Tutela dos Direitos Difusos e Coletivos

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Enquadramento do direito material nas ações coletivas



Hoje vamos tentar ver o que talvez seja um dos pontos mais complicados na questão das ações civis públicas, que é o enquadramento de direito material dentro das ações coletivas. Como apontar um direito que está supostamente sendo violado?

Numa ação civil pública, seja qual for, temos uma estrutura com uma petição inicial normal, com seu preâmbulo, analise fática, análise jurídica, e a parte mais complexa é a identificação do direito material a ser aplicado na espécie. Temos N possibilidades que a ação coletiva permite. Qualquer direito metaindividual. Temos que demonstrar que aquela ação busca um direito metaindividual. E não existe uma definição de direito metaindividual. Não é “um conjunto de regras que rege isso e aquilo”. Dá-se pelo alcance que pretendemos dar ao Direito. Todo e qualquer campo do Direito na esfera cível pode ser dotado da metadinvidualidade. Temos que demonstrar na ação civil pública.

Ficamos um pouco presos tentando fazer essa dilação, a demonstração de que o direito tutelado tem esse alcance todo.

Alguém organizou uma festa universitária, estava pensando em algum tipo de diversão original, resolveram montar um rodeio. O organizador não gostou do preço, então contratou algumas moças mais rechonchudinhas para servir de cavalgadura. É cruel, mas é o trabalho que aceitaram. Pelas tantas, imaginem o estudante universitário, regado a cerveja, esperando sua vez. Tem gente que perde a paciência e desiste da montaria. Esse cidadão sem condições de distinguir chão e horizonte olhou para o lado, viu uma colega mais cheinha e... ayo silver! Obviamente isso deu problema. O Ministério Público paulista concluiu um inquérito civil público e propôs aos organizadores um Termo de Ajustamento de Conduta. Dois deles aceitaram, mas o terceiro não. Mas qual o direito material a tutelar? Dignidade da pessoa humana. Temos que demonstrar duas coisas fundamentais, portanto: 1) como isso viola direitos de terceiros e 2) como passar para metaindividualidade. Foi um enquadramento altamente complicado. Como fazer? A fundamentação é difícil.

Alguém maltratou quatro mulheres, que toparam a brincadeira, e não acharam que isso iria denegrir a imagem delas.

Algo parecido ocorreu com anões que serviam de bala de canhão na França. Era o trabalho deles, e claro que foi consentido. Mas o Ministério Público Francês (país pioneiro na instituição do MP) interveio mesmo assim.

Medicamentos vencidos: o que fazer? Quando precisamos de remédios, nosso tratamento muitas vezes não chega a consumir uma cartela das cápsulas que vêm na caixa. E vamos deixando numa gaveta, até que um dia, bem além do último dia de validade, a gaveta lota, quando decidimos descartar os medicamentos velhos. Mas, no lixo, os remédios podem parar no lixão. Se jogados no vaso sanitário, contaminamos o meio-ambiente. Houve uma discussão sobre como descartar medicamento vencido. E o problema é que todos têm medicamentos vencidos em casa. O direito material a se tutelar nem é difícil de precisar; estamos falando de meio-ambiente e saúde pública. Mas quem acionar? Lembrem-se do acidente nuclear em Goiânia em 1987, em que uma máquina de radioterapia foi descartada contendo césio 137. Descarte inadequado! Mesma discussão hoje em relação aos remédios.

Há alguns anos, a Nestlé lançou uma promoção chamada “Nestlé no brasileirão”. Os consumidores tiravam o Código de barras e trocavam por ingressos de jogos. Flamengo x Atlético-PR no Rio, e outros. Nesses jogos que a Nestlé promoveu, houve um jogo do Flamengo em que o time tomou uma punição do Superior Tribunal de Justiça Desportiva e teve que jogar a portas fechadas. E os ingressos? Foram ajuizadas ações individuais contra a Nestlé, que teve que ressarcir os consumidores. Em algumas pedia-se condenação até em dano moral. Se raciocinarmos em ações individuais, poderiam chegar a 15 mil. Tudo isso poderia ser resolvido com uma única ação civil pública.

