Direito Civil

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Solidariedade passiva



A solidariedade passiva é o exemplo legítimo de solidariedade. Vimos na última aula a solidariedade ativa. O que é a solidariedade? É a obrigação de qualquer devedor ao pagamento de toda a dívida. Então vimos, quando estudamos a solidariedade, que existe, neste tipo de obrigação, os co-credores e os co-devedores. Ou seja, digamos que a obrigação seja uma prestação de R$ 400. Então o que os co-credores têm? Uma relação interna entre eles. Qual é essa relação? A relação interna significa dizer que cada credor tem para com os outros uma obrigação interna, e a solidariedade não é como a indivisibilidade, mas resulta da lei ou da vontade das partes, em que os sujeitos pactuam ser co-credores ou co-devedores de uma obrigação. O mesmo para os co-devedores. Se Eratóstenes vai a um banco tirar um empréstimo de R$ 400,00, o banco poderá dizer: “não vou te emprestar dinheiro porque você não tem um bom capital” ou então “porque você não tem um ativo circulante desejável.” O que Eratóstenes faz, então? Ele se une a seus compadres Filolau, Glauco e Heráclito e, unidos, ou, como se diz, in totum, conseguem tirar os 400 em empréstimo. Por quê? Un pour tous, tous por un. Todos são solidariamente responsáveis pela obrigação.

Outro exemplo, do próprio Professor Voltaire: uma seguradora vai cobrir o risco de uma construção, promovida por determinada construtora. O que acontece? A seguradora pode se achar não capacitada para cobrir aquele risco, pois é muito grande. Aconteceu isso na ponte Rio-Niteroi, quando do acidente na estrutura. A empreiteira que estava construindo a ponte conseguiu obter a cobertura e conseqüentemente a indenização, e várias co-seguradoras se obrigaram perante uma ou duas empreiteiras na construção da ponte. Então, houve uma solidariedade em que o risco foi repartido perante os outros co-credores. Isso porque um só co-credor, e aí seria o caso de solidariedade ativa, não teria condições de pagar aquele valor daquela indenização caso houvesse um sinistro. Então é exatamente isso: a solidariedade estabelece entre co-credores eco- devedores as relações internas, que são as relações estabelecidas entre os co-credores, e as relações internas estabelecidas entre co-devedores; também as relações externas, que são as relações entre co-credores e co-devedores.

Em primeiro foco, vejamos o art. 275:

        Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

        Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores.

Então o que significa a primeira parte? Anaxímenes pode receber de Eratóstenes os 400, que é o valor total. Ou pode receber de Eratóstenes R$ 300,00, ou então apenas R$ 100,00. Pode não haver o pagamento integral. Vejam a parte final do caput: se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. Significa que, se Eratóstenes pagou R$ 300,00, os demais continuarão responsáveis pelo pagamento dos R$ 400,00. Evidentemente que os demais devedores reembolsarão sua quota parte àquele que tiver pagado. Cada um poderá acionar seus companheiros da relação interna para receber o que lhe pagam. Lembrando: um por todos, todos por um.

Exemplo para entender o parágrafo único: eu aciono a co-devedora a Fátima, que deve juntamente com Ana e Lucas R$ 300 mil. Estou renunciando ao pagamento do Lucas e da Ana? Veja o art. 77, inciso III do Código de Processo Civil:

Seção IV
Do Chamamento ao Processo

        Art. 77.  É admissível o chamamento ao processo:  

        I - do devedor, na ação em que o fiador for réu; 

        II - dos outros fiadores, quando para a ação for citado apenas um deles; 

        III - de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum.

Fátima foi demandada. Ela pode pagar de pronto os 300 mil. Isso está dentro do capítulo da intervenção de terceiros. mais especificamente o chamamento ao processo. Na denunciação da lide, que é o art. 70, a seguradora poderá denunciar à lide o segurado. Acontece muito na prática quando um sujeito causa um acidente e é acionado pelo dono do veículo abalroado, mas este nem sabia que o responsável tinha um contrato de seguro. O segurado, por sua vez, denuncia a seguradora à lide, pois ela estará responsável além daquele limite da franquia. Isso também é uma forma de solidariedade. Se o sujeito tem um seguro, evidentemente que, na parte que sobejar a franquia, a seguradora será solidariamente responsável com o causador. O causador do acidente, em ação de regresso, poderá conseguir o premio com a seguradora.

