Tutela dos Direitos Difusos e Coletivos

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Inquérito civil público


É a ferramenta de investigação administrativa promovida pelo Ministério Público. Nele, o MP busca apurar os fatos relacionados a um determinado evento, bem como suas responsabilidades. O inquérito civil não é nada além de uma peça de investigação. Assim como o inquérito penal. Só que o inquérito civil é muito mais lento do que o inquérito penal. Não há, por exemplo, a figura do réu preso. É mais uma peça de convencimento do próprio Ministério Público, em que busca averiguar uma denúncia ou algo que tenha ocorrido. Recentemente, no caso do Toddynho, que ganhou fama por causa de um pequeno erro, mas que fez com que consumidores passassem mal e queimassem a boca depois de tomar. O professor não está certo se se deve abrir um inquérito civil ou se propor um termo de ajustamento de conduta. Descobriu-se, entretanto, que havia muita coisa errada. A Pepsico, empresa fabricante do Toddynho, admitiu que o produto foi feito não com leite achocolatado, mas com água com detergente. Em vez de haver uma contaminação clara, o que houve foi envase automático de água com detergente. A empresa não possui uma fábrica para cada produto, mas uma para vários. Então, na mesma linha de produção, para trocar do processo de produção do produto A para o produto B, lava-se a máquina. Pode ter sido aí o erro, ou então foi que lavaram até demais. O envase das primeiras unidades não foi feito com leite achocolatado. O leite, que veio depois, acabou servindo para limpar o maquinário. Mas ninguém percebeu. Não percebendo, o produto chegou às mãos do consumidor. E, nas mãos dele, ele não irá espremer para ver se há espuminha.

Claro que não sabemos exatamente o que aconteceu, o que temos aqui são suposições.

A Pepsico disse que só foram envasadas 80 unidades com problema. De qualquer jeito, “eu não estou mais tomando Toddynho” – desabafa o professor. E complementa: “vai que uma das 80 está na caixa que eu comprei!”

Sabemos que a Pepsico não fabrica só esse produto. Será que aconteceu com a Pepsi Cola, H20H, Gatorade, Aveia Quaker ou qualquer outro? Imaginem, portanto, que a coisa pode fugir de controle.

E como o Ministério Público pode apurar a responsabilidade? É o caso mais simples. Temos um fabricante, e o problema está localizado lá. Parece, portanto, que não precisamos de um inquérito civil público para chegar a alguma conclusão. É um caso fácil. Vamos para o TAC ou vamos à ação civil pública diretamente.

Agora existem casos mais complexos que demandam mais investigação. É o caso do Shopping Center Norte, em São Paulo, onde se detectou a presença de gás metano em concentração maior do que o normal na atmosfera interior do prédio, e levantou-se a possibilidade de explosão. Indagou-se se o Shopping fora mesmo construído sobre a área de um aterro sanitário, e se o CH4 era originário do lixo ali depositado. Não é fácil haver uma explosão, e determinar se existe responsabilidade e de quem é não é fácil. Temos, portanto, que passar por essa peça, que é o inquérito civil público, que visa à busca de elementos para a propositura de ação civil pública ou ação coletiva. No TAC, o Ministério Público pode partir de uma presunção, enquanto na ação civil pública ele já deve dispor de elementos suficientes para o convencimento do juiz, produzindo a prova antes ou durante a instrução. O Ministério Público tem que dispor de elementos concretos para elaborar a ação civil pública. Mas é o MP, então dá-se a ele a peça investigatória. Em outras palavras, o objetivo do inquérito civil público é o instrumento de colheita de elementos para embasar uma ação civil pública ou ação coletiva.

O inquérito civil busca a materialidade e autoria do fato. O inquérito civil público serve para a determinação da autoria e materialidade. O termo de ajustamento de conduta, por sua vez, é uma das alternativas ao final de um inquérito civil. Observa-se o fato e a responsabilidade por ele. A alternativa ao TAC é a ação civil pública. Não há para onde correr se ficar comprovado o fato e sua responsabilidade. Uma saída exclui a outra? Sim. O TAC exclui a ação civil pública e vice-versa. Porém, pode-se propor o termo e, se ele não for aceito, parte-se para propositura da ação civil pública.

