Filosofia do Direito

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O Renascimento



Vamos conversar hoje sobre um momento histórico que é a transição que irá conduzir ao declínio do feudalismo e à ascensão do capitalismo. É a situação que se coloca na modernidade.

O declínio do feudalismo se manifesta desde 1200 e se consumará em no início do século XIX. Significa que os modos de produção não são objeto de mágica desaparição na história. Trata-se de processos destitutivos, lentos. Foi o processo que mais consumiu dinheiro no milênio e na história da humanidade. Ao passo que uma forma de organização da sociedade declina, outra começa sua ascensão. A forma de organização da sociedade agora é liberal e capitalista.

Portanto o renascimento é o interregno, o hiato entre o mundo feudal e o mundo capitalista. O mundo é feudal ainda, mas se prepara para ser capitalista. Essa perda de poder dos senhores feudais é um dos momentos mais sangrentos da história da humanidade, perdendo somente para o século XX.

O renascimento, que abrange aproximadamente o período do século XIII ao XVI, é o momento mais extraordinário em termos culturais. A estética encobriu um jogo de fenômenos, alguns altamente dramáticos e outros altamente sangrentos.

A partir do renascimento temos a manifestação da jusfilosofia moderna. O primeiro filósofo da época é Nicolau Maquiavel. Para chegar nele, precisamos necessariamente passar pelo renascimento.

A expressão renascimento é por si só reveladora. Como o próprio nome diz, é um renascimento, um ressurgimento dos modelos sociais e culturais da antiguidade clássica e do paganismo. Trata-se do estabelecimento de uma síntese: se tratarmos de forma hegeliana, temos o Paganismo como tese, o Cristianismo como antítese e, como síntese, esse fenômeno complexo que vamos estudar agora.

O que pretende, na essência, o renascimento? Resgatar os modelos pagãos de vida, contestando a dominação cristã na história. O cristianismo institucional passa a ser contestado em todos os aspectos.

O princípio fundamental do modelo pagão é que o homem é a medida de todas as coisas. “Se não é mais Deus, que passe a sociedade da etapa do feudalismo cristão.” É o princípio motor do renascimento.

Só que o renascimento é um fenômeno de tal tamanho que teve repercussão na vida econômica, política, social, jurídica, e também nas ideias e valores. É preciso que examinemos essas partes, unificando-as. Daí entenderemos a transição para a modernidade liberal burguesa.

Por onde começamos? Podemos começar pelo Direito e política. É a parte em negrito do esquema; nas próxima aula vamos concluir a parte de Direito e Política no renascimento e vamos, na segunte, para os valores e então para a economia.

 

O Direito e a política no renascimento

Do ponto de vista do Direito e da política, o mundo feudal era, a princípio, um consórcio, um composto binário do Direito Canônico com o Direito Germânico. Reportamo-nos à dimensão legal, e depois às circunstâncias de poder. Esse era o mundo medieval, pois a Igreja cria o seu Direito, fazendo a transição do mundo escravista da antiguidade para o mundo feudal. No feudalismo pretendia-se realizar a disciplina social da vida não pelo Direito, mas pela Teologia. E, assim, disciplinar o mundo, tanto pela Teologia quanto pelo Direito que a Teologia inspira. Daí vem o conceito de cânon, que serviu, a princípio, para disciplinar as ordens religiosas rebeldes.

É um Direito que pretendeu ser um substitutivo do Direito Romano. Aplicava-se a todos os homens exceto nas questões territoriais. O Direito Canônico não tinha tradição de intervenção nas questões territoriais, além de terem os bárbaros trazido consigo as instituições sociais, que faziam referência fundamental à terra. O Direito da terra era o Direito Germânico.

Quando falamos de escravismo, falamos na primeira sociedade a criar riqueza, mas era uma riqueza da terra. Era o mundo romano, eminentemente latifundiário. Ao falar de feudalismo, falamos numa sociedade que transformou a riqueza em riqueza... da terra! É a coisa que não muda. Entre o feudalismo e o capitalismo, pela primeira vez se marchará para uma fase em que a fonte de riqueza não é a terra. A manufatura com aplicação da ciência e tecnologia dispensa a terra.

Mas o feudalismo, que se assentava na terra, e estabelecia a disciplina jurídica da terra pelo Direito germânico, trazia a predominância absoluta da fé. O Direito Canônico não precisava desenvolver institutos territoriais, pois o Direito Germânico já satisfazia essa demanda. Assim, o Direito germânico disciplinava as relações da terra, enquanto o Direito Canônico disciplinava o resto da vida. Foi o esforço binário que predominou na era medieval.