O art. 276 guarda simetria com o art. 270, como bem apontado por Carlos Roberto Gonçalves, que vimos na aula anterior. Voltem a imaginar a relação de crédito que o grupo de credores composto por Anaxímenes, Bião, Crátilo e Demócrito tem para com Eratóstenes, Filolau, Glauco e Heráclito.

        Art. 276. Se um dos devedores solidários falecer deixando herdeiros, nenhum destes será obrigado a pagar senão a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível; mas todos reunidos serão considerados como um devedor solidário em relação aos demais devedores.

Glauco faleceu deixando seus filhos Galeno e Górgias. Neste caso, nenhum deles será obrigado a pagar algo que ultrapasse seu quinhão hereditário. Isso porque, de acordo com o Código de Processo Civil, os herdeiros não respondem por forças além da herança. Digamos então que o ativo de Glauco seja de R$ 300. Galeno e Górgias receberão esses 300, indo 150 para cada. Mas, como eles respondem também pelas dívidas do falecido no limite do quinhão hereditário, Galeno terá que pagar 50 e Górgias também 50.

Se os dois tivessem que cumprir uma obrigação indivisível, como a de entregar o touro reprodutor, eles deveriam vendê-lo de imediato e, com o valor apurado, pagar os credores.  

Art. 1792:

        Art. 1792. O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados.

Em outras palavras, o herdeiro não responde mais do que as forças da herança. O que é isso? É o que foi deixado pelo ativo e pelo passivo do espólio do de cujus. Se ele deixou R$ 300,00 como crédito, os herdeiros receberão esses 300. Mas se ele deixou também um passivo de R$ 100,00, cada um dos dois terá que pagar R$ 50. Eles repartirão os R$ 300,00, ou outros créditos que tenham de seu ativo, mas terão que pagar o quinhão hereditário das forças da herança daquela dívida h2 2100. As dívidas também entram no inventário, pois o pai era um co-devedor. Se se tratasse de um relógio ou de um diamante de 10 quilates, o diamante teria que ser vendido para se apurar dinheiro e pagar os credores.

Art. 277:

        Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.

Ou seja, vamos dizer que Filolau obteve a remissão, que é o perdão de dívida. Ou, eventualmente, houve o pagamento parcial, em que Filolau pagou R$ 100 a um dos credores. O que significa dizer que Eratóstenes, Glauco e Heráclito terão que pagar os R$ 300 faltantes.

Segunda parte: concorrência: os co-devedores deviam R$ 400. O que aconteceu? Filolau foi perdoado por Anaxímenes não dos R$ 400, mas de R$ 100, ou de R$ 200. Os outros, Eratóstenes, Glauco e Heráclito ainda terão que pagar os outros 200.

Art. 278:

        Art. 278. Qualquer cláusula, condição ou obrigação adicional, estipulada entre um dos devedores solidários e o credor, não poderá agravar a posição dos outros sem consentimento destes.

O legislador é mais detalhista no tratamento da solidariedade passiva. Traz mais previsões casuísticas. O que é cláusula? Posso fazer um contrato com Lucas, Fátima e Ana Maria, em que eles se obrigam a me pagar determinada quantidade de arroz. Fátima decide que, se o arroz não for pago até o dia de amanhã, ela pagará uma multa astreintes (cláusula penal) de 10% ao dia. Também se pode ter estabelecido uma condição com os três mas, logo em seguida, um deles faz um pacto adicional, chamado pacto adjecto, se obrigando a algo a mais. Se isso for feito, não se pode agravar a situação de outras pessoas se um dos devedores quiser se comprometer a algo a mais. Se um dos devedores quer eventualmente "dar um plus", esse plus é problema dele. Se três sujeitos vão ao banco tomar um empréstimo, um deles, por iniciativa própria, poderá ainda querer dar uma garantia fidejussória: colocar mais um fiador no jogo, ou dar uma garantia real, uma coisa. Esse fiador ou essa hipoteca oferecida não agravará a situação dos outros.

Art. 279:

        Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos devedores solidários, subsiste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.

Vamos dizer que, na relação entre Anaxímenes, Bião, Crátilo, Demócrito, Eratóstenes, Filolau, Glauco, e Heráclito, os devedores devem um touro reprodutor. O que acontece se o touro estava sob guarda de Heráclito, que é um dos devedores, que se descuida e deixa o animal morrer? Ela responderá por danos emergentes e lucros cessantes, mas os outros responderão pelo valor do touro.