Se uma associação colegitimada para a ação civil pública ajuizar a ACP contra um responsável que já tenha firmado um TAC com o Ministério Público, se estamos tratando de direitos metaindividuais, os colegitimados não são titulares do direito material, mas sim do direito processual. Uma vez firmado o TAC, isso irá resolver as ações civis. A questão já estará resolvida. Se estamos no campo de incidência da atuação do Ministério Público, é provável que outro colegitimado ajuíze ação civil pública ou ação coletiva. Se a matéria está com o Ministério Público, é mais fácil deixar com ele, que tem mais recursos, do que outro colegitimado se aventurar com uma ação civil pública ou ação coletiva. Na prática, o que vemos é uma união dos colegitimados, numa ordem de preferência. O Ministério Público sempre precede aos demais. Se o MP não toma providências, os outros colegitimados tomarão. Eles ajuízam ações cautelares e ficam aguardando a ação principal pelo Ministério Público. Os colegitimados até ajuízam a ação principal, mas num quantitativo bem baixo, menos de 5% do total.

Enquanto o inquérito civil tramita no Ministério Público, é provável que tenhamos outro colegitimado interessado em ajuizar a ação. É pouco provável que queira, uma vez que o Ministério Público já está à frente do problema e com seus recursos mais fortes, mas nada impede.

Se um TAC já tiver sido celebrado quando uma ação civil pública é ajuizada contra você, o que você deve fazer é pedir a extinção do processo com resolução de mérito pela existência de transação entre as partes. Art. 269, inciso III do Código de Processo Civil:

Art. 269. Haverá resolução de mérito:

[...]

III - quando as partes transigirem;

[...]

Algo levado muito a sério hoje é o glúten nos alimentos. O fornecedor deverá informar se o produto contém ou não glúten. E nisso há uma questão limítrofe, entre o “conter” e o “não conter” glúten. Imagine uma lata de Nescau, produto que, pelo menos até certo tempo atrás, não continha glúten. Imagine também a situação hipotética em que o pó do achocolatado é transportado de caminhão, em caixas maiores, antes do enlatamento final. E, num desses transportes, a caixa de Nescau está sendo transportada junto com outro gênero alimentício, sendo que este contém glúten, quando o caminhão acerta um buraco e as caixas se desorganizam no compartimento de carga, fazendo com que grãos com glúten caiam sobre o pó de Nescau, que não tem a substância. Detectado o acidente, os responsáveis limpam o que podem e ainda assim enlatam o Nescau. Pronto, temos Nescau com glúten! Ou pelo menos com traços de.

Um consumidor que não pode com glúten ingere um leitinho gelado com o pó adulterado e tem problemas. Irritado, comunica à Promotoria de Defesa do Consumidor do Ministério Público. O que o órgão faz? Primeiro, averigua a situação com um inquérito civil público. Descobrindo o ocorrido, o representante do MP se reúne com o representante da Nestlé e propõe o TAC, para obrigar a gigante de alimentos a alertar sobre a presença, ainda que incidental, de glúten naquele lote. Mas o que fazer? “Contém traços de glúten”? “Contém pequena concentração de glúten que acidentalmente caiu nos ingredientes deste produto”? É inviável para a empresa fazer isso. De qualquer jeito, um acordo é atingido, e a ação civil pública fica dispensada.

Só que, enquanto o MP negociava com a Nestlé, um consumidor celíaco, sem ideia do que estava sendo ajustado, também ingere Nescau daquele lote. Por acaso, o consumidor é membro influente de uma associação de defesa do consumidor, ou consegue, com sucesso, se fazer ouvir por uma. A associação, que é colegitimada para a propositura de ação civil pública, toma a dianteira e, ignorando o fato de um TAC estar sendo delineado naquele momento, ajuíza ação. E agora? Sabemos que o TAC afasta a ação civil pública, mas só se do próprio Ministério Público, já que o TAC é a alternativa à ação civil pública e vice-versa. Se o Ministério Público resolver propor um TAC que for aceito, ele próprio não poderá desistir da avença que ele mesmo propôs para ajuizar uma ação civil pública. Porém, outro colegitimado poderá. E como ficará essa situação?

