Na aula passada estávamos na seguinte situação: vimos qual é o modelo de dedução transcendental. Hoje vamos estabelecer a própria dedução transcendental.
Lembrem que temos duas condições para Kant: uma estabelecida pela esfera da sensibilidade (gênese – enunciados empíricos), e outra pela esfera da racionalidade.
Para Kant, para evitar o problema dos postulados, que são o problema do realismo, e o do relativismo e convencionalismo, que são o problema do empirismo, deve-se estabelecer, exatamente a partir dos enunciados empíricos, uma dedução transcendental para a racionalidade. Dedução sabemos o que é, e sua condição transcendental também. A regra é dedutiva, com uma conclusão necessária, que não pode estar estabelecido pelos elementos da sensibilidade, mas sem dela se desvincular. Neste caso, vamos lá. Então, para entendermos melhor, vamos ver o que são os enunciados empíricos para Kant.
Tomemos o enunciado:
O pincel é azul.
Vamos pensar esse enunciado; vamos ver sua condição lógica. Kant tem, como modelo lógico, Aristóteles. Ainda estamos longe da chamada virada lingüística do final do século XIX, com a lógica contemporânea. Então Kant usa o modelo aristotélico: sujeito e predicado.
O sujeito é idêntico ao predicado? O conceito de pincel é idêntico ao de azul? Não. Ao falar em pincel, não temos, em seu conjunto de notas semânticas, a noção de azul.
Segunda
pergunta: pincel está
contido na noção de azul? Não, pois teríamos que tudo que é pincel é
azul. É a essência
de Aristóteles. Então, em termos lógicos, isto significa que o sujeito
não está
contido na noção do predicado. Lembrem-se da figura na nota de 27/05.
Neste caso, a primeira condição desses enunciados é a lógica. Na condição lógica, o sujeito é distinto do predicado e não está contido nele. Como o exemplo do gato, que vimos em aulas anteriores: “o gato é preto”. Disso segue que gato = preto? Não, pois não lembramos de “preto” assim que mencionamos “gato”, nem podemos dizer que “gato” está contido na noção de “preto”.
Segunda condição: epistemológica. Como saber se o enunciado é verdadeiro ou falso? Como seu sei que o pincel é azul? Pela observação empírica. Não sei a priori, não tem como saber. Para saber, tenho que estabelecer uma verificação empírica. Em outras palavras, todo enunciado desse tipo é denominado a posteriori. Significa que só depois do enunciado que podemos saber se ele é verdadeiro ou falso. Kant denomina esse tipo de enunciado de juízos sintéticos. Por que juízo? Hoje em dia não se usa mais o termo “juízo” em lógica contemporânea. Hoje usamos “sentença”, ou “proposição”. Como Kant usava juízo, então vamos usar aqui também. É que na época a lógica era compreendida como parte da estrutura do pensamento humano; a linguagem era vista como um veículo do pensamento. Juízo, então, no sentido de um signo mental. Sintético por causa da condição a posteriori. Então, no final das contas, todo juízo que hoje chamaríamos de enunciado empírico será sempre sintético. Não pode ser outra coisa.
Frente aos enunciados sintéticos, a lógica de Aristóteles, ampliada pelos históricos e medievais, permitiu outro tipo de enunciado: os enunciados analíticos. Kant chama de “juízos analíticos”. Vamos ver o que significa isso por um exemplo:
Todo solteiro é
não-casado.
Se analisarmos esse enunciado, teremos, novamente, sujeito e predicado. Agora perguntamos: o sujeito se identifica com o predicado? Sim! “Solteiro” é exatamente igual a “não-casado”, necessariamente. O sujeito está contido no predicado, então o juízo é dito analítico. Em sua definição de solteiro, terá que surgir a noção de não-casado, obrigatoriamente. Outro exemplo do mesmo gênero: a Lua é a Lua. É um enunciado que parece bobo, mas nunca poderá ser falso. Seu oposto,
Todo solteiro é
casado
Será sempre falso.