Autor que esmiúça bem o Código: Carvalho dos Santos.

Art. 280:

        Art. 280. Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida.

O que é juros da mora? Não estudamos mora ainda, mas mora é o inadimplemento parcial da obrigação. Na verdade, a definição escolhida pelo professor é a de Maria Helena Diniz, que diz que mora é o retardamento injustificado do cumprimento da obrigação. Por exemplo: Heráclito deve entregar o touro hoje. Mas ele fica com preguiça, e resolve entregar daqui a 30 dias. Ele está, portanto, em mora. Em outras palavras, mora é demora, o atraso. Veremos isso em detalhes em aulas futuras. Então a mora, por vezes, pode deixar de interessar para o credor. Imagine que ele tivesse que receber um cavalo para disputar uma corrida. Se a corrida passou, não interessa mais aquela obrigação. Se ainda há mora para dar uma aula, que é uma obrigação de fazer, ao cumprir, assume-se pelo retardamento.

No contexto do artigo, vamos dizer que todos os devedores já haviam entregado os R$ 100 para Eratóstenes, que é um deles, mas este não entregou o total de R$ 400 para os credores. Daí fazemos alusão ao art. 394:

CAPÍTULO II
Da Mora

        Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

E também o art. 406, que traz os juros legais. Teoricamente, 1% ao mês.

CAPÍTULO IV
Dos Juros Legais

        Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Obrigação acrescida, referida no art. 280, é o efeito da mora.

“As palavras voam, o escrito fica.” Verba volens, manet scripta. Como corolário desse brocardo há o “quem paga mal, paga duas vezes.” Com o recibo temos a prova.

Art. 281:

        Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro co-devedor.

Devedor demandado: quando dizemos que corre uma demanda contra um sujeito de Brasília no Foro tal, significa que ele foi acionado judicialmente. Direito corresponde a uma obrigação, e uma ação ou pretensão corresponde uma exceção. Lembrem-se do conceito de anspruch, visto na aula de 3/9. Vamos rever o exemplo de Serpa Lopes, dos candelabros: o que é uma exceção comum, e o que é uma exceção pessoal? Filolau pode opor a Bião exceções, que nada mais são que defesas. Essa exceção pode ser pessoal ou comum. Exemplo de exceção comum é a prescrição. Por quê? Se o credor demandar uma ação de execução estribada num título executivo extrajudicial, e Filolau, que é o devedor, dizer: “negativo, não vou pagar porque essa dívida está prescrita.” Ora, a prescrição afeta os outros co-devedores. Essa é uma exceção comum. Agora, usando o exemplo de Serpa Lopes, se Filolau se compromete a entregar um candelabro de prata para Anaxímenes, Bião, Crátilo e Demócrito, quando Filolau pensou que eram candelabros de lata, significa que ele estava em erro, o que é uma exceção pessoal, que só a ele aproveita. Os demais terão que pagar os candelabros de prata.

Vamos ao art. 282:

        Art. 282. O credor pode renunciar à solidariedade em favor de um, de alguns ou de todos os devedores.

        Parágrafo único. Se o credor exonerar da solidariedade um ou mais devedores, subsistirá a dos demais.

Diga que Anaxímenes renuncia a solidariedade em favor de Eratóstenes. Ele pode também renunciar em favor de todos. Não deve acontecer muito na prática, a não ser que um dos credores tenha um grande apreço para com um dos devedores. A renúncia à solidariedade de um não aproveitará aos demais.

Art. 283:

        Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.

Isso é interessante. É a questão do insolvente. O que é mesmo insolvência? Novamente, lembrem-se da relação jurídica entre os credores e devedores. Aquele que paga inteiramente tem direito de exigir dos demais a sua quota. Isso já sabemos e é bem lógico. Não devemos confundir insolvência com falência, já que está é atribuída ao comerciante/empresário, enquanto a insolvência é para o devedor civil. O dinheiro, o capital é menor do que o passivo do indivíduo. A insolvência de um dos devedores não deverá prejudicar o crédito dos credores. Significa então que os demais devedores terão que assumir, repartidamente, o que o insolvente teria de pagar. Exemplo: Glauco tornou-se insolvente, e ele mais seus três colegas foram acionados para pagar a dívida de R$ 400. Significa então que os três restantes terão que pagar, cada, R$ 133,33. É uma questão matemática. Cada um ficou igualmente responsável pela parte que Glauco deveria pagar.