Vamos conversar hoje sobre um momento histórico que é a transição
que irá conduzir ao declínio do feudalismo e à ascensão do capitalismo. É a
situação que se coloca na modernidade.
O declínio do feudalismo se manifesta desde 1200 e se
consumará em no início do século XIX. Significa que os modos de produção não
são objeto de mágica desaparição na história. Trata-se de processos
destitutivos, lentos. Foi o processo que mais consumiu dinheiro no milênio e na
história da humanidade. Ao passo que uma forma de organização da sociedade
declina, outra começa sua ascensão. A forma de organização da sociedade agora é
liberal e capitalista.
Portanto o renascimento é o interregno, o hiato entre o
mundo feudal e o mundo capitalista. O mundo é feudal ainda, mas se prepara para
ser capitalista. Essa perda de poder dos senhores feudais é um dos momentos
mais sangrentos da história da humanidade, perdendo somente para o século XX.
O renascimento, que abrange aproximadamente o período do
século XIII ao XVI, é o momento mais extraordinário em termos culturais. A
estética encobriu um jogo de fenômenos, alguns altamente dramáticos e outros altamente
sangrentos.
A partir do renascimento temos a manifestação da jusfilosofia
moderna. O primeiro filósofo da época é Nicolau Maquiavel. Para chegar nele,
precisamos necessariamente passar pelo renascimento.
A expressão renascimento é por si só reveladora. Como o
próprio nome diz, é um renascimento, um ressurgimento dos modelos sociais e
culturais da antiguidade clássica e do paganismo. Trata-se do estabelecimento
de uma síntese: se tratarmos de forma hegeliana, temos o Paganismo como tese, o
Cristianismo como antítese e, como síntese, esse fenômeno complexo que vamos
estudar agora.
O que pretende, na essência, o renascimento? Resgatar os
modelos pagãos de vida, contestando a dominação cristã na história. O
cristianismo institucional passa a ser contestado em todos os aspectos.
O princípio fundamental do modelo pagão é que o homem é a medida de todas as coisas. “Se
não é mais Deus, que passe a sociedade da etapa do feudalismo cristão.” É o
princípio motor do renascimento.
Só que o renascimento é um fenômeno de tal tamanho que teve
repercussão na vida econômica, política, social, jurídica, e também nas ideias
e valores. É preciso que examinemos essas partes, unificando-as. Daí
entenderemos a transição para a modernidade liberal burguesa.
Por onde começamos? Podemos começar pelo Direito e
política. É a parte em negrito do esquema; nas próxima aula vamos
concluir a parte de Direito e Política no renascimento e vamos, na
segunte, para os valores e então para a economia.
O Direito e a política
no renascimento
Do ponto de vista do Direito e da política, o mundo feudal
era, a princípio, um consórcio, um composto binário do Direito Canônico com o
Direito Germânico. Reportamo-nos à dimensão legal, e depois às circunstâncias
de poder. Esse era o mundo medieval, pois a Igreja cria o seu Direito, fazendo
a transição do mundo escravista da antiguidade para o mundo feudal. No
feudalismo pretendia-se realizar a disciplina social da vida não pelo Direito,
mas pela Teologia. E, assim, disciplinar o mundo, tanto pela Teologia quanto pelo
Direito que a Teologia inspira. Daí vem o conceito de cânon, que serviu, a
princípio, para disciplinar as ordens religiosas rebeldes.
É um Direito que pretendeu ser um substitutivo do Direito
Romano. Aplicava-se a todos os homens exceto nas questões territoriais. O
Direito Canônico não tinha tradição de intervenção nas questões territoriais,
além de terem os bárbaros trazido consigo as instituições sociais, que faziam
referência fundamental à terra. O Direito da terra era o Direito Germânico.
Quando falamos de escravismo, falamos na primeira sociedade
a criar riqueza, mas era uma riqueza da terra. Era o mundo romano,
eminentemente latifundiário. Ao falar de feudalismo, falamos numa sociedade que
transformou a riqueza em riqueza... da terra! É a coisa que não muda. Entre o
feudalismo e o capitalismo, pela primeira vez se marchará para uma fase em que
a fonte de riqueza não é a terra. A manufatura com aplicação da ciência e
tecnologia dispensa a terra.
Mas o feudalismo, que se assentava na terra, e estabelecia a
disciplina jurídica da terra pelo Direito germânico, trazia a predominância
absoluta da fé. O Direito Canônico não precisava desenvolver institutos
territoriais, pois o Direito Germânico já satisfazia essa demanda. Assim, o Direito
germânico disciplinava as relações da terra, enquanto o Direito Canônico
disciplinava o resto da vida. Foi o esforço binário que predominou na era medieval.
