Até a aula passada estávamos falando da conceituação de Filosofia como teoria. Para isso, seria necessário um estatuto. Dentro dele vimos o objeto, e hoje estudaremos a perspectiva do método.
Para entrarmos nessa questão, primeiramente temos que entender o que vem a ser o método. Só então estudar a noção de método em Filosofia. E aí as concepções da Filosofia a partir do método.
A idéia do método, em Filosofia, é muito precisa. O problema é que a palavra método é usada pelo senso comum de modo impreciso, onde confunde-se com técnica, instrumento, e assim por diante, inclusive no meio acadêmico. Autores de metodologia da ciência também pecam nisso. Antes de mais nada, já devemos ter a em mente que técnica não é a mesma coisa que método.
Para entender isso, vejamos a técnica de entrevista: podemos usar uma ou várias técnicas dentro do método, mas este não se identifica com aquela. E também não devemos entender o método como as técnicas de organização do trabalho intelectual. O termo “metodologia cientifica”, comumente empregado, é impreciso.
A metodologia é uma lógica de pesquisa. O método é toda uma estrutura construída sobre uma teoria para construir sua pesquisa. Ou seja, como uma teoria estabelece as regras para pesquisar seu objeto. Então, no final das contas, a metodologia da Física é o conjunto de todas as regras que a ciência da Natureza constrói para estudar seus objetos, como as estrelas, o movimento, a energia, etc.
O mesmo para o Direito, que também tem um objeto e um método.
Logo tome cuidado: método não é organização do trabalho intelectual nem as técnicas usadas. O método é o núcleo da própria lógica da pesquisa. Agora estamos em condições de entender os elementos do método e defini-lo.
O primeiro elemento do método é que ele é um conjunto de regras lógicas que servem exatamente para criar nossas hipóteses sobre um determinado problema e objeto de estudo. ¹
Essas regras servem no sentido de estabelecerem axiomas. Um axioma é simplesmente um enunciado que usamos para estabelecer uma prova. Se usamos sempre os mesmos axiomas, podemos construir teoremas, que são resultados da prova dos axiomas. o famoso teorema de Pitágoras, por exemplo. o que ele diz? “O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”. Como ele chegou a isso? Ele sequer tinha noção de potência naquela época! Ele chegou a esse resultado geometricamente. Logo trata-se de um resultado chegado a partir de axiomas, no caso, os postulados geométricos de Euclides.
Voltemos ao Direito. Se ele é ciência ou não, essa é outra questão. Ainda assim ele é uma teoria. Se é uma teoria, como já sabemos, tem que ter objeto, método e escopo.
Um método é um sistema lógico. Claro que não vamos comparar um teorema da Matemática com um sistema lógico do Direito; aquela é muito mais rigorosa. Mas, de qualquer modo, podemos estabelecer um sistema axiomático do Direito em grandes linhas. Vejam:
Inciso XXXIX do art. 5º da
Constituição: princípio
da legalidade penal.
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; |
Também é chamado de princípio da legalidade. É interessante, porque tem o nome de princípio, em Direito. Princípios são afirmações das quais tudo parte, e não precisam ser provadas. Então, o que chamamos princípio em Direito é na verdade um axioma. A idéia é de postulado. Em grego, essa palavra significa “aceitar a afirmação sem provas”. Modernamente a noção de axioma foi diferenciada de postulado. O inciso acima é um axioma, em Direito é chamado de princípio. Estamos admitindo que o art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal é na verdade um axioma que vamos utilizar para deduzir qualquer enunciado do Direito? Não, ele é um axioma do qual eu posso deduzir apenas alguns tipos de enunciados.
Agora
veja o art.121 do Código
Penal.
Homicídio simples Art 121. Matar alguem: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. |
Na verdade, essa regra pressupõe a existência do inciso constitucional anterior. “Não há crime sem o seu tipo”. Só podemos ter a regra do art. 121 do Código Penal obedecendo ao axioma do inciso XXXIX do art. 5º da Constituição. Podemos tomar o inciso XXXIX como um axioma e dele derivar um teorema, que seria o art.121 do Código Penal.²
O sistema lógico exige não só as regras lógicas como também o sistema de provas. Vamos chamá-los de instrumentos. Não confunda instrumentos com ferramentas materiais, que entrariam na parte de técnica instrumental. Aqui, são conjuntos de regras lógicas que usamos para provar as hipóteses. Por exemplo: prove que...
