Hoje vamos tentar ver o
que talvez seja um dos pontos mais complicados na questão das ações civis
públicas, que é o enquadramento de direito material dentro das ações coletivas.
Como apontar um direito que está supostamente sendo violado?
Numa ação civil pública,
seja qual for, temos uma estrutura com uma petição inicial normal, com seu preâmbulo,
analise fática, análise jurídica, e a parte mais complexa é a identificação do
direito material a ser aplicado na espécie. Temos N possibilidades que a ação
coletiva permite. Qualquer direito metaindividual. Temos que demonstrar que
aquela ação busca um direito metaindividual. E não existe uma definição de
direito metaindividual. Não é “um conjunto de regras que rege isso e aquilo”. Dá-se
pelo alcance que pretendemos dar ao Direito. Todo e qualquer campo do Direito na
esfera cível pode ser dotado da metadinvidualidade. Temos que demonstrar na
ação civil pública.
Ficamos um pouco presos tentando
fazer essa dilação, a demonstração de que o direito tutelado tem esse alcance
todo.
Alguém organizou uma
festa universitária, estava pensando em algum tipo de diversão original, resolveram
montar um rodeio. O organizador não gostou do preço, então contratou algumas
moças mais rechonchudinhas para servir de cavalgadura. É cruel, mas é o
trabalho que aceitaram. Pelas tantas, imaginem o estudante universitário,
regado a cerveja, esperando sua vez. Tem gente que perde a paciência e desiste
da montaria. Esse cidadão sem condições de distinguir chão e horizonte olhou
para o lado, viu uma colega mais cheinha e... ayo silver! Obviamente isso deu problema. O Ministério Público
paulista concluiu um inquérito civil público e propôs aos organizadores um Termo
de Ajustamento de Conduta. Dois deles aceitaram, mas o terceiro não. Mas qual o
direito material a tutelar? Dignidade da pessoa humana. Temos que demonstrar duas
coisas fundamentais, portanto: 1) como isso viola direitos de terceiros e 2) como
passar para metaindividualidade. Foi um enquadramento altamente complicado.
Como fazer? A fundamentação é difícil.
Alguém maltratou quatro
mulheres, que toparam a brincadeira, e não acharam que isso iria denegrir a
imagem delas.
Algo parecido ocorreu com
anões que serviam de bala de canhão na França. Era o trabalho deles, e claro
que foi consentido. Mas o Ministério Público Francês (país pioneiro na
instituição do MP) interveio mesmo assim.
Medicamentos vencidos: o
que fazer? Quando precisamos de remédios, nosso tratamento muitas vezes não
chega a consumir uma cartela das cápsulas que vêm na caixa. E vamos deixando
numa gaveta, até que um dia, bem além do último dia de validade, a gaveta lota,
quando decidimos descartar os medicamentos velhos. Mas, no lixo, os remédios podem
parar no lixão. Se jogados no vaso sanitário, contaminamos o meio-ambiente. Houve
uma discussão sobre como descartar medicamento vencido. E o problema é que
todos têm medicamentos vencidos em casa. O direito material a se tutelar nem é
difícil de precisar; estamos falando de meio-ambiente e saúde pública. Mas quem
acionar? Lembrem-se do acidente nuclear em Goiânia em 1987, em que uma máquina
de radioterapia foi descartada contendo césio 137. Descarte inadequado! Mesma
discussão hoje em relação aos remédios.
Há alguns anos, a Nestlé lançou
uma promoção chamada “Nestlé no brasileirão”. Os consumidores tiravam o Código
de barras e trocavam por ingressos de jogos. Flamengo x Atlético-PR no Rio, e
outros. Nesses jogos que a Nestlé promoveu, houve um jogo do Flamengo em que o
time tomou uma punição do Superior Tribunal de Justiça Desportiva e teve que
jogar a portas fechadas. E os ingressos? Foram ajuizadas ações individuais
contra a Nestlé, que teve que ressarcir os consumidores. Em algumas pedia-se
condenação até em dano moral. Se raciocinarmos em ações individuais, poderiam
chegar a 15 mil. Tudo isso poderia ser resolvido com uma única ação civil
pública.
E no show da Shakira
frustrado pela chuva forte no primeiro semestre de 2011? O que estava em
discussão era o Direito do Consumidor. Direito de assistir ao show. A
caracterização específica, entretanto, é de extrema complexidade.
A recente briga entre
punks e skinheads em São Paulo poderia gerar um inquérito civil público? Depende
do organizador do evento e das circunstâncias. E se a briga tivesse sido dentro
do estabelecimento? Tudo poderia ser diferente.
Nessas horas lembramos
dos seguranças de boate que reiteradamente batem nos clientes. Houve uma série
de sete casos. Há um direito metaindividual sendo violado? Se tomássemos um dos
casos isoladamente não. Mas, se a prática se transformasse em reiterada, como
aconteceu, estabelecemos um parâmetro para tentar resolver. Portanto, quando
houver violação pontual a direito, se a prática se tornar corriqueira,
poderemos notar uma situação de violação que ultrapassa a individualidade e
passa para a metaindividualidade. Neste momento, caberá ação civil pública.
Por exemplo, os bueiros
da Light no Rio de Janeiro. E a segurança? Na primeira ocorrência, dificilmente
a questão seria reconhecida como metaindividual, pois a empresa poderia alegar
que a questão foi pontual, isolada. Mas de repente pipocam bueiros a cada
esquina, e já são vários os mortos e feridos. O Ministério Público do Rio de
Janeiro já sabia qual era o direito material a ser tutelado: vida, segurança e
integridade física. O que fez? Ação civil pública imediatamente? Não. Termo de
Ajustamento de Conduta. Propôs à Light que vistoriasse seus bueiros e, em caso
de novas explosões, a empresa teria que pagar R$ 100 mil de indenização para um
fundo qualquer.
Tudo isso serve para
mostrar que é o MP quem define qual é o direito material. Sem isso, ele sequer
consegue apresentar um esboço de ação civil pública. É uma tarefa muito
difícil.
A Defensoria Pública é
legitimada para ajuizar ação civil pública? Sim. Em que casos? Temos que
conjugar o direito tutelado com a lei que rege o funcionamento da Defensoria
Pública. É mais comum que o proprietário de carro de 15 anos seja
hipossuficiente. Claro que há algumas Mercedes anteriores a 1996, mas a maioria
dos veículos com esse tempo de estrada são latas. Hipoteticamente, se vários
carros velhos começarem, de uma hora para outra, a dar problemas, ou se houver
uma multiplicidade de donos de carros com mais de 15 anos sendo cobrados do
IPVA, a Defensoria moverá a ACP. Difícil é determinar quais são os atingidos.
Discute-se hoje o direito
ao uso e preservação do vernáculo. A língua portuguesa é o idioma oficial do Brasil
(Constituição, art. 13), mas há uns meses foi distribuído com a chancela do MEC
um livro de português para a educação básica, com a novidade de legitimar erros
de concordância, argumentando que não existe mais “certo e errado”, mas
“adequado e inadequado para determinadas situações”. A distribuição desse livro
poderá, em tese, ser questionada em ação civil pública.
O mesmo se a
distribuição, também pelo MEC, do material didático para erradicação da
homofobia (kit gay) fosse levada a cabo.¹
Devemos, no final das
contas, pensar: qual o direito material? Se individual, como esse direito se
transforma em metaindividual? Assim será cobrado em
prova. A ideia é fazer-nos pensar, mesmo que haja múltiplas respostas. Procurem
em recentes provas do concurso de promotor, procurador, defensor público...