Que “resto da vida” era esse? Todas as relações entre homens
que não tenha procedência territorial, substituindo o Direito Romano, mas ao
mesmo tempo nele se inspirando.
Só que, por volta do ano 1200, conseguiu-se navegar
novamente no Mar Mediterrâneo. O feudalismo centralizou a história da
humanidade na terra, e não no mar. Feudo
quer dizer “gado”, “rebanho”. O feudalismo não tinha nenhuma natureza
mercantil, a princípio. Inibe o comércio e a cidade, até porque o feudalismo
está centrado em si mesmo, e o “si mesmo” era a terra. A vida era
hermeticamente fechada na terra e nas aldeias feudais. As aldeias eram a
esquina do mundo. Por isso havia a possibilidade de se desacreditar o Direito
Romano, repudiando-o: Estado, Direito, advogado, justiça e liberdade, para que
se afirmasse a alternativa: Igreja, Teologia, Padre, Salvação, Eternidade. Nessa
sociedade tínhamos um Direito que trazia consigo a inspiração teológica do
Direito germânico. Até que, em 1200, restaurou-se o comércio e o mar começou a
transformar a terra.
Nenhum dos dois Direitos, nem o Canônico nem o Germânico,
tinham a tradição de trato com as questões mercantis. O germânico era puramente
territorial, e só resolvia questões relativas à pecuária e agricultura, e estabelecia
formas de partilha da riqueza agrária. O Direito Canônico também não tinha
dispositivos mercantis, porque era literal, institucional, plasmado na Igreja,
primeiro para disciplinar as ordens religiosas, depois para disciplinar o resto
do mundo, mas esse “resto do mundo” era um ambiente externo ao feudo em que o comércio
era inibido. Com a transformação do feudalismo sai-se
da terra em busca de mercado, e onde há gente há mercado. Fora dos feudos, além
das muralhas (burgos) se estabeleceram os locais de compra e venda.
O mar, também, trazia consigo a possibilidade de se fazer
comércio a longa distância. Nessa hora passou-se a ter uma necessidade de
segurança jurídica. O que se precisava, portanto, era a restauração do Direito
Romano, que volta ao centro da história. Ele superdesenvolvera, na antiguidade,
as relações privadas, e continha toda a terminologia e institutos para resolver
as questões entre particulares.
A cidade abriu o comércio. Restaurou-se a cidade, o mar, o
comércio e o Direito Romano. O Direito Romano tinha essa capacidade histórica
de resolução das questões privadas porque as instituições de direito privado
foram desenvolvidas por muitos séculos durante os tempos prósperos de Roma.
Contratar, se obrigar, e assim por diante. Nesse momento passou a ser necessária
uma disciplina para o comércio.
O sistema, então, não era mais binário, mas ternário: o
Direito era Germano-Romano-Canônico. Um Direito complexo, de três facetas e,
nele, a regra geral do Direito feudal é a hierarquia estamental da sociedade.
Aqui devemos nos lembrar de três formas clássicas de
hierarquia social: castas, estamentos e classes. São três formas clássicas de
estratificação social. Castas remetem, originariamente, à cor. Tinham uma
natureza étnica. Uma etnia tribal reivindicava superioridade sobre as demais,
que iam sendo conquistadas. A forma mais acabada de casta que temos hoje em dia
é na Índia. No espírito central da sociedade fechada de castas, morre-se onde
nasceu. Não há mobilidade social. Não pode ascender nem descender na hierarquia
das castas. É uma condenação social à morte no local onde nasceu.
As sociedades de castas não desapareceram. Existem castas
ainda, e são reinantes sobre a vida. Uma casta que costuma se apontar é a casta
do capital financeiro internacional. É uma classe democrática? Não. É um
comércio de uma mercadoria chamada dinheiro que se autorreferencia na história,
faz sua autopoiesis. Chega a fazer com
que a história gire em torno de si mesma. As castas não despareceram na
história; somente deixaram de ter um papel central. Hoje as castas existem
residualmente.
Os estamentos também não desapareceram. Um exemplo foi a sociedade
feudal. Estamento, portanto, é um grupo fechado dentro de uma sociedade marcada
pela capacidade apenas relativa de mobilidade social, ao contrário da de
castas, que não admite a mobilidade, com um ethos,
uma ética própria e com espírito fortemente corporativo. É mais do que uma
camada; é um grupo com essas características.