A condição de todo enunciado analítico é que ele é sempre a priori, ou seja, não se precisa de uma verificação empírica para aferir sobre sua veracidade, como não precisamos verificar empiricamente que todo solteiro é não-casado. Então todo analítico é a priori. Só é precisa a verificação sintático-semântica do enunciado. É claro que estamos usando termos que o próprio Kant não usa, pois são da lógica contemporânea, mas no final das contas só preciso verificar a forma lógica do enunciado. Não é necessário que se verifique empiricamente se é verdadeiro.
Qual a importância desses enunciados? Em Matemática e Lógica, será fundamental a importância. São enunciados desse tipo que permitem que fundamentam a Lógica e a Matemática. Servem para montar modelos lógicos, mas não para ter conhecimento acerca do mundo. Por outro lado, esses enunciados empíricos permitem conhecer o mundo, mas não permitem ter uma homogeneidade, porque são fragmentários. Não teremos como saber a priori se o enunciado é verdadeiro ou falso. Para Kant, então, como são sempre verdadeiros ou suas contradições são sempre lógicas, eles são muito bons para os realistas construírem suas teses. Neste ponto, então, Kant julga que não se pode ficar simplesmente com juízos sintéticos. Mas também não com os analíticos porque eles não acrescentariam conhecimento nenhum do mundo, são sempre verdadeiros, mas cairíamos nos postulados. Então, qual a solução kantiana? Para Kant, devemos estabelecer um conjunto de enunciados, ou de juízos, se assim quisermos, que, no final das contas, sejam passiveis de acrescentar conhecimento, mas ao mesmo tempo não seja relativizado pelas condições empíricas. É exatamente isso que ele promoverá: evitar os erros dos empiristas e dos realistas.
Vamos começar.
O pincel é azul.
Com a base empirista, temos um problema sério: ao dizer isso, qual a unidade que esse enunciado tem? A comunidade dos observadores. Mas ela pode estar totalmente errada! Eles são o critério para verificação disso? Por quê? O azul pode ser diferente para cada um de nossos conjuntos oculares de sentidos. O azul do pincel pode ser um azul de tonalidade diferente daquele outro azul, que está no casaco do Bruno, e o que faz este azul ser também azul? É tudo fruto do consenso. A própria comunidade de observadores, convencionando, não estabelece um critério válido. Eu posso admitir, então, a especificação: o pincel tem “azul cobalto”, enquanto a blusa de alguém é “azul-turquesa”, ou “azul marinho”, etc. Podemos ter um crivo mais preciso: este azul do pincel é a onda eletromagnética emitida na freqüência de 6,45.1014 Hz... Mas não disse nada que é azul! Só disse as características físicas. Vamos complicar ainda mais: digo que isto é um pincel azul. Abro, escrevo, e a tinta é vermelha. Ele é o que, azul ou vermelho? Ou pior ainda, e se o objeto que aparentava ser um pincel é, na verdade, um isqueiro? A comunidade de observadores não consegue estabelecer uma diferença entre realidade e aparência. Por quê? Porque ninguém pode garantir que é mesmo um pincel. Pode ser até um simulacro de arma de fogo.
Então, o que fazer? Neste caso, não temos como, a partir da estrutura dos sentidos (os sentidos propriamente ditos + os órgãos dos sentidos), determinar, segundo Kant, a verdade ou a validade de um enunciado empírico. Por quê? Porque não temos uma consolidação dos dados dos sentidos; não temos uma unidade dos sentidos. Já vimos que os empiristas, e antes deles os céticos, criticavam essa limitação há muito tempo. Mas isso é problemático porque a comunidade depende dos sentidos. E o eletroscópio, instrumento feito para se detectar a presença de cargas elétricas num corpo? É também um constructo empírico. Então, vamos lá: já sabemos como se estabelece a gênese do conhecimento, essa sim é pelos sentidos. Já sabemos também, em geral, algumas determinadas considerações referentes a “como se dá a impressão ocular”, e “como se dá a transmissão neurológica dos dados observados”; mas a tese fundamentalmente aristotélica, aceita por outros teóricos ¹, pode ser adaptada ao nosso modelo neurológico.