(a - b)² = a² - 2ab + b² |
Dado que vou começar com o primeiro membro da equação, ele será o axioma ou a hipótese, o objeto de prova. O segundo membro, que é o enunciado de chegada, será o teorema. Note que uma regra só pode transformar um axioma em um equivalente dele. Logo (a - b)² = (a - b)(a - b) é uma regra de identidade. A partir de agora, podemos usar a regra distributiva e todas as que aprendemos ao longo da vida até chegar ao resultado a² - 2ab + b² (faça isso!)
Vamos agora imaginar uma outra situação.
São sete horas da manhã, você está pronto para sair de casa e vir para a aula, quando você começa a ouvir barulhos de gotas colidindo com o telhado de sua casa. É o tempo que você termina de tomar café e pegar seus pertences. Quando você está indo para a garagem, o barulho cessa. O que podemos trabalhar em cima dessa simples situação? Hora, nos parece claro que começou a chover e logo parou. Portanto, “choveu” foi exatamente a hipótese:
Choveu -> hipótese = P |
P representa essa proposição. Se P está correta, então antes mesmo podemos admitir que o que deve ter acontecido lá fora é o telhado ter molhado. Chamemos isso de Q. A proposição Q será chamada de inferência.
Logo, se choveu, o telhado deve estar molhado.
A princípio não precisamos nem sair de dentro de casa para saber disso. Mais: devemos esperar que a rua também esteja molhada. Então, construímos uma nova afirmativa:
Ora, se Q, então P! |
P é o antecedente, enquanto Q é o conseqüente. Há uma condição. P só se verifica se a condição Q se verificar. Agora, transfira esse entendimento para o art.121 do Código Penal.
Matar alguém -> pena. |
Como podemos reescrever isso? Assim:
Se você matar alguém, sua pena deverá ser de 6 a 20 anos de reclusão. |
Só que essa é uma prova formal. Não precisamos verificar para chegar à conclusão, bastou a lógica. Ou não? Não! Ainda falta a prova empírica. Precisamos ir lá fora e olhar a rua para ver se ela está de fato molhada, ou então isso seria meramente uma conjectura teórica. Essa prova empírica é experimental. Neste momento é que aparecem instrumentos e tecnologias. Note que os instrumentos agora são os materiais, diferenciando dos anteriores (que eram conjuntos de regras lógicas que usamos para provar as hipóteses).
Logo, associamos a sigla CI para a proposição formal, que significa “consistência interna”. A proposição deve estar logicamente encadeada para que ela possa existir. Só então partimos para a verificação empírica, onde aferiremos se a teoria tem CE, ou consistência externa. Note que, para que a teoria seja científica, ela deve possuir tanto CI quanto CE. Isso já vem de muito tempo. Por exemplo com Arquimedes e seu teorema do empuxo (o empuxo sofrido por um corpo submerso em um fluido é igual à massa do fluido deslocado vezes a aceleração gravitacional): ele desenvolveu sua teoria tanto lógica quanto experimentalmente.
Agora olhem: dado que a rua está molhada, segue necessariamente que choveu? Não. Podemos conceber outras hipóteses para o fato de a rua estar molhada. Se choveu, não só a rua deve estar molhada, mas também as casas. Então, como tornar esse enunciado mais verdadeiro ainda? Colhendo múltiplas inferências: os carros, as arvores e os transeuntes também devem estar molhados. Então, restringimos a hipótese; é assim que os cientistas trabalham.
Digamos um promotor, que diz que sujeito é culpado de homicídio. Ele quer provar isso. O que ele faz? Se o sujeito é mesmo um homicida, o que deve ser deduzido? As provas/evidências. No Direito, isso pertence ao campo das inferências.
Caso Nardoni, que está mais fresco em nossas mentes: se o casal é culpado, o que deve ser encontrado?
Quanto mais inferências conseguir o promotor, mais ele provará que o casal é culpado. Note a expressão que acabei de usar: “mais ele provará”. Deu para perceber que a prova jamais será absoluta, ou seja, nunca teremos 100% de certeza.