O TAC alheio não é resolutivo, então o professor entende que o impedimento de ajuizar ACP não se aplica à ação ajuizada pelo colegitimado, mesmo se houver a mesma causa de pedir e pedido semelhante. Isto é, se o Ministério Público celebrou um TAC com a empresa responsável, a associação de consumidores nada terá a ver com isso, e poderá propor sua própria ação civil pública. E o que deve a empresa fazer caso seja demandada por um outro colegitimado logo após ter celebrado TAC com o MP? Justamente invocar o inciso III do art. 269 do CPC, e pedir a extinção do processo com julgamento do mérito, pois a parte, a empresa, transigiu em relação àquela pretensão de reconhecer a culpa e passar a advertir os consumidores sobre os traços de glúten.

Outra coisa que o Ministério Público pode fazer é pedir a realização em juízo de audiência pública, como ocorre nas ações diretas de constitucionalidade no Supremo. Na verdade, o professor entende a audiência pública como inserida no rol dos atos do inquérito civil, e não já no procedimento judicial. Audiência pública virou algo bonito, que hoje está na moda. Quem deve realizá-las mesmo é o Legislativo, que deve debater o máximo possível sobre a matéria a ser legislada, ou o Executivo, sobre as políticas públicas a adotar, ou então os órgãos reguladores. Entretanto, hoje até o TST, que seria o órgão obrigado a julgar, está fazendo audiência pública. O professor acha estranho que um tribunal realize audiência pública para resolver uma questão complexa submetida ao Judiciário. O julgador deveria se manifestar nos autos e não fora dele. Se a discussão é sobre terceirização, deve se pronunciar declarando-a lícita ou ilícita. É essa a atribuição do tribunal, e só dele, e não das pessoas participantes da audiência pública. É o tribunal que deverá analisar a lei e a Constituição.

O Ministério Público faz audiências públicas, mas elas estão no intuito fiscalizador. São motivadas por denúncias recebidas pelo órgão.

Uma das denúncias recebidas é a questão das propagandas de veículos. Um exemplo é uma propaganda em meio estático mesmo, uma página dupla numa revista. Era do Hyundai Azera, e continha várias informações técnicas na parte de baixo, mas em letras não tão fáceis para todos os consumidores lerem. O que diz o Código de Defesa do Consumidor? A informação tem que ser clara, objetiva, precisa e ostensiva. Letras pequenas ensejam, ao menos, uma representação no Conar ou mesmo uma ação coletiva.

Outra coisa é a publicidade sazonal dos ovos de páscoa. De quem seria a culpa se crianças que pediram aos pais para comprarem determinado ovo, só porque vem um brinquedo de brinde, daí haver a associação da marca de brinquedos à marca de chocolate, começarem a ter problemas com o consumo excessivo de chocolate? Por isso necessita-se da audiência pública para apurar a responsabilidade, se dos pais, dos pais, dos fornecedores, dos comerciantes... Se o Ministério Público chegar à conclusão de que a associação das duas marcas faz mal às crianças, então ele poderá propor o TAC ou ajuizar a ação civil pública.

Essa é a finalidade do inquérito civil público. Procurar provas, esclarecer, buscar soluções.

É um procedimento em que não há o contraditório. Pelo menos não há previsão do contraditório na lei. Estabelece-se o contraditório quase sempre, contudo. Na prática, o que vemos é o Ministério Público pedindo informações e as empresas prestando e dando seus motivos. Isso é, de certa forma, o contraditório. Portanto não se tem uma defesa formal, uma contestação. Mas o investigado se manifesta. Nem sempre se manifesta em todas as fases, em todas as etapas do procedimento. O que temos é, instaurado o inquérito civil, os investigados tomam ciência e terão a oportunidade de acompanhar a produção de provas. Os membros do MP têm a tendência de serem mais liberais nesse sentido do que os responsáveis pelo inquérito penal.

As provas obtidas no inquérito civil podem ser questionadas judicialmente, outras podem ser produzidas, portanto não têm caráter probatório absoluto. Só servem para nortear a conduta do Ministério Público. Não têm a característica de resolver o conflito. Daí é um procedimento informal, utilizado pelo MP para atender suas necessidades, de modo que a prova não é produzida sob a égide do contraditório, ainda que seja permitido. Ela não tem o valor probante como a prova judicial. Não deixa de ser uma prova, como outra qualquer.