Dado que temos um objeto em nosso campo sensual, esse objeto causa uma impressão no órgão dos sentidos (olho, da visão). Sabemos por Aristóteles que seria semelhante a uma marca de um anel na cera; para Aristóteles, tais coisas são impressões. Isso porque ainda não tínhamos a moderna neurologia ocular desenvolvida. Mas que o objeto causa uma impressão no órgão do sentido podemos estabelecer no modelo de hoje: provoca pequenos pontos luminosos em nossa retina, que são captados e levados ao cérebro. Mas, segundo os empiristas, na verdade o pensamento é passivo, dado que a impressão se impõe, daí os sentidos são fonte-gênese de conhecimento. Para o realista, o sentido é gênese, mas não é fonte porque a razão é ativa e o pensamento cria um signo para a identificação dessa imagem. Essa, em geral, é a tendência de Kant. Mas vamos ver como ele pensa:
Segundo Kant, qual é o problema empirista? É que temos uma estrutura de dados fragmentária, exatamente por causa da estrutura de conhecimento. Temos algo que é responsável pelos dados sensitivos. Ele denomina este de ego empírico. Mas ele só é capaz de organizar os dados dos sentidos. Depois dos pontos luminosos dos olhos, o muito que o ego consegue fazer é organizar esses dados, e mais nada. Por isso, por exemplo, o ego empírico não é capaz de determinar se aquilo que se vê é uma ilusão ou a realidade. Por isso somos traídos todo o tempo pelos sentidos. Por quê? Porque, no final das contas, não conseguimos saber se aquilo observado é uma fantasia, como o fenômeno da refração da luz ao mergulhar uma régua na água, e assim por diante. Em outras palavras, o que acontece? O ego empírico, quando toma ciência da impressão, ele simplesmente toma todos os dados de impressão do sentido e organiza. Mas é tudo que ele pode fazer: estabelecer organização dos dados. Evidentemente, diferenciará as condições de contexto: não vamos confundir o pincel com o casaco do Bruno. Teremos a dimensão de distância, perspectiva, tudo notado pelo ego empírico. Mas ele só não consegue estabelecer se tal coisa é realmente um pincel, ou se é um isqueiro, ou uma arma. Um bom exemplo kantiano é: quando dormimos, o ego empírico está reduzido, já que os sentidos estão reduzidos em sua percepção; achamos que não passou o tempo, perdemos essa noção. Exatamente por causa disso. O ego não tem condições de saber se passou o tempo ou não.
Como saber, então, que esse objeto é real, como saber se ele é pincel, e como saber que ele se estabelece para o nosso conhecimento, se o ego empírico não é capaz de chegar a esse nível? Então, neste caso, Kant estabelecerá uma suposição para a dedução. Se o ego empírico não pode fazer isso, então, o que é capaz? No final das contas, é a mesma questão velha de Heráclito. Entramos no mesmo rio duas vezes? Para eu verificar se essa organização dos dados é válida, devemos usar a comunidade de observadores, mas esta, como já sabemos, é problemática porque acaba se reduzindo à convenção, e essa convenção é mutável no tempo. Então Kant tem que buscar condições na própria razão que nunca mudam. Neste caso, o que o pincel tem, aliás, quais as duas condições que o pincel tem que qualquer outro terá, que todo apagador tem, que nós temos, ou seja, que qualquer ente empírico tem e são necessárias para que todos eles sejam passíveis de serem conhecidos? Espaço e tempo! Na verdade, nada que é perceptível não pode ser percebido se não estiver no espaço e no tempo. Mas diremos: como eu sei disso?
