fornecedor, cabendo ao consumidor apenas aceitar ou não aquilo que está sendo oferecido.

Note que o consumidor tem liberdade de escolher dentre aquilo que o fornecedor o oferece. Daí a possibilidade de montagem de planos “customizados” em operadoras de celular, em que você aparentemente tem liberdade para determinar quantos torpedos quer enviar, quantos minutos, quantos kilobytes de dados trafegados. Para cada possibilidade, na verdade, o fornecedor tem um contrato pré-montado. E ainda assim você não tem liberdade de escolher o que você quer. O fornecedor estipula que lhe entregará o telefone “daqui a três dias”, e não “daqui a um”, muito embora você queira.

“Simbora!”
 

Contrato de dupla adesão

Existem alguns contratos de adesão que são regulamentados por órgãos do Estado. Este assunto cairá na prova. O Estado fiscalizará e preestabelecerá as próprias cláusulas de certos tipos de contrato, tendo em vista a importância social deles. Aquela potestade suprema do fornecedor ficará mitigada, relativizada. Existem contratos que se destacam no ordenamento jurídico pelo fato de que eles abarcam um interesse social que deve ser tratado quase como questão de ordem pública. Por exemplo: existem alguns contratos essenciais em nossa vida. Contrato de telefonia: todo ser humano hoje precisa se comunicar um com o outro. Não tem jeito. Você terá uma ou outra pessoa que resolve viver como ermitão, em silêncio, mas não representam nem 0,0001% da sociedade. Toda a humanidade tem que se comunicar de alguma forma. Hoje, a telefonia é vista como uma espécie de bem indispensável, fundamental. Como temos um bem que seria essencial, indispensável, fundamental, o Estado, verificando o interesse público sobre o regular funcionamento do sistema de telefonia, intervém diretamente nos contratos de telefonia!

E existem outros tipos de serviços que são considerados essenciais. São tão importantes e essenciais que o Estado brasileiro resolveu criar autarquias em regime especial cujos dirigentes ou presidentes possuem mandatos com prazo fixo e não coincidente com o do chefe do Poder Executivo, sendo proibida a demissão ad nutum deles, e recebem o nome de autarquias reguladoras. Trabalham regulando, fiscalizando um tipo de produto que é considerado essencial. A Anatel regula, fiscaliza, estabelece portarias, circulares e diretrizes para um produto considerado essencial, que é a telefonia e outros. A Aneel também regulamenta e edita portarias e circulares, mas sobre energia elétrica, outro serviço reputado essencial.

Quando temos esses bens considerados essenciais à disposição da população, teremos uma autarquia regulamentando. Essas autarquias regulamentarão de uma forma tão forte, tão preponderante que irão tirar a liberdade do fornecedor de estipular contratos.

Como é isso?

A SUSEP, a Superintendência de Seguros Privados, estabelece circulares e portarias sobre um produto considerado essencial: os seguros. O Banco Central, que também é uma autarquia, também trabalha com um produto essencial: o Sistema Financeiro. Vejam, portanto, a importância de determinados bens e produtos. Significa dizer que o fornecedor terá uma liberdade de ação muito restrita. O fornecedor então não terá liberdade, quando atua no mercado fornecendo esses tipos de produtos? É! Ele não terá a liberdade. Estamos fugindo do padrão do contrato de adesão.

E como se chamam esses contratos estabelecidos pelas agências reguladoras, pelo Bacen, pela SUSEP etc., que pode inclusive cassar o registro de uma seguradora?

Quem estabelece as condições do contrato, no Direito Germânico, são esses órgãos governamentais. A liberdade em pré-estabelecer cláusulas contratuais é muito limitada para o fornecedor. O que significa então que estamos diante de um contrato de adesão sim, mas é um contrato que tem um nome próprio: contrato duplamente de adesão, ou contrato de dupla adesão.

O que seria um contrato de dupla adesão? É aquele em que o próprio fornecedor está sujeito às cláusulas contratuais pré-estabelecidas pelo órgão fiscalizador, pelo Estado, em virtude da relevância do produto que está sendo comercializado. É padronizado, mas por quem? Pelo Estado. Por isso, a liberdade do fornecedor para estabelecer cláusulas contratuais é limitada.