Não há atos citatórios, intimações ou outras comunicações formais, daí o caráter da informalidade. Como representante legal da empresa, alguém pode aparecer ocasionalmente na sede do MP. Pode-se marcar hora até de boca.

Efeitos do inquérito civil público: como peça inquisitória, não produz grandes efeitos, a não ser para o próprio Ministério Público, para aquele que conduz o inquérito. Ele irá se vincular às conclusões a que chegar. E essas conclusões podem ser as mais variadas possíveis. E aqui vem uma posição engraçada. O Ministério Público poderá apresentar “promoções”. São manifestações oficiais do Ministério Público acerca de determinada matéria que lhe chega ao conhecimento. Pode apresentar a promoção pelo arquivamento da representação, ou pela continuidade das averiguações, ou ainda, o ajuizamento da competente ação. É o ato mediante o que qual o órgão promove o arquivamento, a continuidade da investigação ou o ajuizamento da referida ação. Art. 9º da Lei de Ação Civil Pública (7347/85):

Art. 9º Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligências, se convencer da inexistência de fundamento para a propositura da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente.

§ 1º Os autos do inquérito civil ou das peças de informação arquivadas serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta grave, no prazo de 3 (três) dias, ao Conselho Superior do Ministério Público.

§ 2º Até que, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão as associações legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que serão juntados aos autos do inquérito ou anexados às peças de informação.

§ 3º A promoção de arquivamento será submetida a exame e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu Regimento.

§ 4º Deixando o Conselho Superior de homologar a promoção de arquivamento, designará, desde logo, outro órgão do Ministério Público para o ajuizamento da ação.

Numa promoção de arquivamento, por exemplo, o MP poderá apontar a existência de um laudo atestando a inexistência de agentes poluentes em determinado ambiente, ao contrário do que fora relatado na representação recebida pelo órgão. Adentra no mérito, baseia-se nas provas e manda arquivar. Mas essa decisão que manda arquivar não se exaure em si própria; ela está sujeita à aprovação do Conselho Superior do Ministério Público. Eventualmente se admite o recurso dessas decisões. Não é comum a interposição de recursos das decisões proferidas nos inquéritos civis até porque não existe a figura do contraditório formalmente, porém nada impede que o CSMP na base territorial onde aquele inquérito tramitou venha a rever a decisão. Quer de ofício, quer por provocação de um dos interessados. Não vamos chamar de “partes” para evitar confusão: nenhuma ação foi ajuizada e nenhuma relação jurídica processual foi instaurada ainda.

Isso tudo, portanto, é uma coisa que na lei está de uma forma, enquanto na prática tem-se adotado mais flexibilidade no inquérito civil, permitindo uma participação maior das partes ou dos interessados envolvidos. A finalidade é apurar fatos efetivamente, e não sair fazendo isso sob critério de uma só pessoa. Proposto o arquivamento mediante a promoção de arquivamento pelo MP, nada acontece. O processo extingue-se. E o colegitimado? Pode ajuizar a ação? Se o interesse tutelado é consumerista, aquela associação de que falamos antes irá querer ajuizar a ação civil pública. Pode fazê-lo, claro. O arquivamento do inquérito civil público não vincula as partes ou os outros colegitimados, mas somente o próprio Ministério Público. Mas ajuizará já sabendo que há dados para a defesa do interessado. O resultado do inquérito civil público vincula o Ministério Público se for conclusivo pelo ajuizamento da ação ou pela oferta do TAC.

Temos o aparecimento dos termos de ajustamento de conduta em qualquer momento durante o inquérito civil.

O Ministério Público pode arquivar o inquérito civil por falta de indícios de que um produto cause danos, ou por falta de indícios de que determinado apontado realmente seja responsável por um dano a interesses difusos e, logo em seguida, outro colegitimado ajuizar a ação civil pública ou ação coletiva. Neste caso, o MP poderá – e deverá – atuar como fiscal da lei. Sua atuação, nessa ocasião, será de se pronunciar nos mesmos termos de sua promoção de arquivamento, desde que não haja novas provas.