Jurisdição constitucional
No Brasil, qualquer juiz está autorizado a exercer o controle da constitucionalidade. Ele sempre pode usar o texto constitucional como guia para qualquer decisão. Pode, inclusive, afastar o significado de determinada norma se entendê-la inconstitucional.
Os juízes de primeira instância não têm, entretanto, o poder para remover normas do ordenamento.
A jurisdição constitucional no Brasil é exercida pelo chamado controle difuso e pelo controle concentrado de constitucionalidade. O controle concentrado é exercido no plano da União pelo Supremo Tribunal Federal. Para exercer o controle concentrado, o Supremo analisa alguns tipos de ação, como a ADIN, ADC, ADPF e a ADIO, que veremos a seguir. No controle difuso, o Supremo aprecia qualquer ação que discuta uma questão constitucional. Uma diferença marcante entre esses dois sistemas de controle de constitucionalidade é que no concentrado as ações são ajuizadas diretamente no Supremo; o processo começa a termina lá. É bem verdade que somos uma federação. Significa dizer que temos a União e os estados. Neles, há as justiças estaduais. E cada estado brasileiro tem uma constituição estadual. Portanto, também se exerce, nos TJs, o controle de constitucionalidade, mas é o controle da Constituição do estado em face da Constituição Federal.
Aquelas
quatro são as ações que
levam o STF a determinar, diretamente, a constitucionalidade de
determinada
questão. Vamos estudá-las:
ADIN – ação direta de inconstitucionalidade
Quem pode propor uma ADIN? Qualquer cidadão pode se pedir que se declare inconstitucional determinada lei ou ato? Está no art. 101 da Constituição:
Seção
II Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. |
Foi aprovada aqui no DF uma lei distrital proibindo o trânsito de cães de grande porte sem coleira e focinheira, bem como proibindo os donos de cães de pequeno porte a andar com seus cães com coleiras retráteis. Pode o dono de um cachorro que se sentir lesado em seu direito de propriedade propor uma ADIN, diretamente no Supremo, contra essa lei distrital? Não, apenas algumas entidades podem. Veremos a seguir quem está legitimado para entrar com ações de controle concentrado de constitucionalidade. No entanto, qualquer um pode entrar com uma ação de controle difuso de constitucionalidade. Se o dono do cachorro for multado, ele pode entrar com um mandado de segurança? Sim. Qualquer juiz pode exercer o controle difuso da constitucionalidade.
Outra hipótese, ainda neste caso: o sujeito entra com mandado de segurança, dizendo que a lei distrital viola seu direito de propriedade. O advogado dele pode ser mais esperto e encontrar um defeito formal na tramitação do projeto de lei. Por exemplo, ter sido aprovada por um quórum menor do que o necessário. O juiz não pode declarar a lei inconstitucional no controle difuso. Apenas no controle concentrado que se pode remover uma lei do mundo jurídico.
Por
que razão? Porque todas as
decisões judiciais do país teriam que ser controladas, o que seria
impraticável. O controle
difuso, portanto, só vale para o caso concreto.
ADC – ação declaratória de constitucionalidade
Observe
a diferença de prefixos:
na primeira, busca-se convencer o judiciário da inconstitucionalidade
de determinada norma ou ato; aqui, busca-se
exatamente o contrário: fazer com que ele(a) seja entendido(a) como
conforme a
Constituição.
ADPF – argüição de descumprimento de preceito fundamental
Regulamentada
há pouco tempo.
Tinha previsão no texto original da Constituição, mas só foi
regulamentada há 9
anos com a lei
9882/99. A ADPF está vista em detalhes mais à frente.
ADIO – ação direta de inconstitucionalidade por omissão
Está melhor explanada adiante.
Vejamos, agora, o art. 103 da constituição:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da
República;
II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. § 1º - O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. |
Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, da Assembléia Legislativa ou Câmara legislativa do DF, Procurador Geral da República, Conselho Federal da OAB, Partido Político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. São, portanto, nove entes legitimados. Hoje temos uma relação bastante ampliada disso. É uma abertura bem grande da sociedade para acesso quase direto ao Supremo. Antigamente, apenas o Procurador Geral da República poderia propor uma ADIN.
