Direito Penal

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Apropriação indébita e estelionato



Tópicos:

  1. Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza
  2. Estelionato e outras fraudes
  3. Alienação de coisa alheia
  4. Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
  5. Defraudação
  6. Fraude na entrega da coisa
  7. Fraude em seguro
  8. Fraude em pagamento por meio de cheque
  9. Causas de aumento no crime de estelionato
  10. Duplicata simulada
  11. Abuso de incapazes
  12. Indução à especulação


Faltou ver, para fechar a sequência da aula passada, uma variante da apropriação indébita.

Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza

Art. 169:

        Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza:

        Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

        Parágrafo único - Na mesma pena incorre:

        Apropriação de tesouro

        I - quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da quota a que tem direito o proprietário do prédio;

        Apropriação de coisa achada

        II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias.

Acharemos na doutrina a diferença entre força da natureza e caso fortuito. Na prática, não há diferença.

Vamos entender o caso fortuito por meio de um exemplo. Diga que uma gorda vaca de fininho abandona a propriedade de seu dono de adentra na do vizinho. Este vê o parrudo animal, e logo começa a ordenhá-lo. Seu dono bate à porta do vizinho para reivindicar sua vaca, que lhe é negada. Assim temos um caso de apropriação de coisa havida por caso fortuito, pois o aproveitador se recusa a devolver o animal.

Força da natureza: vento ou rio que carregou um valioso papel, por exemplo, um título de crédito. Nem o dono e nem o “sortudo” fez nada para que o objeto chegasse a suas mãos. O objeto simplesmente veio ao encontro do agente, e ambos estão de boa-fé nesse momento. Na hora em que o proprietário procura o outro, reivindica a coisa, e o detentor recusa-a, está configurada a apropriação indébita do tipo do art. 169.

A diferença para a apropriação do art. 168 é que naquela a entrega é feita de boa-fé. Somente depois é que há inversão de animus.

Sobre o tesouro: a única questão que temos a levantar é que, sendo coisa valiosa achada, para o Direito Penal ela tem que ser achada em local edificado, um prédio: um imóvel, um terreno com qualquer coisa construída. Não é uma coisa achada num terreno. Se a coisa estiver no subsolo, não se aplica a regra do art. 169. Apropriar-se do tesouro é um tipo de apropriação indébita porque o Código Civil diz que, quando se acha a coisa valiosa, o valor tem que ser meado com o proprietário do terreno onde foi encontrado. O fato interessará ao Direito Penal quando alguém encontra o tesouro e se recusa a dar a cota do dono do terreno.

Apropriação indébita de coisa achada: qualquer coisa, em qualquer lugar. Não precisa ser necessariamente valiosa, mas tem que ter algum valor econômico. Valor sentimental não faz diferença para o Direito Penal por causa de seu caráter fragmentário, como já vimos. Então, ao se achar algo, a coisa deve ser entregue ao proprietário, ou então à delegacia, que é a autoridade competente.

O caso do inciso II contém um crime condicionado, que só se verificará se a coisa não for devolvida ao proprietário no prazo de 15 dias a partir do momento em que é achada. Quando temos crime condicionado, não temos possibilidade de tentativa. E, no caso da apropriação da coisa achada, temos uma briga doutrinária para saber qual seria a ação penal. Entende-se que seria uma ação penal privada. E aí, o que acontece? Não temos essa orientação dentro da lei, e a regra é que, quando o tipo for silente quanto à ação penal, ela deve ser pública incondicionada. Então, o que se faz? Só se pode entrar com queixa-crime se souber quem é o sujeito que encontrou e a detém sem vontade de devolver. É uma situação extremamente única. A previsão é pública, mas se aceita o início com queixa-crime.
 

Art. 170:

        Art. 170 - Nos crimes previstos neste Capítulo, aplica-se o disposto no art. 155, § 2º.

Desde o art. 168, temos a possibilidade de aplicar o mesmo privilégio do crime de furto. Qual era mesmo? Se era de pequeno valor a coisa, ou seja, de até um salário mínimo, e se a pessoa é primária, de bons antecedentes, pode-se mudar a pena de reclusão para detenção, diminuir de um a dois terços ou então aplicar só a pena de multa.
 

Estelionato e outras fraudes

Entramos agora no Capítulo VI do Título II, dos crimes contra o patrimônio.