Que “resto da vida” era esse? Todas as relações entre homens que não tenha procedência territorial, substituindo o Direito Romano, mas ao mesmo tempo nele se inspirando.

Só que, por volta do ano 1200, conseguiu-se navegar novamente no Mar Mediterrâneo. O feudalismo centralizou a história da humanidade na terra, e não no mar. Feudo quer dizer “gado”, “rebanho”. O feudalismo não tinha nenhuma natureza mercantil, a princípio. Inibe o comércio e a cidade, até porque o feudalismo está centrado em si mesmo, e o “si mesmo” era a terra. A vida era hermeticamente fechada na terra e nas aldeias feudais. As aldeias eram a esquina do mundo. Por isso havia a possibilidade de se desacreditar o Direito Romano, repudiando-o: Estado, Direito, advogado, justiça e liberdade, para que se afirmasse a alternativa: Igreja, Teologia, Padre, Salvação, Eternidade. Nessa sociedade tínhamos um Direito que trazia consigo a inspiração teológica do Direito germânico. Até que, em 1200, restaurou-se o comércio e o mar começou a transformar a terra.

Nenhum dos dois Direitos, nem o Canônico nem o Germânico, tinham a tradição de trato com as questões mercantis. O germânico era puramente territorial, e só resolvia questões relativas à pecuária e agricultura, e estabelecia formas de partilha da riqueza agrária. O Direito Canônico também não tinha dispositivos mercantis, porque era literal, institucional, plasmado na Igreja, primeiro para disciplinar as ordens religiosas, depois para disciplinar o resto do mundo, mas esse “resto do mundo” era um ambiente externo ao feudo em que o comércio era inibido. Com a transformação do feudalismo sai-se da terra em busca de mercado, e onde há gente há mercado. Fora dos feudos, além das muralhas (burgos) se estabeleceram os locais de compra e venda.

O mar, também, trazia consigo a possibilidade de se fazer comércio a longa distância. Nessa hora passou-se a ter uma necessidade de segurança jurídica. O que se precisava, portanto, era a restauração do Direito Romano, que volta ao centro da história. Ele superdesenvolvera, na antiguidade, as relações privadas, e continha toda a terminologia e institutos para resolver as questões entre particulares.

A cidade abriu o comércio. Restaurou-se a cidade, o mar, o comércio e o Direito Romano. O Direito Romano tinha essa capacidade histórica de resolução das questões privadas porque as instituições de direito privado foram desenvolvidas por muitos séculos durante os tempos prósperos de Roma. Contratar, se obrigar, e assim por diante. Nesse momento passou a ser necessária uma disciplina para o comércio.

O sistema, então, não era mais binário, mas ternário: o Direito era Germano-Romano-Canônico. Um Direito complexo, de três facetas e, nele, a regra geral do Direito feudal é a hierarquia estamental da sociedade.

Aqui devemos nos lembrar de três formas clássicas de hierarquia social: castas, estamentos e classes. São três formas clássicas de estratificação social. Castas remetem, originariamente, à cor. Tinham uma natureza étnica. Uma etnia tribal reivindicava superioridade sobre as demais, que iam sendo conquistadas. A forma mais acabada de casta que temos hoje em dia é na Índia. No espírito central da sociedade fechada de castas, morre-se onde nasceu. Não há mobilidade social. Não pode ascender nem descender na hierarquia das castas. É uma condenação social à morte no local onde nasceu.

As sociedades de castas não desapareceram. Existem castas ainda, e são reinantes sobre a vida. Uma casta que costuma se apontar é a casta do capital financeiro internacional. É uma classe democrática? Não. É um comércio de uma mercadoria chamada dinheiro que se autorreferencia na história, faz sua autopoiesis. Chega a fazer com que a história gire em torno de si mesma. As castas não despareceram na história; somente deixaram de ter um papel central. Hoje as castas existem residualmente.

Os estamentos também não desapareceram. Um exemplo foi a sociedade feudal. Estamento, portanto, é um grupo fechado dentro de uma sociedade marcada pela capacidade apenas relativa de mobilidade social, ao contrário da de castas, que não admite a mobilidade, com um ethos, uma ética própria e com espírito fortemente corporativo. É mais do que uma camada; é um grupo com essas características.