É simples. Vamos começar pelo tempo. Um exemplo que Kant dá é que não podemos observar uma casa em sua totalidade, essa observação tem que transcorrer no tempo. Por que, então, o tempo existe? Porque, no final, do fato de haver o transcurso do tempo segue que o tempo tem que existir. Então, não confundamos o tempo com a marcação temporal. Esta é convencional. Nós convencionamentos marcar o tempo segundo a passagem do Sol, por exemplo. Mas com um calendário lunar, a marcação já é diferente. Um relógio do século XVIII, um do século XIX, um relógio suíço, ou um atômico. O próprio tempo não é a mera passagem de momentos sucessivos. É um erro que Kant percebeu. O tempo era uma condição acidental do ente empírico. Tanto que sua essência não muda. Kant não pensa assim, porque se, no final, o tempo é uma condição empírica do objeto, confundiríamos o tempo com sua passagem. E haveria objetos que duram mais tempo, e não teríamos o critério de determinação do que vem a ser o tempo. Neste caso, Kant dirá: o tempo não pertence ao objeto, mas é uma estrutura do pensamento. É o pensamento que impõe o tempo aos entes empíricos. O tempo, como estrutura de sensibilidade, é imposto pela razão, pelo pensamento aos entes empíricos. Note que estamos falando na marcação temporal, que é meramente convencional. Mas quando dormimos e acordamos, temos a consciência de que o tempo passou. Se fosse algo da própria estrutura dos objetos, o tempo poderia nem ter passado.
Essa noção de tempo de Kant é muito interessante: ela é um desenvolvimento de dois grandes modelos de tempo. Um é o newtoniano, que é absoluto, então não pode estar nos entes empíricos, porque estes são mutáveis, mas o tempo para Newton é absoluto por causa do pensamento. E de onde vem a condição subjetiva do tempo? Vem de Santo Agostinho. No Livro XII das Confissões, ele desenvolve o que é conhecido como concepção subjetivista ou psicologista do tempo. Vamos pensar como Santo Agostinho: o que realmente existe? Passado, presente ou futuro? Só o presente. Mas no momento em que eu pronuncio essa frase, ela já está no passado. Então, o que existe está sempre “em átomo”, o que é sempre efêmero. Então, o único modo de ter o passado é rememorar coisas que já não são parte do presente. Então o passado se torna presente novamente, mas são eventos que não existem mais. Futuro: previsão de eventos que ainda não existem. Se deve existir uma entidade atemporal, essa deve ser Deus, porque para ele não há passado, presente e futuro, e ele consegue conhecer tudo. Aí vem a famosa tese de Santo Agostinho: o tempo é sempre uma distensão da alma: ela sempre existe no presente. O passado é a alma se distendendo, por memória, àquilo que já não é, e o futuro é a alma se distendendo para aquilo que ainda não é no presente.
Kant entende o tempo como no pensamento, mas não meramente por uma distensão psicológica do tempo, pois, como saberíamos que o tempo entre o dormir o despertar passou? Então vem a objetividade do tempo em Newton, não no ente, mas no objeto.
Terminamos o tempo.
Espaço: nada há de empírico que não exista no espaço. Para perceber o pincel, ele tem que estar no espaço. Ele tem que ter as três dimensões. É o erro de Aristóteles, que concebeu o espaço como um acidente do ente, mas uma coisa é ocupar um lugar no espaço, e isso não se confunde com o próprio espaço. Kant também dá uma noção dessa concepção de espaço. Vejam: por abstração, poderíamos tirar toda essas cadeiras desta sala? Poderíamos eliminar Brasília? E o mundo? Tudo. Menos o quê? O próprio espaço. Ele não é um local, mas são as três dimensões. Para pensar um ente empírico, ele tem que ter um conjunto dimensional de coordenadas espaciais. Por isso o espaço também não pode pertencer a um objeto porque, se ele for removido pela abstração, o espaço vai junto com ele.
