Qual são o contexto e as circunstâncias? Recuperando a aula
de ontem, o essencial é a situação de Charles, Barão de Montesquieu, é que ele nasceu
na nobreza feudal, e tem uma consciência razoavelmente liberal. Mas ele tem
reticências: em meio ao radicalismo iluminista, no sentido filosófico, buscando
uma solução desde a razão, buscou um caminho de equilíbrio e moderação que
permita a renovação da tradição feudal sem que venha a ser elidida pela mudança
capitalista. O sonho de Montesquieu é dessa natureza: criar uma equação nova
que permita a sobrevivência do arcaico e o advento do moderno, com o advento da
câmara dos comuns e sobrevivência da câmara dos lordes.
Esse equilíbrio resultante da revolução gloriosa de 1688 é o
sonho que Montesquieu pretende transpor para sua França e, se possível,
universalizar. É por isso então que ele é portador de privilégios feudais, defensor
de privilégios, mas proponente da renovação liberal desde que não tenha as
cores radicais como querem iluministas. Deve vir vestida de equilíbrio e
moderação. É em razão dessa dualidade que ele termina desacreditado pela
nobreza da terra, feudal, e pelos liberais, que o consideravam um aristocrata
repleto de privilégios. O fato é que esse ideal de equilíbrio e moderação vai
fazer a desgraça e a aventura de moderação. Desgraça porque revolução não se
faz com moderação, pois revolução é ruptura, que pressupõe necessariamente o
radicalismo. Revolução, aqui, é a quebra substantiva da ordem posta. ¹
Se a ordem posta tem forma de triângulo, a revolução terá
forma de círculo. Se a ordem posta é o dia, a revolução é a noite. Montesquieu
queria mudança pontual, dentro da ordem estabelecida, preservando, entretanto,
a estrutura geral da sociedade. Ela não deveria mudar de forma ou natureza; ao
contrário, com a revolução, tem-se uma descontinuidade e o estabelecimento de
uma nova realidade formal e conteudisticamente distinta. São mudanças
evolucionárias e não revolucionárias. Mudanças de equilíbrio e não de
estrutura. As mudanças revolucionárias estruturais existem, entretanto. A Revolução
Gloriosa de 1688, a independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa, Revolução
Chinesa de 1949 são as grandes. Temos uma sociedade rural que passa a ser
urbana. O equilíbrio na sociedade muda sem que sua estrutura se altere. Montesquieu
queria uma mudança evolucionária, reformista. Não desejava que a sociedade
feudal mudasse, a rigor e em forma, para se transformar em sociedade
capitalista. Desejava trazer elementos de mudança que a sociedade liberal
capitalista prometia para o antigo regime.
O antigo regime, em si mesmo, foi objeto de grande polêmica,
antes e depois dos iluministas. A realidade da monarquia na França foi a marca
da negatividade. O antigo regime era perverso, de privilégios, moral e
socialmente insensível. Levava as massas na França a um extremo de misérias.
Entretanto, um cidadão chamado Alexis
de Tocqueville (1805 – 1859) escreverá, mais tarde, um clássico chamado
Antigo Regime e Revolução. Inventariou uma série de estatísticas dos séculos
XVI, XVII e XVIII e demonstrou que a monarquia francesa estava no melhor
momento de toda a história. Apogeu social, econômico e político. Virou o jogo e
o fez com dados empíricos. E aí se abriu uma celeuma sobre o que seria a França
no período pré-revolucionário.
Os iluministas em geral, exceção feita a Montesquieu e a
Voltaire, barões, queriam a desagregação feudal, impondo o novo regime,
contraposto ao antigo regime.
Outra exceção a essa regra era a de Jean-Jacques Rousseau,
que vamos estudar, que nada tinha de feudal, privilegiado, de defensor do
antigo regime, proponente de uma revolução na qual se acredita. Ele considera
que a atriz histórica dessa revolução, a burguesia, é totalmente traiçoeira.
Trairá a revolução. Fala, em tese, do que seria se a burguesia fosse sincera.
Nesse sentido histórico, Rousseau estava repleto de razão.