E quem responde perante o Judiciário caso uma dessas cláusulas venha a ser questionada? O fornecedor ou o Estado? Vamos ver um exemplo: contrato de seguro. Existem várias empresas seguradoras que trabalham com contratos de pecúlio. Asseguram ao participante uma verba ao final do contrato. Quando o subscritor do contrato falecer, os beneficiários indicados pelo contratante têm direito de receber um “pecúlio”, que nada mais é do que um valor em dinheiro. Isso tem outro nome, certo? Não. Não é um seguro de vida. É que o contrato de pecúlio tem natureza previdenciária, e não somente securitária. O contratante pode optar por não deixar para os beneficiários, mas receber em vida. Mas a contribuição para o pecúlio é meio pequena, diferente da contribuição para a Previdência. Algo em torno de 300 reais, enquanto para a previdência contribui-se com R$ 1.000,00. Há quem acabe recebendo só 10 reais, ou 15. Não está errado, porque o que o contratante montou de capital é muito pequeno. É proporcional à contribuição. Se receber o pecúlio em vida, terá mais 30 anos usufruindo em vida. O que os segurados fazem? Ajuízam.

O problema é que as cláusulas gerais de um contrato de pecúlio são estabelecidas pelo Estado. E o que acontece com as seguradoras? Perdem um bocado na justiça. A SUSEP, que é o órgão fiscalizador, nunca foi considerada obrigada solidária. O entendimento é que isso é risco do empreendimento, o que é um absurdo. O fato de você, como empreendedor, ser demandado em juízo não deveria ser considerado risco do empreendimento. ¹

Vamos ao Código de Defesa do Consumidor.

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§ 1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.

§ 2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no § 2° do artigo anterior.

§ 3o  Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

Então olhem só: prestem atenção nesse artigo. Autoridade competente: contrato de dupla adesão ou duplamente de adesão. E a segunda parte destacada no caput? Contrato de adesão simples, inspirado na doutrina francesa.

Vamos continuar trabalhando com os contratos de adesão. Vamos, agora, para o art. 46 do CDC.

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

Existem, obviamente, mecanismos expressos no Código de Defesa do Consumidor que têm como intuito aumentar a proteção ao consumidor. O art. 46 é bem claro, bem expresso, e tem como função aumentar a proteção ao consumidor. O que traz o art. 46? Algo próximo ao que vemos no art. 4º do CDC. O princípio da transparência. O fornecedor tem que ser transparente, e deve colocar à disposição do consumidor todas as informações pertinentes aos produtos e serviços que serão fornecidos. Isso sabemos. Mas o que temos que ter em mente é que existe uma mudança diante do CDC para o momento atual. É que, antes da Lei 8078/90, o que existia era uma obrigação do consumidor de buscar a informação, enquanto o fornecedor tinha apenas o dever de colocá-la à disposição do consumidor. A partir do momento em que o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor, o fornecedor passou a ter não só a obrigação de colocar à disposição do consumidor a informação, mas também de informar. Antes o consumidor tinha que pegar a informação; hoje, o fornecedor tem que, obrigatoriamente, informar, colocar na cabeça do consumidor o que está escrito no contrato. Isso porque se não houver o cumprimento do dever de informar, as cláusulas do contrato de adesão não terão validade. Isso é importantíssimo. E aqui estamos bem em cima do momento de celebração do contrato. Se o fornecedor não cumprir com o dever de informar, e dever de informar não é simplesmente colocar à disposição a informação, mas sim falar, diretamente, explicar para o consumidor do que se trata o contrato, as cláusulas não terão validade.

Como fornecedores, como vocês fariam isso? Obter declaração expressa do consumidor de que ele teve ciência e de que foi advertido e cientificado de todas as cláusulas contratuais. Hoje, ainda há fornecedores colocando assim, impresso: “declaro que tive ciência de todas as cláusulas do contrato.” E colocam uma linha para o consumidor assinar embaixo. Isso não dá. É melhor, como fornecedor, fazer assim:

– Consumidor, você leu o contrato?
– Li.
– Está sabendo de tudo?
– Estou.
– Então declare isso.

Aí o consumidor escreve, de próprio punho, a seguinte frase, dizendo: “eu, consumidor, tenho consciência do teor de todas as cláusulas contratuais.” Aí sim teremos a liberação do fornecedor do dever de informar. A cláusula “fácil” de antes não tem força vinculativa.

Continuemos.

As cláusulas restritivas de obrigações devem ser destacadas. Vejam que interessante: teremos contratos em que, em determinadas situações, o consumidor terá seus direitos restritos. “Consumidor, você não tem direito àquilo”, ou: “você não poderá fazer isto e mais isto.” Mas essas cláusulas limitativas dos direitos dos consumidores deverão ser destacadas. Encontramos isso no CDC. Art. 54, § 4º. Vamos reler o art. 46 antes, para combiná-los.

Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

Agora sim, o § 4º do art. 54:

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

[...]

§ 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

Leiamos também o § 3º:

§ 3o  Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

O CDC estabelece até qual é o tamanho da fonte! Se não tiver impresso em fonte tamanho 12, o instrumento do contrato violará o Código de Defesa do Consumidor! Não existe mais esse subterfúgio de asterisco e letras miúdas no rodapé. Isso não pode existir mais. Ou estar-se-á violando o CDC.

Observação: a publicidade tem regras próprias; mesmo que o conteúdo dela tenha que fazer parte do contrato, a publicidade terá suas próprias normas de acessibilidade e clareza da informação. O conteúdo da proposta é que integrará o contrato, que por sua vez deverá ser redigido em fonte de tamanho pelo menos 12.
 

Interpretação das cláusulas contratuais

Até agora falamos da literalidade do Código de Defesa do Consumidor. Estamos trabalhando com aquilo que deve estar escrito. O que está escrito literalmente no CDC? Que as cláusulas devem estar expressas de forma ostensiva, clara... nada disso tem muito problema. Estamos trabalhando até agora com a proteção conferida pelo CDC mas com a literalidade da lei. Mas não é só a literalidade da lei que irá proteger o consumidor; não só a lei propriamente dita. A própria interpretação aos contratos é outra forma de se proteger o consumidor. Como funciona isso? Existe uma regulamentação geral aplicada a todos os consumidores, e ela deriva da literalidade da lei. O que significa dizer que o juiz irá ler a lei e aplicar em sua literalidade. Isso em qualquer situação, quando o consumidor sofre fato do produto, fato do serviço, quando ele se expõe a publicidade abusiva ou enganosa, em qualquer situação o juiz aplicará as condições gerais do CDC.

Todavia, quando o juiz estiver diante de um contrato de adesão, ele não aplicará somente as condições gerais. O que mais ele irá fazer? Irá interpretar o contrato e essa interpretação contratual é uma outra forma de se proteger o consumidor. Mesmo que não exista contrato. Mas, diante de um contrato de adesão, o juiz irá proteger o consumidor por meio da interpretação contratual. Como se deve interpretar um contrato de adesão? Como que nós, futuros magistrados, deveremos interpretar um contrato de adesão?

A primeira coisa é a seguinte: a interpretação de um contrato de adesão combinará o Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor. O que significa dizer que o juiz aplicará regras tanto do Código Civil quanto do Código de Defesa do Consumidor ao interpretar um contrato de adesão. Quais regras do Código Civil serão observadas pelo juiz ao interpretar um contrato de adesão?

Primeira regra: art. 112 do Código Civil Brasileiro:

Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Atende-se mais à intenção do que à literalidade do contrato. Já ouvimos isso em algum lugar. Atende-se mais à intenção do que à literalidade? Vimos que quem se importa com a intenção (do fornecedor) é o Direito Alemão. Aplica-se no Brasil a doutrina francesa integralmente? Não. Uma vez que se comprove que o fornecedor deu ciência ao consumidor de todas as cláusulas contratuais, uma vez que se comprove que o consumidor tinha efetivamente noção daquilo que assinava, agora passamos para uma segunda fase, que é a interpretação do próprio contrato. O magistrado, então, verifica se o consumidor tinha ou não ciência daquilo que assinou. Se tinha ciência, vamos para a interpretação. E agora sim, atende-se mais à intenção do que o próprio Código de Defesa do Consumidor.

A disposição do art. 112 do Código Civil tem que ser utilizada nos contratos de adesão.

Segunda regra é a do art. 113 do Código Civil de 2002: são relevantes os usos e costumes na interpretação dos contratos. Ou seja, como é que a população brasileira tem o costume de fazer negociações? Por exemplo, existe, aqui no Brasil, o instituto do cheque pré-datado? Não. Cheque, como bem sabemos, é ordem de pagamento à vista. O que significa dizer que, em qualquer situação que envolva o Direito do Consumidor, por mais que ele pague cheque pré-datado, o cheque deve ser usado à vista? Não, porque temos o costume do povo brasileiro de usar cheques pós-datados. Não é o cheque boi, claro. É relevante o uso e o costume.