O que se pede numa ADIN? Que se declare a inconstitucionalidade, óbvio. Por qualquer razão possível. Essas mesmas pessoas elencadas no art. 103 também podem, ao invés da ADIN, propor uma ADC – ação declaratória de constitucionalidade. A diferença é que esta serve exatamente para o contrário. Porque se faz isso? A lei já não está em vigor? Em geral, usa-se a ADIO quando há uma intensa controvérsia judicial em relação àquela lei. Entrou na Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Escrita por Nelson Jobim e Gilmar Mendes, na época das privatizações. Veio, entre outras coisas, para evitar a guerra de liminares inter-estatal. É um instrumento de blindagem para a lei.
Nas duas hipóteses, pode-se decidir exatamente o contrário. Se, por exemplo a OAB entra com uma ADIN no Supremo buscando a declaração de determinada norma como inconstitucional, o STF poderá entender que ela é exatamente o contrário, ou seja, constitucional, e futuras ações do tipo não poderão ser impetradas contra a mesma norma. Conseqüências práticas: decisões do controle concentrado têm efeito vinculante e eficácia erga omnes, ou seja, contra todos. Diferente do caso do dono do cachorro, que entrou, por meio de um mandado de segurança, com uma ação de controle difuso de constitucionalidade. Tanto que se diz que o controle concentrado é um processo abstrato, sem partes. Mesmo que sejam determinadas entidades que proponham. Apesar disso, não haverá partes processuais. Do ponto de vista do Supremo, é indiferente quem tenha impetrado a ação. Se concedida, ela obrigará todos os poderes da administração pública a respeitar a decisão. Ninguém mais precisará protocolar uma ação direta de inconstitucionalidade caso o Supremo já o tenha feito. Na verdade, as duas são a mesma coisa, como se fosse dois valores com sinais opostos.
São
necessários pelo menos 8
ministros do Supremo presentes para julgar uma ADIN, sendo 6 votos
necessários para
se declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de
determinada
norma ou ato (Lei
9869/99).
Efeitos da decisão: é uma sentença ex-tunc: gera nulidade absoluta. Aí vem um detalhe. O Supremo pode modular os efeitos de suas decisões, isto é, diante de determinadas circunstâncias, a Corte Suprema pode reconhecer que a retroatividade pode gerar muito mais problemas e determiná-la, ao invés disso, ex-nunc (que só gerará efeitos a partir da declaração da sentença.)
Exemplo de situação que ficou conhecida: Aécio Neves, enquanto governo de Minas Gerais, criou algumas centenas de cargos comissionados, logo sem concurso público, para servi-lo. Os interessados propuseram uma ADIN contra este ato do executivo, que, depois de alguns meses, foi considerado inconstitucional. Normalmente, uma declaração de inconstitucionalidade geraria nulidade absoluta, portanto a sentença declaratória de inconstitucionalidade seria do tipo ex-tunc. Entretanto, o que aconteceria, neste caso concreto? Como os efeitos seriam anulados, os empregados teriam que devolver seus salários retroativamente ao mês em que foram contratados, e atualizados monetariamente. Não apenas geraria uma situação caótica para os funcionários, mas também caracterizaria um atentado à segurança jurídica. Por isso que o Supremo, neste caso em particular, determinou que a sentença declaratória de inconstitucionalidade do ato do governador Aécio Neves fosse ex-nunc, e mais ainda: lhe seria dado um prazo para demitir os funcionários indevidamente contratados e promover um concurso para o provimento dos cargos. Logo, esta sentença foi modulada pelo próprio Supremo, em nome da segurança jurídica.
Em
resumo: o STF poderá modular
suas sentenças desde que seja por segurança jurídica ou questão de
excepcional
interesse da sociedade.