Art. 171:

CAPÍTULO VI
DO ESTELIONATO E OUTRAS FRAUDES

        Estelionato

        Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

        Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

        § 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.

        § 2º - Nas mesmas penas incorre quem:

        Disposição de coisa alheia como própria

        I - vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisa alheia como própria;

        Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

        II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;

        Defraudação de penhor

        III - defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outro modo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;

        Fraude na entrega de coisa

        IV - defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém;

        Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

        V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro;

        Fraude no pagamento por meio de cheque

        VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.

        § 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

É o crime conto do vigário, do falsário, do golpe. Todos o conhecem pelo simples “171”, que virou inclusive apelido de gente. O que seria? Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, decorrente de dano, e, nesse caso, induz a pessoa em erro, a uma falsa percepção da realidade, se usando de artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

No furto, tínhamos a subtração da coisa contraria à vontade do legítimo possuidor ou proprietário. Na apropriação indébita, a pessoa entregava a coisa de boa-fé, mas quem recebia também o fazia de boa-fé. Essa é a diferença básica entre a apropriação indébita e o estelionato. Aqui, quem recebe já o faz de má-fé. É a pessoa, portanto, que se utiliza do bilhete premiado. Você cai no conto, paga-lhe de boa-fé a metade do valor estampado no bilhete (quantia que eles costumam exigir), e o golpista, quando embolsa seu dinheiro, já está de má-fé. Ele usou, no caso, de um artifício.

Artifício é qualquer fantasia, coisa material, documento.

Ardil: o próprio papo persuasivo, que induz a vítima em erro; a situação imaterial. Como incitar alguém a comprar algo. “Compre minha água que rejuvenesce!”

Quiromancia e derivados: estelionato ou não? A Constituição prevê liberdade de culto. A princípio, então, o indivíduo é livre para consultar sua bruxa ou mãe-de-santo, promotora do amor, Whoopi Goldberg em "Ghost", etc., pois tais práticas não deixam de ser cultos. O mesmo para quem oferece os serviços. Se, entretanto, o feiticeiro diz àquele que o consulta que tem habilidades para entrar em contato com mortos, entender seus sentimentos e encarnar para poder enviar uma mensagem para quem ainda se encontra na vida terrena, desde que pague uma importância simbólica de R$ 75,00, ele pratica estelionato. É claro que ele poderá alegar que não exigiu o dinheiro para contatar o além. Mas o verbo do tipo é obter. Ao receber, o crime está consumado. Vejam bem: “Obter vantagem ilícita ou indevida”.

O artigo fala em vantagem ilícita. A jurisprudência e a doutrina falam em vantagem ilícita ou indevida. Diz-se que a vantagem ilícita pode decorrer de jogos de azar. Caça-níqueis: a máquina pode ser programada para que retorne resultados favoráveis ao apostador somente uma vez por mês, cuspindo fora umas três moedas de cada vez. Quem joga está de boa-fé e cai no golpe. O sujeito participa do ilícito ao jogar, mas quem joga acredita que ganhará. Teríamos, então, a exclusão do crime? Negativo; a ilicitude do jogo não tem o condão de excluir o crime. A vítima continuou sendo vítima.

Algum prejuízo tem que ser causado, portanto, temos que ter valor econômico. Tem-se que induzir o sujeito passivo à falsa percepção da realidade e com isso obter o ganho econômico.

Em relação a qualquer outro meio fraudulento, temos um caso de interpretação analógica. Há poucos casos no Código Penal em que vemos interpretação analógica. Abre-se completamente o campo de incidência da norma penal. Temos, portanto, uma violação ao princípio da reserva legal. É um juízo de valoração, e encontramos na doutrina que isto é um elemento normativo do tipo: um conceito que o juiz terá que usar de sua experiência de vida para julgar.

Observação: não é caso de norma penal em branco, pois deveria haver uma outra norma, de qualquer hierarquia, dizendo o que é “meio fraudulento”, como: “consideram-se meios fraudulentos: [...]”, o que não existe.

No § 1º, temos uma causa de diminuição de pena. Temos também a previsão para o pequeno valor, se a pessoa não for reincidente. É a aplicação do privilégio do furto.