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Terceira regrinha: a do art. 114, também do CC. Contratos benéficos e cláusulas de renúncia de direitos são interpretadas restritivamente. Exemplozinho: o consumidor será sobretaxado se enviar mensagens de texto para telefones do Rio de Janeiro. Está escrito no contrato de adesão essa cláusula. Até que, ontem, mandei uma mensagem para uma amiga minha de Resende-RJ, dando-lhe os parabéns por seu aniversário. E, para minha surpresa, veio a sobretaxa em minha conta de telefone. Mas espere aí, o contrato prevê que “mensagens para o Rio de Janeiro serão sobretaxas”. O que pensei, na condição de consumidor, foi que a sobretaxa era para a cidade do Rio de Janeiro, a capital do estado. E não para todo o Estado. Qual deverá ser a solução dada pelo juiz? A interpretação é restritiva, e sempre benéfica para o consumidor.

Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.

Estritamente, ou restritamente.

Há uma quarta regra, menos clara no Código Civil. Cláusulas contratuais não devem ser interpretadas isoladamente, mas em conjunto com as demais cláusulas do contrato. Significa que você não pode interpretar somente uma cláusula e abandonar todo o resto para prejudicar o consumidor. Aqui teremos uma consonância com aquilo que dissemos na regra anterior.

Quinta regra: cláusulas com duplo sentido devem ser interpretadas em atenção ao que pode ser exigido. O que significa isso? Que se temos uma cláusula ambígua, o fornecedor não pode se aproveitar para exigir no consumidor uma prestação exagerada. Ou seja, a interpretação deve ser feita de forma mais favorável ao consumidor.

E por que a cláusula tem que ser interpretada de maneira mais favorável ao consumidor? Onde está escrito isso? Isso vem do conjunto do Código de Defesa do Consumidor? Sim, mas, além dos direitos básicos previstos no art. 6º, temos, no art. 47, uma disposição expressa:

Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

Viram? Interpretamos em conjunto.

Mas há outra linha de raciocínio também. Prestem atenção: existem contratos de adesão em que, em algum momento posterior à impressão do documento, algo foi colocado por escrito à mão. O consumidor, em momento raro de privilégio, está negociando diretamente com o dono da empresa, ou com o gerente da agência, e ficam estabelecidas algumas cláusulas que foram manuscritas. A pergunta é: o que deve prevalecer? A cláusula escrita à mão, ou a impressa? A mais favorável ao consumidor, certo? Errado. Prevalece a escrita à mão. Por quê? Porque, ao fazer isso, retirou-se a adesão do contrato, e já se entrou no campo do contrato paritário. As cláusulas escritas à mão com anuência do consumidor prevalecerão sobre aquelas que são impressas, mesmo que lhe sejam menos favoráveis. Existe um acordo de vontades, e não existe mais unilateralidade, mas sim bilateralidade.

Fantástico isso. Mesmo que seja menos favorável ao consumidor.

Fechamos contratos de adesão.
 

Direito de arrependimento

Onde está previsto no Código de Defesa do Consumidor que ele tem o direito de arrepender-se das compras que foram realizadas? Art. 49.

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

A contar de quando que o consumidor pode desistir do contrato? Duas possibilidades: da assinatura do contrato, ou do recebimento do produto ou do serviço.

Você vai até a loja ruim e compra um computador. Essa porcaria desse computador vem com defeito. Você leva para casa e percebe o problema. Você volta lá e fala: “arrependi-me da compra. Devolva-me meu dinheiro.” Você não tem esse direito. O direito de arrependimento só serve para compras realizadas fora do estabelecimento. Em especial, compras por telefone, telemarketing, Internet, telegrama, sinal de fumaça. Se foi no estabelecimento, a regra não vale.

Ao comprar produto de uma loja de importação, que demora 30 dias para chegar, você pode se arrepender antes mesmo de o produto chegar até sua casa.

Certo, você recebeu o computador em sua casa, comprado pela Internet, e ele foi furtado. Você pode se arrepender da compra? Melhor ainda: você deixa o computador recém-comprado na lojeca cair no chão. Você pode se arrepender da compra? Atenção. Responder isso é difícil.

Se você é consumidor e está se relacionando com um fornecedor, por via de regra você está pagando pelo serviço. Então você estará contratando um serviço ou comprando um produto. Qual seria, então a natureza jurídica do direito de arrependimento? Serviria para serviços? É possível, mas muito raro de acontecer na prática. Trabalhemos com o que é regra, que é produto, 99% dos casos. Nem adianta trabalhar com o que seria perda de tempo. Quando você exerce o direito de arrependimento, significa que você comprou. Então a natureza jurídica do direito de arrependimento derivaria de um contrato de compra e venda. O direito de arrependimento começa já a partir de um contrato de compra e venda.