Os militares se organizam em castas ou estamentos? São um grupo fechado. Desenvolvem ética própria, centrada na disciplina e hierarquia, mas, mais ainda, a honra. Não se pode desonrar a hierarquia, a farda e a disciplina. A honra é para o militar o que o crédito é para o comerciante. Um militar desonrado não será militar, assim como um comerciante sem crédito não será comerciante. Há até solenidade de expulsão da corporação. Isso é estamento.

E “classes”, o que são? São macrogrupos sociais abertos definidos pela sua relação de propriedade ou não propriedade com os meios de produção fundamentais da sociedade. Define-se pela ‘propriedade material’ ou ‘não propriedade material’. São meios de produção fundamentais da sociedade: capital, terra, serviços, ciência, tecnologia, trabalho. Se produz com a conjugação de todos esses meios. Uma empresa complexa tem tudo isso. Uma classe que não tenha nada disso é a dos excluídos. A classe que só tenha trabalho pode ser chamada de proletária. Uma classe que só tenha terra pode ser chamada de camponesa. A que só tenha serviços pode ser chamada de classe média urbana.

Na sociedade de classes pode-se ascender e descender.

Na sociedade estamental há mobilidade social, mas se limita à mobilidade horizontal, nunca vertical. Mesmo com as elevações de patentes dentre militares: mesmo Marechal, não se deixa de ser militar para ser um grande magnata.

Para concluir esse assunto: os símbolos de hierarquia social em todos os modelos: o dinheiro, poder e prestígio. Quem tem dinheiro não necessariamente tem poder. Quem tem prestigio não necessariamente tem dinheiro.

Há também os fatores reais de poder, aquele conceito de Ferdinand Lassale.¹ Quem tem dinheiro e não conseguiu o poder ainda poderá conseguir este último, pois não se chega ao poder sem dinheiro, segundo o suíço. Essa frase tem corolários contemporâneos, como os dizeres de Warren Buffet: “Não existe almoço grátis”. ²

O que queremos dizer com tudo isso é que, com a sociedade feudal estamental, a justiça era a justiça estamental, e não universal. Não havia uma justiça que se aplicasse a todos os homens, pois seria um princípio democrático numa sociedade aristocrática. Cada hierarquia social tem seu juízo. Um aristocrata não poderia ser julgado por um tribunal de artesãos. Significa que não havia regras gerais, que se aplicassem a todos. É um Direito casuístico e discricionário. É um Direito que, afinal, iria reger os reinos cristãos, na base, aplicando-se o Direito germânico, com cada um em seu feudo, com o estatuto ditado pelo barão da terra. Contendas entre vassalos eram resolvidas pelo senhor. Ele cria regras econômicas, sociais, jurídicas e políticas em seu feudo, segundo o costume germânico. Era um Direito consuetudinário marcado pela oralidade. Era um Direito sem Estado, centrado na família. Dentro da família, transformava-se o pai na grande autoridade, para resolver todas as contendas, e aplicar aqui os ordalhos. Banho de água fervente, caminhada sobre brasas, cortar a língua para ver se saía sangue.

Regra desse mundo germânico era a guerra. Era a regra fundamental do mundo germânico, a guerra para limpar a honra maculada do pai de família. Ninguém deveria macular o nome do pai. Em nome dele fazia-se guerra. Se duas parentelas estavam em conflito, como a parentela A fazer uma desfeita pública ao chefe da parentela B, B buscava lavar com sangue da parentela A a mancha na honra. Em outras ocasiões, depois de desrespeitada, antes de fazer a guerra, a parentela B enviava um embaixador ao território da parentela A, carregando uma bandeira branca, perguntar se esta queria a guerra ou se queriam reparar a desfeita mediante a doação de algumas cabeças de gado. Trocavam-se coisas por honra. Lavava a honra com cabeças de gado. Que sutileza!

Esse era o Direito Germânico que reinava. Nos reinos cristãos, a autoridade local era o rei, mas todos estavam sob a égide do papa. Portanto, quando os reinos cristãos se tornam reinos marcados pela prática mercantil, eles passaram a ter de adotar o Direito Romano também. O que acontecerá nesses reinos é que se estabelecerá um embrião do Direito Moderno. Os mercadores irão querer transacionar segundo as suas próprias regras, de maneira costumeira. Daí começaram a construir o Direito Comercial da modernlidade.


  1. Leia sobre Lassale: http://notasdeaula.org/dir2/direito_const1_13-08-08.html
  2. Warren Buffet é atualmente o número 3 do mundo em fortuna, perdendo somente para Carlos Slim e Bill Gates. Estima-se que ele tenha uma fortuna de US$ 40 bilhões hoje.