Os militares se organizam em castas ou estamentos? São um
grupo fechado. Desenvolvem ética própria, centrada na disciplina e hierarquia,
mas, mais ainda, a honra. Não se pode
desonrar a hierarquia, a farda e a disciplina. A honra é para o militar o que o
crédito é para o comerciante. Um militar desonrado não será militar, assim como
um comerciante sem crédito não será comerciante. Há até solenidade de expulsão
da corporação. Isso é estamento.
E “classes”, o que são? São macrogrupos sociais abertos
definidos pela sua relação de propriedade ou não propriedade com os meios de
produção fundamentais da sociedade. Define-se pela ‘propriedade material’ ou ‘não
propriedade material’. São meios de produção fundamentais da sociedade:
capital, terra, serviços, ciência, tecnologia, trabalho. Se produz com a
conjugação de todos esses meios. Uma empresa complexa tem tudo isso. Uma classe
que não tenha nada disso é a dos excluídos. A classe que só tenha trabalho pode
ser chamada de proletária. Uma classe
que só tenha terra pode ser chamada de camponesa.
A que só tenha serviços pode ser chamada de classe
média urbana.
Na sociedade de classes pode-se ascender e descender.
Na sociedade estamental há mobilidade social, mas se limita
à mobilidade horizontal, nunca vertical. Mesmo com as elevações de patentes
dentre militares: mesmo Marechal, não se deixa de ser militar para ser um
grande magnata.
Para concluir esse assunto: os símbolos de hierarquia social
em todos os modelos: o dinheiro, poder e prestígio. Quem tem dinheiro não
necessariamente tem poder. Quem tem prestigio não necessariamente tem dinheiro.
Há também os fatores
reais de poder, aquele conceito de
Ferdinand Lassale.¹ Quem tem dinheiro e não conseguiu o poder ainda poderá
conseguir este último, pois não se chega ao poder sem dinheiro, segundo o
suíço. Essa frase tem corolários contemporâneos, como os dizeres de Warren
Buffet: “Não existe almoço grátis”. ²
O que queremos dizer com tudo isso é que, com a sociedade
feudal estamental, a justiça era a justiça estamental, e não universal. Não
havia uma justiça que se aplicasse a todos os homens, pois seria um princípio
democrático numa sociedade aristocrática. Cada hierarquia social tem seu juízo.
Um aristocrata não poderia ser julgado por um tribunal de artesãos. Significa
que não havia regras gerais, que se aplicassem a todos. É um Direito casuístico
e discricionário. É um Direito que, afinal, iria reger os reinos cristãos, na
base, aplicando-se o Direito germânico, com cada um em seu feudo, com o
estatuto ditado pelo barão da terra. Contendas entre vassalos eram resolvidas
pelo senhor. Ele cria regras econômicas, sociais, jurídicas e políticas em seu
feudo, segundo o costume germânico. Era um Direito consuetudinário marcado pela
oralidade. Era um Direito sem Estado, centrado na família. Dentro da família,
transformava-se o pai na grande autoridade, para resolver todas as contendas, e
aplicar aqui os ordalhos. Banho de
água fervente, caminhada sobre brasas, cortar a língua para ver se saía sangue.
Regra desse mundo germânico era a guerra. Era a regra
fundamental do mundo germânico, a guerra para limpar a honra maculada do pai de
família. Ninguém deveria macular o nome do pai. Em nome dele fazia-se guerra. Se
duas parentelas estavam em conflito, como a
parentela A fazer uma desfeita pública ao chefe da parentela B, B buscava lavar
com sangue da parentela A a mancha na honra. Em outras ocasiões, depois de
desrespeitada, antes de fazer a guerra, a parentela B enviava um embaixador ao
território da parentela A, carregando uma bandeira branca, perguntar se esta
queria a guerra ou se queriam reparar a desfeita mediante a doação de algumas
cabeças de gado. Trocavam-se coisas por honra. Lavava a honra com cabeças de
gado. Que sutileza!
Esse era o Direito Germânico que reinava. Nos reinos
cristãos, a autoridade local era o rei, mas todos estavam sob a égide do papa.
Portanto, quando os reinos cristãos se tornam reinos marcados pela prática
mercantil, eles passaram a ter de adotar o Direito Romano também. O que
acontecerá nesses reinos é que se estabelecerá um embrião do Direito Moderno.
Os mercadores irão querer transacionar segundo as suas próprias regras, de
maneira costumeira. Daí começaram a construir o Direito Comercial da
modernlidade.