Há outra hipótese: e se o ET de Varginha tivesse um caso com Ana Carolina Jatobá, fosse ciumento e não gostava da menina, por isso ele se teletransportou para o quarto da menina e praticou o ato? É impossível? O princípio da não-contradição de Aristóteles, visto na aula do dia 10/2, diz que não. Não podemos dizer que há 0% de chance de isso ter acontecido. O que importa é que a probabilidade disso ter ocorrido é ridiculamente ínfima. ³
Outro exemplo interessante: como o Direito pode ser entendido como um sistema quase axiomatizado, ou pelo menos com um mínimo de axiomatização.
Um caso pode, grosso modo, ser reduzido a uma lide. Um caso exige uma solução. Portanto há um conjunto de soluções. Esse conjunto tem um fim, que é a pacificação. O fim teleológico não interessa aqui. Há vários universos em relação ao caso. Podemos dizer que a lide se dá no campo do Direito Civil. O que é a norma? Não é nada mais, nesse sentido lógico, do que uma função lógica. O que faz mesmo uma função na Matemática? Pega todos os valores de x pertencentes a um conjunto chamado “domínio” e associa, liga a um outro valor y, pertencente a um conjunto chamado “contradomínio”. A notação usada na Matemática para isso é F(x) = y. A norma jurídica liga um caso (digamos caso 1) a uma solução. Adaptando a notação, podemos dizer N(c) = s ("a norma do caso leva àquela solução.")
Vamos restringir, agora. Dentro do Direito Civil, vamos tomar o universo da tutela de menores. Digamos o caso de falecimento de um dos cônjuges. Com quem fica o filho? Com o outro cônjuge. Até pela condição de afinidade. E se os dois falecem? A lei diz que, dado que ambos morreram, seriam os parentes mais próximos em primeiro grau, ascendentes, os avós.
Agora preste atenção: a um x é sempre dado um y. O conjunto dos casos em Direito é o conjunto do domínio, enquanto o conjunto das soluções é o conjunto do contradomínio. O subconjunto das soluções utilizáveis, dentro do contradomínio, é o “conjunto-imagem”.
Mas vamos exemplificar com um caso que realmente aconteceu: Cássia Eller. É um caso diferente, atípico. Claro que podemos admitir que a norma jurídica é uma função lógico-matemática, mas o universo da lei não é tão formal quanto ao da lógica e da matemática, já que o Direito contem elementos sociais e valorativos, por exemplo. Cássia faleceu. Ela tinha uma amante, que morava com ela havia muitos anos. O filho dela possuía afinidade para com a companheira da mãe. Quando ocorreu, o juiz não pode usar apenas o Código Civil, onde está presente a regra de que o menor deve ir à tutela dos avós, mas também o ECA, que tem uma outra regra de formação axiomática. Toda decisão judicial deve preservar o bem-estar do menor, diz o Estatuto. Ao mesmo tempo, lex specialis derrogat legi generalis, sendo o ECA a lei especial e o Código Civil a regra geral. Então, chamando este caso de “caso 2”, que é atípico, o juiz pode optar por dar a mesma solução que daria a um caso típico (caso 1). Estamos fazendo com que o caso 2 esteja tendo a mesma solução do caso 1, então dizemos que houve uma integração. Não se trata de analogia ainda, cuidado. Há uma incompletude do sistema: é assim que tratamos as lacunas no sistema do Direito. se o caso não tem uma solução, ele é incompleto. Então, o que fazer? Estender o âmbito da norma. Fazer com que o caso atípico tenha a mesma solução do caso típico, já que é vedado ao juiz o non liquet (não se pronunciar por inexistir uma norma que disponha sobre o assunto).
O problema está aí: o caso não é típico; ele tem um pequeno problema. Existe um axioma, trazido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que diz simplesmente: “toda vez que houver um menor, o que deve acontecer é que o bem-estar dele deve ter preferência.” Esse bem-estar deve ser educacional, psicológico, moral, social e físico. O juiz, assim, partiu do pressuposto que o caso 2 é mesmo diferente do 1, e criou uma solução 2, aí sim usando a analogia.
Você é o advogado dos Nardoni. Como
resolver o caso? Dica:
você já sabe qual é a linha de trabalho do promotor: ele deverá trazer
inferências que levem a autoridade judicial a crer que a probabilidade
de eles não serem culpados é
ínfima. E você, o
que faz?