E no show da Shakira frustrado pela chuva forte no primeiro semestre de 2011? O que estava em discussão era o Direito do Consumidor. Direito de assistir ao show. A caracterização específica, entretanto, é de extrema complexidade.

A recente briga entre punks e skinheads em São Paulo poderia gerar um inquérito civil público? Depende do organizador do evento e das circunstâncias. E se a briga tivesse sido dentro do estabelecimento? Tudo poderia ser diferente.

Nessas horas lembramos dos seguranças de boate que reiteradamente batem nos clientes. Houve uma série de sete casos. Há um direito metaindividual sendo violado? Se tomássemos um dos casos isoladamente não. Mas, se a prática se transformasse em reiterada, como aconteceu, estabelecemos um parâmetro para tentar resolver. Portanto, quando houver violação pontual a direito, se a prática se tornar corriqueira, poderemos notar uma situação de violação que ultrapassa a individualidade e passa para a metaindividualidade. Neste momento, caberá ação civil pública.

Por exemplo, os bueiros da Light no Rio de Janeiro. E a segurança? Na primeira ocorrência, dificilmente a questão seria reconhecida como metaindividual, pois a empresa poderia alegar que a questão foi pontual, isolada. Mas de repente pipocam bueiros a cada esquina, e já são vários os mortos e feridos. O Ministério Público do Rio de Janeiro já sabia qual era o direito material a ser tutelado: vida, segurança e integridade física. O que fez? Ação civil pública imediatamente? Não. Termo de Ajustamento de Conduta. Propôs à Light que vistoriasse seus bueiros e, em caso de novas explosões, a empresa teria que pagar R$ 100 mil de indenização para um fundo qualquer.

Tudo isso serve para mostrar que é o MP quem define qual é o direito material. Sem isso, ele sequer consegue apresentar um esboço de ação civil pública. É uma tarefa muito difícil.

A Defensoria Pública é legitimada para ajuizar ação civil pública? Sim. Em que casos? Temos que conjugar o direito tutelado com a lei que rege o funcionamento da Defensoria Pública. É mais comum que o proprietário de carro de 15 anos seja hipossuficiente. Claro que há algumas Mercedes anteriores a 1996, mas a maioria dos veículos com esse tempo de estrada são latas. Hipoteticamente, se vários carros velhos começarem, de uma hora para outra, a dar problemas, ou se houver uma multiplicidade de donos de carros com mais de 15 anos sendo cobrados do IPVA, a Defensoria moverá a ACP. Difícil é determinar quais são os atingidos.

Discute-se hoje o direito ao uso e preservação do vernáculo. A língua portuguesa é o idioma oficial do Brasil (Constituição, art. 13), mas há uns meses foi distribuído com a chancela do MEC um livro de português para a educação básica, com a novidade de legitimar erros de concordância, argumentando que não existe mais “certo e errado”, mas “adequado e inadequado para determinadas situações”. A distribuição desse livro poderá, em tese, ser questionada em ação civil pública.

O mesmo se a distribuição, também pelo MEC, do material didático para erradicação da homofobia (kit gay) fosse levada a cabo.¹

Devemos, no final das contas, pensar: qual o direito material? Se individual, como esse direito se transforma em metaindividual? Assim será cobrado em prova. A ideia é fazer-nos pensar, mesmo que haja múltiplas respostas. Procurem em recentes provas do concurso de promotor, procurador, defensor público...


  1. Neste caso, pouco provavelmente haveria uma ação civil pública questionando a distribuição do kit, pois o demandado seria a União, daí que a competência seria do Ministério Público Federal, que, por acaso, é o órgão que está protagonizando a tendência atual em ajuizar ações visando à promoção dos direitos homossexuais.