Dentro do Código Civil existe um tipo de compra e venda no art. 509, que devemos ler:

Art. 509. A venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva, ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não manifestar seu agrado.

Leram isso direitinho? Olhem que coisa interessantíssima que temos no Código Civil. Entende-se feita a compra e venda sob condição suspensiva, ainda que a coisa não tenha sido entregue. Vejam: o fornecedor entregou a coisa para o consumidor, e o contrato não se reputará perfeito enquanto o adquirente não manifestar seu agrado. Daqui tiramos a conclusão: o direito de arrependimento na verdade terá natureza jurídica de compra e venda a contento. Essa questão caiu na prova da Ordem passada, num concurso recente de procurador, em tudo quanto é prova de magistrado. É uma questão muito complexa. Antes que seja tarde: não é venda a contento! Não tem essa natureza jurídica. E no Direito do Consumidor, a natureza jurídica especificamente do direito de arrependimento não estará tipificada no Código Civil. O direito de arrependimento terá natureza jurídica própria.

Prestem atenção numa coisa: o que acontece quando, no Código Civil, o alienante entrega, por venda a contento, um produto para o adquirente? Acontece o seguinte: tenho um produto que vou entregar para Victor. Enquanto ele não disser “eu aceito”, a compra e venda não estará perfeita. Há uma cláusula suspensiva. Qual a relação jurídica de direito real entre Victor e o produto? É proprietário? Victor, enquanto não manifestada a confirmação de que se agradou com a coisa, é comodatário. É tido como mero empréstimo enquanto ele não aceitar. Significa que todos os riscos de propriedade recaem sobre o alienante, eu, enquanto Victor não disser “eu aceito”. Pensem, aqui, num apartamento anunciado por uma imobiliária. Veremos os riscos do proprietário do apartamento, e a imobiliária é a proprietária. O pretendente entra no imóvel. Só será proprietário a partir do momento em que disser: “eu aceito esse produto.” Quem pagará enquanto isso é a proprietária, e não o adquirente.

Nada disso acontece no Direito do Consumidor. Nele, quando estamos trabalhando com direito de arrependimento, temos que interpretar assim: aquele que recebeu o produto já é considerado proprietário e todos os riscos são do consumidor. Se ele deixar cair no chão ou for furtado, ele não poderá se arrepender depois. Se quebrou, ele não pode devolver porque já é considerado proprietário. Por isso não é uma compra e venda a contento, mas uma compra e venda aperfeiçoada. Isso porque na compra e venda a contento não se aperfeiçoa enquanto não manifestado o agrado.

Então, afinal de contas, o que será o arrependimento? É bem simples: é um direito potestativo e unilateral constitutivo ou formativo. Como assim? Direito potestativo é um direito assegurado independentemente da vontade da outra parte. No Brasil, quem tem o maior direito potestativo de todos? O Estado. Aqui estamos diante de um direito potestativo que é assegurado ao consumidor, independente da anuência do fornecedor.

Natureza jurídica do direito de arrependimento, portanto, é uma compra e venda resguardada por um direito potestativo unilateral constitutivo ou formativo. Por quê? Constitui, para o consumidor, um direito que não pode ser derrogado pelo fornecedor. Isso não existe dentro do Código Civil, só dentro do Código de Defesa do Consumidor.


  1. Bem neste ponto da aula o professor aproveitou para fazer uma pergunta que já deveríamos saber: alguém comprou uma televisão cujo controle remoto apresenta uma tecla com defeito. Qual é a opção dessa pessoa que adquiriu essa TV cuja tecla apresenta defeito? Pedir a substituição imediata do bem, ou abatimento proporcional do preço, ou restituição imediata da quantia paga? Prova da OAB de ontem! Primeira coisa a se observar é o prazo de 30 dias para conserto. Pulamos a “cabeça do § 1º” do art. 18 e partimos diretamente para os incisos. Isso é um erro! Você não pode pedir substituição imediata do bem, nem abatimento, nem nada, e a TV não é considerada bem essencial. O fornecedor tem o direito de consertar o produto antes de promover à substituição, restituição do dinheiro ou abatimento proporcional.