O ideal posto no argumento jurídico feudal é um ideal
personalista, porque se entende que, no mundo feudal afora, há de se
estabelecer um elo identitário entre rei e lei. Como se a lei nada mais fosse
que uma emanação da vontade do rei. É a pessoa do rei que realiza o ditado da
lei, respondendo, portanto, por toda ordem jurídica. É o efeito de uma causa
unipessoal. Isso está concentrado na vontade real. Isso se consagra e se
estabelece, é um consenso na realidade jurídica feudal. Deriva da vontade do
rei.
Montesquieu quebra essa regra. É um nobre que investe contra
o argumento legal da nobreza, na medida em que cria uma teoria da lei que o
leva a ser considerado spinozista com uma explicação material da lei, tirando
da vontade do rei. É como se Montesquieu dissesse que o rei imagina que a lei é
sua vontade, mas está perpassado por vontades materiais que a condicionam. A
lei não pode ser fruto da vontade singular de ninguém. Nisso, Montesquieu tira
uma carta da manga e põe à mesa, e essa carta significa exatamente colidir com
essa visão personalista da lei e a leva a ter raízes complexas. Leis são
relações necessárias que derivam do espírito das coisas, do Direito. E o
fundamental aqui é demarcarmos esses nexos frasais.
Relações necessárias: que relações são essas? Relações
alistadas naquele modelo que vimos ontem, a metodologia pluricausal, com causas
que se equacionam entre si, desde o clima, até o contexto histórico, a
estrutura econômica, o condicionamento político, os elementos psicossociais,
até a tradição, costumes, gramática, tudo que se possa compaginar nessas
rubricas para mostrar que todos os elementos, em sua dinâmica, são
determinantes da ordem jurídica e pactos legais estabelecidos na sociedade.
Tudo é relevante. Não há fator único. “Povo de Mato Grosso, em matéria de
relevância, o principal é tudo!” – disse um sujeito chamado Roberto Campos.
Montesquieu vai aos extremos na medida em que resgata uma
tese do mundo antigo que defende que o clima influi na ordem jurídica. Há uma
relação necessária com o ambiente físico. Considera que todos os megaestados
têm uma natureza, e os microestados têm outra. Uma coisa é o megaestado União
Soviética e exemplo de outro é Cuba. Isso define o sentido das instituições
jurídicas e políticas. Isso é polemico. A paisagem influencia! Montesquieu
resgata, subscreve e dá um sentido novo a essa tese. É fundamental que se
compreenda: ele articula entre si fatores moderados e pesadíssimos. Sentido da
ordem política, elementos psicossociais, elementos que são inexoráveis para a
determinação da ordem jurídica. Mesmo a Geografia tem seu peso moderado, ainda
que talvez não tenha a magnitude imaginada por Montesquieu. É evidente que as
circunstâncias geográficas levam a um posicionamento geopolítico singular do
Estado no mundo. Essas variáveis congeminadas em suas relações fazem com que a
lei delas derive. É o que Montesquieu chama de espírito das coisas. Daí se tem a derivação da lei. Nisso
Montesquieu dirá que descobriu a equação do Espírito das Leis. Por isso há as populares
“leis que pegam” e “leis que não pegam”. Ele descobriu, ou achava ter
descoberto, o motivo para leis serem vigentes e eficazes, ao passo que outras
eram vigentes mas ineficazes, porém criadas pelo mesmo corpo legislativo, na
mesma época, pelos mesmos atores, e às vezes voltadas para os mesmos objetos. Os
valores que a lei eficaz carrega estão mais próximos da sociedade a que se
destina. Outras não se batem com as aspirações sociais. Podem ser postas em
vigência, mas a consciência social não as introjetará e não guiará sua mente. É
a consciência social que irá permitir, afinal, à coletividade introjetar e agir
de maneira diferente aos comandos legais. Eis a explicação do porquê de uma lei
ser vigente e eficaz, e outra vigente e ineficaz, mesmo sendo criada pelo mesmo
corpo legislativo, ao mesmo tempo, sob inclusive os mesmos objetivos; mas uma
se sintoniza e retrata a consciência social e com isso a consciência social;
outra tem uma relação desafinada com a consciência social e dela difrata, e não a retrata.
Aí Montesquieu considera que desconstruiu uma equação em
torno da qual ninguém ainda teria chegado perto. Por isso dirá que o Do
Espírito das Leis é um filho criado sem mãe e sem pai pois não haveria
precedentes.
Montesquieu é etnocêntrico porque faz apologia de sua Europa
para a humanidade. Criou uma teoria falsa de povos do frio e povos do calor.
Calor = