Filosofia

terça-feira, 3 de março de 2009

O método

Até a aula passada estávamos falando da conceituação de Filosofia como teoria. Para isso, seria necessário um estatuto. Dentro dele vimos o objeto, e hoje estudaremos a perspectiva do método.

Para entrarmos nessa questão, primeiramente temos que entender o que vem a ser o método. Só então estudar a noção de método em Filosofia. E aí as concepções da Filosofia a partir do método.

A idéia do método, em Filosofia, é muito precisa. O problema é que a palavra método é usada pelo senso comum de modo impreciso, onde confunde-se com técnica, instrumento, e assim por diante, inclusive no meio acadêmico. Autores de metodologia da ciência também pecam nisso. Antes de mais nada, já devemos ter a em mente que técnica não é a mesma coisa que método.

Para entender isso, vejamos a técnica de entrevista: podemos usar uma ou várias técnicas dentro do método, mas este não se identifica com aquela. E também não devemos entender o método como as técnicas de organização do trabalho intelectual. O termo “metodologia cientifica”, comumente empregado, é impreciso.

A metodologia é uma lógica de pesquisa. O método é toda uma estrutura construída sobre uma teoria para construir sua pesquisa. Ou seja, como uma teoria estabelece as regras para pesquisar seu objeto. Então, no final das contas, a metodologia da Física é o conjunto de todas as regras que a ciência da Natureza constrói para estudar seus objetos, como as estrelas, o movimento, a energia, etc.

O mesmo para o Direito, que também tem um objeto e um método.

Logo tome cuidado: método não é organização do trabalho intelectual nem as técnicas usadas. O método é o núcleo da própria lógica da pesquisa. Agora estamos em condições de entender os elementos do método e defini-lo.

 

O que é o método?

O primeiro elemento do método é que ele é um conjunto de regras lógicas que servem exatamente para criar nossas hipóteses sobre um determinado problema e objeto de estudo. ¹

Essas regras servem no sentido de estabelecerem axiomas. Um axioma é simplesmente um enunciado que usamos para estabelecer uma prova. Se usamos sempre os mesmos axiomas, podemos construir teoremas, que são resultados da prova dos axiomas. o famoso teorema de Pitágoras, por exemplo. o que ele diz? “O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. Como ele chegou a isso? Ele sequer tinha noção de potência naquela época! Ele chegou a esse resultado geometricamente. Logo trata-se de um resultado chegado a partir de axiomas, no caso, os postulados geométricos de Euclides.

Voltemos ao Direito. Se ele é ciência ou não, essa é outra questão. Ainda assim ele é uma teoria. Se é uma teoria, como já sabemos, tem que ter objeto, método e escopo.

Um método é um sistema lógico. Claro que não vamos comparar um teorema da Matemática com um sistema lógico do Direito; aquela é muito mais rigorosa. Mas, de qualquer modo, podemos estabelecer um sistema axiomático do Direito em grandes linhas. Vejam:

Inciso XXXIX do art. 5º da Constituição: princípio da legalidade penal.

        XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

Também é chamado de princípio da legalidade. É interessante, porque tem o nome de princípio, em Direito. Princípios são afirmações das quais tudo parte, e não precisam ser provadas. Então, o que chamamos princípio em Direito é na verdade um axioma. A idéia é de postulado. Em grego, essa palavra significa “aceitar a afirmação sem provas”. Modernamente a noção de axioma foi diferenciada de postulado. O inciso acima é um axioma, em Direito é chamado de princípio. Estamos admitindo que o art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal é na verdade um axioma que vamos utilizar para deduzir qualquer enunciado do Direito? Não, ele é um axioma do qual eu posso deduzir apenas alguns tipos de enunciados.

Agora veja o art.121 do Código Penal.

        Homicídio simples

        Art 121. Matar alguem:

        Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Na verdade, essa regra pressupõe a existência do inciso constitucional anterior. “Não há crime sem o seu tipo”. Só podemos ter a regra do art. 121 do Código Penal obedecendo ao axioma do inciso XXXIX do art. 5º da Constituição. Podemos tomar o inciso XXXIX como um axioma e dele derivar um teorema, que seria o art.121 do Código Penal.²

O sistema lógico exige não só as regras lógicas como também o sistema de provas. Vamos chamá-los de instrumentos. Não confunda instrumentos com ferramentas materiais, que entrariam na parte de técnica instrumental. Aqui, são conjuntos de regras lógicas que usamos para provar as hipóteses. Por exemplo: prove que...

(a - b)² = a² - 2ab + b² 

Dado que vou começar com o primeiro membro da equação, ele será o axioma ou a hipótese, o objeto de prova. O segundo membro, que é o enunciado de chegada, será o teorema. Note que uma regra só pode transformar um axioma em um equivalente dele. Logo (a - b)² = (a - b)(a - b) é uma regra de identidade. A partir de agora, podemos usar a regra distributiva e todas as que aprendemos ao longo da vida até chegar ao resultado a² - 2ab + b² (faça isso!)

Vamos agora imaginar uma outra situação.

São sete horas da manhã, você está pronto para sair de casa e vir para a aula, quando você começa a ouvir barulhos de gotas colidindo com o telhado de sua casa. É o tempo que você termina de tomar café e pegar seus pertences. Quando você está indo para a garagem, o barulho cessa. O que podemos trabalhar em cima dessa simples situação? Hora, nos parece claro que começou a chover e logo parou. Portanto, “choveu” foi exatamente a hipótese:

Choveu -> hipótese = P

P representa essa proposição. Se P está correta, então antes mesmo podemos admitir que o que deve ter acontecido lá fora é o telhado ter molhado. Chamemos isso de Q. A proposição Q será chamada de inferência.

Logo, se choveu, o telhado deve estar molhado.

A princípio não precisamos nem sair de dentro de casa para saber disso. Mais: devemos esperar que a rua também esteja molhada. Então, construímos uma nova afirmativa:

Ora, se Q, então P!

P é o antecedente, enquanto Q é o conseqüente. Há uma condição. P só se verifica se a condição Q se verificar. Agora, transfira esse entendimento para o art.121 do Código Penal.

Matar alguém -> pena.

Como podemos reescrever isso? Assim:

Se você matar alguém, sua pena deverá ser de 6 a 20 anos de reclusão.

Só que essa é uma prova formal. Não precisamos verificar para chegar à conclusão, bastou a lógica. Ou não? Não! Ainda falta a prova empírica. Precisamos ir lá fora e olhar a rua para ver se ela está de fato molhada, ou então isso seria meramente uma conjectura teórica. Essa prova empírica é experimental. Neste momento é que aparecem instrumentos e tecnologias. Note que os instrumentos agora são os materiais, diferenciando dos anteriores (que eram conjuntos de regras lógicas que usamos para provar as hipóteses).

Logo, associamos a sigla CI para a proposição formal, que significa “consistência interna”. A proposição deve estar logicamente encadeada para que ela possa existir. Só então partimos para a verificação empírica, onde aferiremos se a teoria tem CE, ou consistência externa. Note que, para que a teoria seja científica, ela deve possuir tanto CI quanto CE. Isso já vem de muito tempo. Por exemplo com Arquimedes e seu teorema do empuxo (o empuxo sofrido por um corpo submerso em um fluido é igual à massa do fluido deslocado vezes a aceleração gravitacional): ele desenvolveu sua teoria tanto lógica quanto experimentalmente.

Agora olhem: dado que a rua está molhada, segue necessariamente que choveu? Não. Podemos conceber outras hipóteses para o fato de a rua estar molhada. Se choveu, não só a rua deve estar molhada, mas também as casas. Então, como tornar esse enunciado mais verdadeiro ainda? Colhendo múltiplas inferências: os carros, as arvores e os transeuntes também devem estar molhados. Então, restringimos a hipótese; é assim que os cientistas trabalham.

No Direito:

Digamos um promotor, que diz que sujeito é culpado de homicídio. Ele quer provar isso. O que ele faz? Se o sujeito é mesmo um homicida, o que deve ser deduzido? As provas/evidências. No Direito, isso pertence ao campo das inferências.

Caso Nardoni, que está mais fresco em nossas mentes: se o casal é culpado, o que deve ser encontrado?

  1. Inferência 1: a mancha de sangue ali pertence a Isabella;
  2. Inferência 2: a marca de solado sobre a fronha da cama que estava ao lado da janela deve coincidir com a do chinelo de Alexandre Nardoni.
  3. Inferência 3: havia partículas do material da rede de proteção no chão perto da janela, indicando que ela havia sido cortada com uma tesoura.

Quanto mais inferências conseguir o promotor, mais ele provará que o casal é culpado. Note a expressão que acabei de usar: “mais ele provará”. Deu para perceber que a prova jamais será absoluta, ou seja, nunca teremos 100% de certeza.

Há outra hipótese: e se o ET de Varginha tivesse um caso com Ana Carolina Jatobá, fosse ciumento e não gostava da menina, por isso ele se teletransportou para o quarto da menina e praticou o ato? É impossível? O princípio da não-contradição de Aristóteles, visto na aula do dia 10/2, diz que não. Não podemos dizer que há 0% de chance de isso ter acontecido. O que importa é que a probabilidade disso ter ocorrido é ridiculamente ínfima. ³

Portanto a Filosofia, se é uma teoria, tem que ter um método.

Outro exemplo interessante: como o Direito pode ser entendido como um sistema quase axiomatizado, ou pelo menos com um mínimo de axiomatização.

Um caso pode, grosso modo, ser reduzido a uma lide. Um caso exige uma solução. Portanto há um conjunto de soluções. Esse conjunto tem um fim, que é a pacificação. O fim teleológico não interessa aqui. Há vários universos em relação ao caso. Podemos dizer que a lide se dá no campo do Direito Civil. O que é a norma? Não é nada mais, nesse sentido lógico, do que uma função lógica. O que faz mesmo uma função na Matemática? Pega todos os valores de x pertencentes a um conjunto chamado “domínio” e associa, liga a um outro valor y, pertencente a um conjunto chamado “contradomínio”. A notação usada na Matemática para isso é F(x) = y. A norma jurídica liga um caso (digamos caso 1) a uma solução. Adaptando a notação, podemos dizer N(c) = s ("a norma do caso leva àquela solução.")

Vamos restringir, agora. Dentro do Direito Civil, vamos tomar o universo da tutela de menores. Digamos o caso de falecimento de um dos cônjuges. Com quem fica o filho? Com o outro cônjuge. Até pela condição de afinidade. E se os dois falecem? A lei diz que, dado que ambos morreram, seriam os parentes mais próximos em primeiro grau, ascendentes, os avós.

Agora preste atenção: a um x é sempre dado um y. O conjunto dos casos em Direito é o conjunto do domínio, enquanto o conjunto das soluções é o conjunto do contradomínio. O subconjunto das soluções utilizáveis, dentro do contradomínio, é o “conjunto-imagem”.

Mas vamos exemplificar com um caso que realmente aconteceu: Cássia Eller. É um caso diferente, atípico. Claro que podemos admitir que a norma jurídica é uma função lógico-matemática, mas o universo da lei não é tão formal quanto ao da lógica e da matemática, já que o Direito contem elementos sociais e valorativos, por exemplo. Cássia faleceu. Ela tinha uma amante, que morava com ela havia muitos anos. O filho dela possuía afinidade para com a companheira da mãe. Quando ocorreu, o juiz não pode usar apenas o Código Civil, onde está presente a regra de que o menor deve ir à tutela dos avós, mas também o ECA, que tem uma outra regra de formação axiomática. Toda decisão judicial deve preservar o bem-estar do menor, diz o Estatuto. Ao mesmo tempo, lex specialis derrogat legi generalis, sendo o ECA a lei especial e o Código Civil a regra geral. Então, chamando este caso de “caso 2”, que é atípico, o juiz pode optar por dar a mesma solução que daria a um caso típico (caso 1). Estamos fazendo com que o caso 2 esteja tendo a mesma solução do caso 1, então dizemos que houve uma integração. Não se trata de analogia ainda, cuidado. Há uma incompletude do sistema: é assim que tratamos as lacunas no sistema do Direito. se o caso não tem uma solução, ele é incompleto. Então, o que fazer? Estender o âmbito da norma. Fazer com que o caso atípico tenha a mesma solução do caso típico, já que é vedado ao juiz o non liquet (não se pronunciar por inexistir uma norma que disponha sobre o assunto).

O problema está aí: o caso não é típico; ele tem um pequeno problema. Existe um axioma, trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz simplesmente: “toda vez que houver um menor, o que deve acontecer é que o bem-estar dele deve ter preferência.” Esse  bem-estar deve ser educacional, psicológico, moral, social e físico. O juiz, assim, partiu do pressuposto que o caso 2 é mesmo diferente do 1, e criou uma solução 2, aí sim usando a analogia.

 

Desafio para você:

Você é o advogado dos Nardoni. Como resolver o caso? Dica: você já sabe qual é a linha de trabalho do promotor: ele deverá trazer inferências que levem a autoridade judicial a crer que a probabilidade de eles não serem culpados é ínfima. E você, o que faz?


  1. Pouco depois desta parte meu notebook deu um problema e tive que reiniciar, e perdi 2 minutos, um grande tempo. Sei que nesse momento o professor iniciou a explicação sobre axiomas.
  2. Neste momento eu perguntei como que o art. 121 poderia ser um teorema, já que temos todos a noção de que teorema é algo provado, enquanto o artigo é uma mera determinação do legislador. O professor respondeu baseado no esquema que ele desenhou no quadro, que não consegui copiar aqui. 
  3. Note também que nem mesmo o teletransporte é logicamente impossível. Se partículas já foram teletransportadas em laboratório, então não é ilógico que corpos macroscópicos também o consigam.