Assim, o espaço e tempo são duas estruturas que Kant denomina como estruturas de sensibilidade. São condições de possibilidade de conhecimento de todo ente empírico. Tempo e espaço são as condições. Ambos pertencem ao pensamento, não ao próprio objeto. Então, o pensamento já impõe ao pincel o espaço e tempo. São essas condições que permitem saber se aquela impressão é real ou não. Se não fosse o espaço e o tempo, jamais poderíamos saber se esse pincel é real ou mera ilusão.
Como John Nash, o matemático do filme Uma Mente Brilhante, sabia que aquela menina não era real? Porque ela não envelhecia, então não era um ente empírico porque o tempo não passava para ela; ou seja, ela não estava posta no tempo. Neste caso, se fosse apenas por condição empírica dos empiristas, o que teríamos? Uma comunidade de observadores, que poderia, por sua vez, ser psicótica. Todos veriam a menina. Bons exemplos são ilusões coletivas. Neste caso, vem um ponto interessante: o espaço e tempo são suficientes para dizer o que é determinada coisa? Dá para distinguir o apagador e o pincel? Não, porque ambos ocupam o espaço-tempo. Não podemos distinguir pincel e pessoa, e assim por diante apenas com o espaço e o tempo. Em outras palavras, o espaço e o tempo são necessários para determinarmos se a organização que é estabelecida pelo ego empírico é real ou não.
Kant aponta, então, que deve existir uma outra estrutura na razão que serve para discriminar os entes. Chama de estrutura de racionalidade. Por quê? Porque no final das contas é o que discrimina racionalmente o que é o ente e o que é objeto. A essas estruturas pertencem as categorias. Por exemplo: categoria “matéria”. Categoria “cor” = azul. Categoria “forma” = corpo cônico. E assim por diante. Quer dizer, a razão possui uma outra estrutura que são as categorias. Se não existem, não se saberá diferenciar as coisas, como pincel azul de pincel verde. O que são as categorias? São como o grande arquivo da razão. Na verdade podemos imaginar, quando falamos no realismo, como se fosse um grande arquivo. O pensamento possui um arquivo, que têm pastas, que são as categorias. A estrutura de racionalidade é esse grande disco rígido. Temos a categoria de substância, que corresponde ao sujeito; a de cor, que compreende o azul, o verde, e assim por diante. Matéria, forma, (matéria no sentido físico-químico), etc.
Como funciona? Como se dá a fisiologia do conhecimento? O ego empírico organiza. Mas só isso. As estruturas de sensibilidade tomam, efetuam sobre a organização do ego empírico e determinam sua realidade, ou aparência. E aí, o que faz? No momento em que o ego empírico determina a realidade, o pensamento busca nas categorias as divisões categóricas. E então, por exemplo, pincel, na categoria de substância, na categoria de cor = azul, então o pensamento busca, na memória (as categorias) qual é a que se aplica ao ente empírico. Nisso, o pensamento cria um signo mental.
O pincel atômico
é azul.
Este signo mental corresponde ao pincel atômico. Assim sendo, o enunciado é verdadeiro.