No § 2º, vemos uma falta de técnica legislativa por inversão da ordem lógica. Este parágrafo deveria ser o primeiro, seguindo o caput, para não gerar confusão com a causa de diminuição. Aqui começam as outras fraudes.

Alienação de coisa alheia: a partir do momento em que eu vendo, permuto, dou em pagamento; coloco em locação ou dou em garantia de dívida coisa alheia como própria, estou cometendo estelionato. Não na forma do caput do artigo 171, mas do inciso I do § 2º. Não há diferença na pena. Vamos entender como se dão asa três primeiras formas de alienação. Venda é a troca por dinheiro, permuta é a troca por mercadoria, dar em pagamento é entregar algo para pagar dívida. A partir do momento em que uso qualquer objeto que não me pertence para doá-lo, vendê-lo, colocá-lo em locação, recebendo um preço em função disso, dizendo que é meu, estou em estelionato. A utilização é indevida, e estou mantendo alguém em erro pois provavelmente deverei usar um artifício para tal feito, como uma escritura de imóvel falsificada. Também pode se dar com o uso de ardil, em que simplesmente convenço o comprador a adquirir aquele automóvel, cujo DUT eu também imprimi em casa; neste caso, usei ardil (o convencimento) e o artifício (o DUT falsificado). Também se fala em artifício para títulos de crédito.

O estelionato é um crime material, que necessita do ganho da vantagem indevida. Na extorsão, bastava haver a grave ameaça ou a violência para a consumação, e o recebimento seria o mero exaurimento do crime. No estelionato, se não recebo o valor que pretendo por circunstâncias alheias à minha vontade, já pratiquei a tentativa.

Há concurso de agentes quando alieno coisa alheia para alguém que adquire sabendo que tal objeto não é meu.

Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria: vender, permutar, dar em pagamento, garantir dívida usando coisa que me pertence, quando o objeto está gravado de ônus, ou é litigioso. O que seria algo inalienável? Gravado de cláusula de inalienabilidade, como as que vêm em herança: não se pode vender (alienar) imóvel que se herda do pai quando este estipulou no testamento: “passo meu apartamento para meu filho Leonardo, com a condição de que não o venda ou doe”. ¹  

Gravada de ônus reais: penhora sobre o bem, penhora judicial, usufruto.

Litígio: não só a penhora; duas ou mais pessoas disputam em juízo a propriedade de uma coisa. Se pende dúvida sobre a titularidade de uma gleba de terra, não posso transferi-la a alguém. Toda coisa que não poderia ser vendida, dada em pagamento, colocada em locação ou dada como garantia, se usada para tais fins, configurará estelionato de quem o faça.

Ou ainda, neste mesmo inciso: fiz um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel. Temos uma situação, de Direito Civil, de contrato com termo resolutivo. Mesmo depois de eu prometer a alguém que lhe venderia o imóvel, alieno para outro em prestações. Vender imóvel para duas pessoas, portanto, é estelionato. Quem não verifica a situação do imóvel no cartório de registro de imóveis cai em golpe.

Defraudação: penhor pignoratício. Eu pego uma joia da minha mãe, vou até a Caixa Econômica Federal, empenho e recebo um valor por ela. Estou empenhando algo, alienando coisa alheia como própria. Quando alieno a peça valiosa, ela fica guardada na Caixa como garantia. A posse da coisa ficou com o credor. Mas, no penhor pignoratício, a posse da coisa fica com o devedor, e usa-se a “cláusula constituti: a posse da coisa é fictamente transferida, mas ela fica com o antigo proprietário na condição de depósito. Assim, na posse de fato da joia, a pessoa passa-a para frente, mas já recebeu um valor por ela, da Caixa. Em relação à minha mãe, cometi um crime de furto. Em relação à pessoa da Caixa, cometi estelionato.

Fraude na entrega da coisa: também incorremos em estelionato quando prometemos entregar uma coisa e entregamos outra. Faço um negócio, e acerto de mandar a alguém um creme redutor de banha. A pessoa fica esperançosa. Quando abre o pacote que eu enviei, trata-se de um potinho de Hipoglós. A fraude também pode ser praticada em relação à quantidade da coisa, não só à natureza. Exemplo: colocar ímã sob uma balança para simular um peso diferente de um produto vendido a granel. O que acontece muito nas transações de café. Você acerta comigo de adquirir 100 sacas de café selecionado a mão, mas te envio café ensacado aleatoriamente, de qualidade evidentemente inferior. Isso é fraude na entrega da coisa. Também ocorre nas usinas de açúcar.

