Tutela dos Direitos Difusos e Coletivos

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Interesses público-privados e metaindividuais

Na semana passada falávamos sobre Direito e Economia.

Como falávamos, de cada conduta humana, ou cada decisão que o homem tomar, um efeito será produzido. É o que chamamos de trágicas escolhas, como descrevemos na aula passada. Essas trágicas escolhas irão gerar um resultado, que pode ter maiores ou menores conseqüências. Precisamos aprender a colocar isso na balança. Eventualmente, quando essa conseqüência não é aquela desejada, ou o resultado tem um fator externo, muitas vezes vamos acabar numa ação judicial. Um exemplo é o casamento, mas poderia ser qualquer outra atividade. O casamento é um exemplo, mas não a relação matrimonial em si.

Quando temos um casamento, primeiro pensamos numa companheira, que parece ser a pessoa ideal de nossa vida. O raciocínio imediato, se quero casar, é propô-la em casamento, e compro um par de alianças, o que significa comprometimento, não a garantia do casamento, mas a simbologia.

Depois das alianças, o próximo passo é organizar a festa! E na festa tem música, que tem pagamento para o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Quando entramos na faculdade, pensamos que queremos nos formar. Imagine se na festa de formatura não forem tocadas as músicas que queremos que toque. Quem será responsável? O DJ? Não, mas sim quem contratou o DJ. Para quem apontar os dedos? E se não tinha banda para aparecer? Isso eventualmente pode gerar problema. Quantas são as noivas abandonadas na porta do altar? Noivos rápidos e velozes que saem correndo? Enfim. Certas coisas vão acabar, inevitavelmente, na justiça. É o efeito!

Escolhemos uma coisa, praticamos um ato, ato esse que gera consequências em nosso universo e no de outras pessoas também. Essas pessoas podem ser atingidas de tal forma que pretendam recompor-se dos danos.

Ao olhar para um pingüim de geladeira, sob a forma de animação, isso gera algum problema? Qual o potencial dessa animação? Quem está fadado a se apaixonar por um simpático pingüim de geladeira? Pode causar dano a alguém? Há um prejuízo metaindividual, a um todo, a uma coletividade? Evidentemente que não.

Agora uma propaganda eleitoral em que o candidato se apresenta em um motel com uma mulher. Há algo além de mau gosto nessa propaganda? Ou na propaganda da Mulher Pera ou Tiririca? Imaginem se há violação a direitos. Há? Reflita, porque vamos deixar para discutir depois. É o propósito destas primeiras aulas: levantar situações que eventualmente se desdobraram em violação de direitos.

Excluindo o riso coletivo provocado pela confusa cantora Vanusa, temos hoje a propaganda dos Pôneis Malditos. Na verdade, a propaganda é da Nissan, mas muitos se esqueceram. A propaganda pode causar prejuízo a terceiros? Individualmente ou coletivamente? Parece uma inocente propaganda boba com uma pequena animação. Pois bem, a propaganda está sendo questionada no CONAR. É um órgão não público, mas uma entidade composta pelas empresas de propaganda, publicidade e telecomunicações que autorregulamenta o setor, daí o nome: Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. O órgão recebeu cerca de 30 denúncias. Isso porque nós nos tornamos politicamente chatos. Ela faz uma associação indevida de personagens do universo infantil à palavra "maldito". A associação dos dois é inadequada para crianças. Por isso a propaganda deveria ser retirada, não poderia ser veiculada. Significa que não se pode veicular propagandas que “fiquem”. A criança será influenciada pela música? O que poderia acontecer? Passar a dizer a palavra “maldito”? Tem uma conotação tão ruim a ponto de prejudicar direitos coletivos ou metaindividuais, ou transindividuais, em que a pessoa, de certa forma, olha para a propaganda e diz que será influenciado. Mas passa no horário nobre a propaganda do Jefferson Camilo e ninguém reclama. Significa que, com o tempo, aprendemos o que é o excesso, enquanto estamos ganhando mais consciência jurídica e política.

Digamos que o CONAR deixe veicular. O Ministério Público ajuizará alguma ação? Digamos que sim. A partir daí, teríamos que imaginar também o Ministério Público intervindo em várias produções artísticas, até mesmo em shows da Ivete Sangalo: “vou te comer, vou te comer!” Há algo do mal nessa música? Nunca se viu mal algum na ideia centenária do Lobo-Mau-comer-a-Chapeuzinho. Cá entre nós, o Lobo Mau é um personagem do universo infantil. Há erotização, não necessariamente na letra, mas no complexo artístico. Imaginem seus filhos dançando isso! Temos, agora, uma suposta sociedade do terceiro milênio querendo proibir esse tipo de coisa. A música da Ivete, então, viola direitos? Pode ser que sim.

Outro quadro para se refletir sobre a violação ou não a direitos metaindividuais são aqueles de pegadinhas em que, quando alguém vai se trocar no vestiário, ou tomar banho num banheiro público, alguém passa uma cobra por cima da parede do box.

Atirei o pau no gato:

                C

Atirei o pau no gato-to

      Dm   G7

Mas o gato-to

        C      C7

Não morreu-reu-reu

     F     F#º

Dona Chica-ca

    C

Admirou-se-se

      G7

Do berro

                    C

Do berro que o gato deu:

Miau!