Quando, então, o enunciado sintético é falso? Quando essas estruturas não estão em jogo: podemos ter ilusão de ótica, ou não sabermos determinar o que é, porque não há interferência das categorias. Neste caso, Kant denomina ao conjunto dessas duas estruturas o ego transcendental. Então temos duas estruturas na razão: o empírico e o transcendental. O primeiro é responsável pela organização dos dados recepcionados e o segundo pela determinação da realidade e do ente. São estruturas da razão. Mas qual é a estrutura da razão que é o tribunal supremo? O ego transcendental. Ele tem todas as condições de possibilidade do conhecimento. Não é o ego empírico porque não se tem mais relativismo, e por mais que tenhamos erros, o ego transcendental corrige. Foi o que John Nash fez. Mas não é que a razão é um ou outro; ela é tanto um quanto outro. Ela tem essas duas estruturas, o ego empírico e o transcendental. Mas este último é o que contém as condições de critério para sabermos se aquele ente é o que é ou não é. Por isso, vem uma pergunta: o pincel existe? Sim. Mas ele tem independência de nosso pensamento? Não. Ele é um constructo do pensamento. É devido ao constructo do espaço-tempo, e também das categorias, que são todas do pensamento. É exatamente isso que Kant denomina fenômeno. O fenômeno, então, é um constructo do pensamento. O pincel não existe se não existe o pensamento sobre o pincel. O ego empírico é individual, mas o ego transcendental é comum. Não significa que se um sujeito morre o pincel deixa de existir. Um cachorro não vê pincel atômico, ele só tem ego empírico. O que tigre vê no pincel? Kant dirá: “não sei”. Ele não dirá que a substância é um conceito ilogicamente estabelecido. Quando observamos, construímos o objeto. Temos o espaço e o tempo. Se não fosse o ego transcendental, teríamos que ser Deus ou não passaríamos de autistas que não conseguiriam conversar sobre algo que realmente existe.
Então, Kant chega à conclusão: deve existir, necessariamente, uma estrutura da razão que é totalmente humana e que é comum a todos os seres humanos que determina exatamente o conhecimento. Essa estrutura é o ego transcendental. E está provado, segundo Kant, a necessidade dessa estrutura.
Ela não é postulado, e não é empírica. E Kant soluciona, segundo sua posição, os erros dos empiristas e dos realistas.
Ele dirá que o conhecimento é post rem. Mas o fenômeno não tem autonomia ao pensamento, pois é constructo dele. Para os empiristas, o fenômeno também é post rem, mas para eles há autonomia do fenômeno em relação ao pensamento. Kant vai dizer que tudo que é fenômeno é constructo; substância então não é, porque ele não sabe o que é substância. “Não sei o que é isso.” Neste caso, é claro que Kant concorda com Aristóteles quanto à tese da tabula rasa. As categorias são o quadro, mas o que eu pinto no quadro vai depender de cada um.
“Fenômeno” vem do grego. (Fainomenon).
Se não é fenômeno, é “númeno” (Noumenon). É o que está para a percepção, para os sentidos.
No ego transcendental, temos a razão pura teorética, que é a razão da ciência. E aí, então, o que são os númenos? Tudo que não é constructo do pensamento. Deus, por exemplo. Valores morais, como liberdade e igualdade também. O mundo como uma totalidade: temos como conceber empiricamente? Não, só seus objetos, mas não o próprio mundo. Kant diz: cosmologia. O que é o mundo? A esfera da ação moral, política e jurídica? Tudo são númenos. A esfera da religião e da metafísica e Deus são númenos; não pertencem à ciência. Esse é o erro dos realistas, e também dos empiristas que entendem que a razão científica pode entrar para provar ou não algo. De não se provar Deus não segue que Deus não existe. Dizer o contrário é dizer uma falácia.
Para fechar, a última pergunta: a razão, em suas duas grandes estruturas, o ego empírico e transcendental: é fenômeno ou númeno? Fenômeno? Mas ela não pode ser fenômeno porque assim ela seria constructo do pensamento, enquanto o lógico seria que este fosse constructo daquela ². Então ela é o número. Senão teríamos contradição aristotélica. Na verdade, a razão em Kant é Deus.
Daí, temos a dedução transcendental do ego, mas do ego teorético.
A crítica da razão pura estabelecerá o primeiro limite: o da ciência. Mas podemos estabelecer todo o critério ou conhecimento, então como se descobre qual é o tribunal supremo para a ação moral, para política, para a religião... O que fazer? Fazer a dedução do ego transcendental prático. Veremos na aula que vem.