Restaurantes: também praticam estelionato se mentem na quantidade ou induzem o freguês em erro ao exibir fotos enormes, induzindo-o a comprar uma comidinha que não mata a fome. A foto do cardápio é um artifício.
 

Fraude em seguro

É aqui que falamos na autolesão, que começamos a comentar quando estudamos as lesões corporais. Sabemos que a autolesão não é punida, salvo se for com o intuito de receber indenização de seguro. O sujeito que se mutila não pratica o crime de lesão corporal em nenhuma hipótese, mas a vítima da conduta de se automutilar é a seguradora, não o próprio sujeito desafortunado. No caso da fraude para recebimento de indenização em função de seguro, destruímos parcial ou totalmente uma coisa para receber um seguro. Exemplo: você acaba de comprar um Bugatti Veyron 16.4, e dias depois batem nele, arranhando-o de leve, mas comprometendo o bom visual. Muito irritado, você toma a decisão de jogá-lo logo dentro do Lago Paranoá, o que lhe renderá, pelo desaparecimento, um valor de seguro bem maior. Quando a seguradora encontrar o que sobrou do carro, porque ela vai encontrar, você será acusado de estelionato.

Quanto ao próprio corpo, o sujeito pode também pensar em agravar uma doença para receber seguro. A autolesão com fins a receber valor de seguro é o único caso em que não precisamos do recebimento do valor para que o crime se consume. Em todos os demais o recebimento é necessário para que se configure o crime.

Aí que temos um caso que ficou bastante famoso: um cidadão curiosamente contratou um seguro para suas mãos e, em seguida, pediu à namorada que as cortasse. Os dois responderam por estelionato em concurso de agentes. Com uma aventura tão bem pensada como esta, a intenção do agente foi descoberta quando a namorada resolveu contar tudo à polícia.
 

Fraude em pagamento por meio de cheque

Muito comum. Encontramos na doutrina duas situações sobre o estelionato de cheques: uma é a utilização de cheque falso. Isso seria fraude no pagamento de cheque, ou seria só a situação do caput do artigo? A pena é a mesma, mas devemos saber a sutil diferença para fazer provas de concurso. Cheque falso é artifício, então estamos no caput. Mas veja: se o cheque é verdadeiro, e emito-o sabendo que não tem fundo, isso não será propriamente um artifício. Está materializado o crime de fraude em pagamento por meio de cheque, e não estamos mais no caput, mas no inciso VI do § 2º.

Cheque pós-datado deixa de ser considerado cheque como título comercial e passa a ser uma promessa de pagamento. Ordem de pagamento é uma coisa, promessa de pagamento é outra. Isso tem substancial chance de cair em prova.

A segunda situação com relação ao cheque: emito o cheque verdadeiro, tenho o dinheiro em conta, mas frustro o pagamento, mandando sustá-lo, mentindo ao banco dizendo que o talonário foi furtado, ou correndo ao terminal de autoatendimento para sacar o dinheiro da conta antes que o cheque seja debitado.
 

Causas de aumento no crime de estelionato

Temos causa de 1/3 se o estelionato for cometido contra pessoa jurídica de direito público, entidade popular, de assistência social ou a instituições beneficentes.
 

Duplicata simulada

Art. 172:

        Duplicata simulada

        Art. 172 - Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado. 

        Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.  

        Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá aquêle que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas.

Emitir nota de venda falsa, ou em duplicidade. O que seria isso? vamos entender com um exemplo.

A, fábrica de café, é procurada por C, comerciante, interessado em adquirir duas toneladas do produto, para ir buscá-las em B, filial de A. C, entretanto, não dispõe de dinheiro suficiente para a quantidade que deseja comprar, então convence o funcionário de A a receber a quantia suficiente para comprar apenas uma tonelada, desde que este emita uma duplicata em que fique discriminado que duas toneladas foram adquiridas. O corrupto empregado de A, então, redige os dois títulos: um, que ficará em poder da fábrica A, com a informação verdadeira: a venda de uma tonelada de café, certificando que C pagou o preço certo por ela; e outro, falso, em que consta que duas toneladas foram adquiridas, documento esse entregue a C, que por sua vez o apresentará a B para retirar as duas toneladas. B, naturalmente, irá tomar o título que C lhe apresentou para cobrar de A pela saída da mercadoria. Mas, quando o preposto de B comparece a A e lhe mostra o documento atestando que duas toneladas foram vendidas, A confronta-o com o documento original e verdadeiro, que retivera, em que consta que apenas uma tonelada foi comprada. B saiu prejudicado, C saiu em vantagem indevida e o funcionário de A deverá receber, por fora, seu agrado. Assim, temos o crime de duplicata simulada.