A música é ofensiva? Deve-se haver discernimento entre o exagero e a intenção de apropriar-se do universo da criança.

Quando as relações falham em algum momento, a consequência que podemos ter é a do processo judicial. Mas temos visto cada vez mais as relações falharem, daí a judicialização. Ao efeito dessa escolha é a reação em cadeia. O que acontece? Processos na prateleira. Numa vara judicial é fácil encontrar sete mil. Nossa quantidade de processos é muito diferente de outros países? Só há crise quando estamos sendo ineficientes. Se tenho capacidade de gerenciar 10 milhões de processos/ano, e gerencio adequadamente, não teremos retenção processual. Mas e sem a capacidade? Qual a origem dos direitos metaindividuais e das ações coletivas; o que ambos buscam resolver? A origem é a crise do processo. Retroage à Constituição de 1988, em que nem o Estado nem os particulares litigavam tanto. Era bem menos voraz a sanha litigiosa. Com a Carta Cidadã, tivemos uma mudança de paradigma. Agora, buscam-se os próprios direitos. O Presidente Sarney foi reflexo da abertura política. Assume a presidência por conta da morte de Tancredo, adquirimos maior liberdade, mas é uma liberdade sem consciência. O que acontece é que Sarney baixa um plano econômico, com congelamento de preços, retirada da carne do mercado, para depois retornarem mais caras. Daí surgiram as donas-de-casa do Sarney. Iam ao supermercado, gritavam para a SUNAB, que multava o estabelecimento para voltar ao preço anterior.

Com a Constituição de 1988, esse arcabouço jurídico começa a aparecer. Principalmente em direitos especiais. Vamos assim chamar o Direito Ambiental, o Direito do Consumidor, o instituto dos danos morais, novos institutos bons. Menos de dois anos depois vamos ter a implementação do Código de Defesa do Consumidor. Isso tudo gera um aumento na conscientização da população, que é instigada cada vez mais a litigar. Tanto que vem a Lei dos Juizados Especiais, a Lei 9099/1995. O que é um Juizado Especial? Local de resolução de problemas pequenos, sem necessidade de advogados. Mas tem um problema: ninguém pensou nisso antes. As pessoas querem ganhar os maiores benefícios, e começam a litigar, vêem que a coisa é gratuita, vêem que terão poucas custas, e banalizam o Judiciário. O Judiciário não possui ferramentas para punir as pessoas; na verdade tem, mas não as usa. O resultado é a chamada ineficácia total. Temos uma série de processos entrando e poucos sendo julgados. Com o passar dos anos, esses processos que são ajuizados vão se transformando em verdadeiras pilhas. Até por causa de nosso sistema recursal. Num Processo Civil podemos interpor, tecnicamente, infinitos recursos. Enquanto a ação de conhecimento estiver em trâmite, para cada decisão um agravo de instrumento. Da sentença caberá apelação cível. Do acórdão, embargos infringentes e recurso especial e recurso extraordinário. Isso num único processo. Vejam o volume de recursos. Para cada ação, quantos recursos? A sociedade não acompanhou isso. A sociedade banalizou muitas práticas.

Danos morais por não pagamento de verbas rescisórias. Isso é motivo? Na outra ponta há as empresas, e fornecedores de serviços, que muitas vezes não estão nem aí para o consumidor, para o usuário. “Quem não estiver satisfeito que procure a justiça” – essa é a mentalidade. O cidadão procura. Todo domingo vemos queixas em programas jornalísticos. Vemos que as maiores responsáveis são empresas telefônicas, de cartão de crédito, aéreas e bancos. Há jurisprudência consolidada de que não se pode enviar cartão para a residência das pessoas. O valor da pena é simbólico em relação ao que se pode angariar enviando indevidamente os cartões. Para quem litiga o processo é barato. O que deveria ser feito, por exemplo, é encarecer o processo para o sucumbente.

A Conab está na mídia, que tem uma dívida com o fundo de pensão de seus empregados de 320 milhões de reais. Era uma dívida questionável? Não, era inclusive representada por uma confissão de dívida. Quando foi cobrada, ela disse que não pagaria. O que faz o fundo de pensão? Tem um débito. Restou recorrer ao Judiciário. Seis anos depois foi resolvida a ação, com o resultado de... pagar os R$ 320 milhões! E o juiz fixou em R$ 3 mil os honorários advocatícios, o que corresponde a R$ 46,00 por mês. A pergunta é: na próxima vez, a Conab deixará de pagar suas dívidas? Sim! Pegando os 320 milhões no mercado financeiro, ela atropela em pouquíssimo tempo os R$ 3 mil pagos de honorários advocatícios. A decisão judicial não tem o papel pedagógico. Lá na frente outro processo será ajuizado. O resultado prático é engordar essa crise.

Outro problema: o Conselho Nacional de Justiça resolve entrar em cena. “O Judiciário está aqui para servir!” Então nota que o volume é um pouco mais elevado do que parecia e resolve fazer o quê? Nova campanha: “Não litiguem! Conciliem!” Estabeleceram as metas, que deram mais problemas: gerar obsessão para julgamentos mais “eficazes”. Na ânsia por mais celeridade, mais lesões a direitos por não haver cuidado na análise de cada pretensão.

Exemplo a ser seguido é o norte-americano, em que não vale a pena ir até o final da ação.