ADIO – ação direta de inconstitucionalidade por omissão
Vimos o art. 103. Vejamos, agora o § 2º dele:
§ 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. |
Fala sobre a ação direta de inconstitucionalidade por omissão - Os autores e a doutrina classificam isso como um instituto autônomo, enquanto outros a classificam como uma variação da ADIN. Quando o legislador fica “em mora”, sem regulamentar a norma constitucional, ele está sujeito a uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. É uma omissão constitucional, pois é obrigação do legislador regulamentar as normas constitucionais. O efeito está escrito no parágrafo: é uma mera comunicação. Não pode o judiciário interferir no legislativo no sentido de obrigá-lo e dar um prazo para promulgar uma lei regulamentando determinada norma constitucional, exceto em caso de questões administrativas, em que o judiciário pode compelir o legislativo a fazê-lo num prazo de 30 dias. Praticamente não se usa mais a ação direta de inconstitucionalidade por omissão no Brasil. Ela tem a mesma finalidade do mandado de injunção, que veremos na aula que vem.
Podemos
procurar na
jurisprudência do Supremo que acharemos pouquíssimos casos em que ela
foi
aplicada, e ainda assim com eficácia pequena.
ADPF – argüição de descumprimento de preceito fundamental
Já está regulamentada pela lei 9882/99.
§ 1º do art. 102 da Constituição:
§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. |
Ficamos 11 anos com essa lacuna legislativa. Associado ao parágrafo acima, temos o art. 1º da lei 9882/99:
Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; II – (VETADO) |
Todos os que têm legitimidade para propor ADIN também podem entrar com ADPF.
Para a que serve? Não caberá ADPF se puder ser usado qualquer outro instrumento. Logo, ela só poderá ser usada de maneira subsidiária. Razões históricas: o STF construiu uma jurisprudência de que não se pode julgar o Direito pré-constitucional, como o Código Penal de 1940, que foi elaborado com base Constituição de 1937, a “polaca”. Em face daquela Constituição, o Direito Penal poderia ser classificado como inconstitucional ou constitucional, mas não em face da Constituição de 1988, a que vige. Por isso existe a teoria da recepção. Ficou um buraco; então, o que fazer com as normas que não podem ser controladas pela atual constituição?
Já que não se pode mais declarar leis pré-constitucionais como inconstitucionais, pode-se, em vez disso, verificar se tal lei descumpre um preceito fundamental da atual Constituição.
A CNTS, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, pediu a descriminalização do aborto caso seja descoberto que o feto é anencéfalo. Motivação: quem pratica, em verdade, o crime de aborto é o médico, tendo a mãe como cúmplice. Acreditam e defendem eles que a prática do “abortamento” nessa situação não seria inconstitucional, por causa da saúde psíquica da mãe, etc... Logo, eles brigam para que seja adotado o entendimento de que a condenação do médico e da mãe nesse caso específico de aborto, de acordo com o art. 126 do Código Penal, vai contra os preceitos constitucionais atuais.
Uma vez acatada, a ADPF tem os mesmos efeitos da ADIN. É ex-tunc, podendo ser modulada.
Esse foi o controle concentrado. É feito diretamente pelo STF. A ação começa e termina lá.
Observação:
existem
várias técnicas de declaração
de inconstitucionalidade. Como até mesmo uma vírgula pode ser declarada
inconstitucional,
pode-se inclusive declarar uma lei inconstitucional sem redução de seu
texto, mas
apenas estabelecendo como interpretá-lo
constitucionalmente.
Para entender o controle difuso, precisamos entender primeiro a estrutura do judiciário brasileiro. Para um texto paralelo, clique aqui ou aqui.¹
Há duas metades: a Justiça Comum Estadual e a Justiça Federal. Esta se divide em comum e especializada. O Brasil é uma federação, como já dito. Há o judiciário dos estados e o judiciário da União. O judiciário dos estados está organizado por eles próprios. Cada um dos 26 estados mais o DF têm sua própria justiça estadual. O TJDFT, excepcionalmente, é sustentado pela União, então dizemos que há 26 justiças estaduais.
Porque a expressão “Justiça Comum”? Não porque se trata de uma justiça qualquer. É porque ela abrange todas as matérias, seja de origem cível, penal, administrativa, tributária, etc... todas elas podem tramitar lá, salvo as matérias eleitoral, militar e trabalhista. São exatamente os que compõem a justiça federal especializadas.
O
que atrai o interesse da Justiça
Federal é quando há algum agente federal, ou alguma pessoa jurídica de
direito
público da União como sujeito ou objeto de uma ação. Se houver bem
público, patrimônio público da União,
interesses da união, a competência é deslocada dos estados para a
justiça
federal.
Essa é a divisão básica. Essas instituições são estruturadas escalonadamente, à semelhança das leis.
Tudo começa com um juiz de direito. É o primeiro grau de jurisdição das justiças estaduais.
Do lado federal, é chamado juiz federal o juiz de primeira instância, no caso da justiça comum. Respectivamente à Justiça Eleitoral, do Trabalho e Militar, há o juiz eleitoral, do trabalho, e as auditorias militares. Esse é o primeiro grau. Antes que complique: Justiça Federal comum é a que trabalha com as mais variadas matérias, inclusive as constitucionais, enquanto as Justiças Federais Especiais são as que cuidam da parte eleitoral, trabalhista e militar.
Depois de julgada uma ação, uma das partes pode se sentir insatisfeita. Então, ela apela à segunda instância, que é o direito ao ato de recorrer. Na Justiça Eleitoral este recurso se chama recurso ordinário, mas é funciona da mesma forma que uma apelação comum. Aqui neste nível, todas as questões examinadas na primeira instância podem ser reexaminadas em sua integridade. Agora, é o Tribunal, um colégio de juízes que apreciará a causa. É representado pelos Tribunais de Justiça dos estados ou do Distrito Federal. Há, portanto, um total de 27 deles.
No lado federal, o segundo grau é o Tribunal Reginal Federal, o TRF. Há apenas 5 deles, para 5 regiões determinadas por critérios populacionais, não pelo critério geográfico. Por exemplo, o estado de São Paulo possui um TRF apenas para ele, enquanto o TRF da Primeira Região abrange 12 estados: AC, AM, AP, BA, DF, GO, MG, MT, PA, PI, RR e TO.
O segundo grau das Justiças Eleitorais são os TREs – Tribunais Regionais Eleitorais. Aqui também há 27 deles, pois em cada estado ocorre uma eleição diferente. Na justiça do trabalho, o segundo grau é o TRT, o Tribunal Regional do Trabalho. Quase todos os estados tem sua sede do TRT.
No âmbito militar, passa-se das audiências militares diretamente para o STM – Superior Tribunal Militar.
Acima disso há apenas as instâncias federais superiores:
STJ, TSE, TST, e STM: Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar.
Acima de tudo isso está apenas o Supremo Tribunal Federal. Do terceiro grau em diante, só a matéria jurídica é apreciada, não mais a matéria documental. Eles apenas verão se a lei foi bem aplicada, mas não examinarão, novamente, os laudos, provas periciais, testemunhas, etc.
Portanto, a ordem é...
Âmbito estadual:
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Âmbito Federal:
|
E
os Juizados Especiais de Pequenas
Causas? Eles têm seu primeiro grau e segundo grau. Deste pode ir direto
para o Supremo.
Como pudemos perceber, tudo converge para a jurisdição constitucional. Isso é bom para a era do constitucionalismo, em que a segurança jurídica e o Estado Democrático de Direito estão com a maior força jamais vista, porém, tudo ficou congestionado. Explodiu o número de cursos de Direito, de advogados no mercado de trabalho, e, portanto, a funcionalidade do judiciário ficou comprometida. Isso motivou a criação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que alterou a qualidade desse controle difuso. Hoje, ele se tornou muito mais parecido com a ADIN do que era antes.
RE: recurso extraordinário <-- vemos em Direito Processual. São as “setas” que representam o ato de recorrer a uma instância superior...