Por que não seria um estelionato? Na verdade é sim, em essência; o agente obtém, para si ou para outrem, vantagem indevida mantendo outro em erro, utilizando documento falso. Mas essa conduta foi prevista no art. 172, separada do art. 171, para que se tenha maior segurança dos títulos comerciais e mercantis. Qual é o cuidado que temos que ter? Quem comete o estelionato da duplicata simulada é quem emite. O verbo do tipo do art. 172 é emitir. C comete o quê? Ele responde sim pela duplicata simulada porque está em concurso de agentes, e ganhou a vantagem em conluio com A.

Ele não responde pelo uso do documento falso pois sua utilização foi um meio para atingir o fim, que é o crime da duplicata simulada.

Parágrafo único: nas mesmas penas incorrerá quem falsificar ou alterar o livro de registro de duplicatas. Toda instituição mercantil e comercial que utiliza duplicatas e aceita pagamento futuro tem necessariamente que manter um livro de registro de duplicatas. Quando se usa um segundo livro, falso, falamos no famoso caixa dois. Um é usado para mostrar à fiscalização, e outro é usado pelo comerciante para registrar suas tramoias.
 

Abuso de incapazes

Art. 173:

        Abuso de incapazes

        Art. 173 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, de necessidade, paixão ou inexperiência de menor, ou da alienação ou debilidade mental de outrem, induzindo qualquer deles à prática de ato suscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízo próprio ou de terceiro:

        Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.

Fala-se aqui em qualquer forma de estelionato cometida contra incapaz, ou seja, menor de 18 anos, ou alienado ou débil mental. A partir do momento em que cometo abuso contra tais sujeitos passivos, que entregam a coisa de boa-fé, estou incorrendo no crime de abuso de incapazes. Pergunta-se: é crime próprio? Não, pois para o ser o sujeito ativo, o agente tem que ser qualificado, não a vítima.
 

Indução à especulação

Art. 174:

        Induzimento à especulação

        Art. 174 - Abusar, em proveito próprio ou alheio, da inexperiência ou da simplicidade ou inferioridade mental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ou aposta, ou à especulação com títulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saber que a operação é ruinosa:

        Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

Falseia-se a realidade, e faz-se com que a vítima, em função de uma reduzida capacidade intelectual, não por debilidade mental, mas por ignorância, inicie a prática de jogos ou a compra de títulos de mercadorias, quando o sujeito ativo sabe que ela não receberá nada. Exemplos de pessoas que podem ser sujeitos passivos deste crime são o homem rústico e a dona-de-casa tradicional, que não frequentou escola.

Atenção para uma situação peculiar: se a ignorância da vítima não é alegada, o autor está em estelionato na forma do art. 171 e pode pegar de 1 a 5 anos de reclusão. Se, no entanto, dizemos que o autor induziu a vítima à prática de jogos ou a comprar um título, aproveitando de seu discernimento menos privilegiado, sua pena será de somente 1 a 3 anos. Dentro do estelionato, portanto, é muito mais fácil a pena variar, para cima, em razão da primeira fase da dosimetria, quando o juiz sopesa as circunstâncias judiciais do art. 59. Um disparate; se a vítima aqui é mais fraca, ela deveria receber proteção adicional, e não inferior. Fica para o promotor e para a defesa alegar o que lhes for mais conveniente: o promotor deve aplicar o art. 171, dizendo que se trata de uma pessoa de conhecimento normal, enquanto o advogado, para minorar a situação de seu cliente, deve alegar que a vítima era “burrinha”. É manifesta a falta de técnica legislativa. Temos críticas enormes na doutrina e na jurisprudência.


1 – Veja a nota de Direito Civil de 20/10, na parte de pagamento com sub-rogação.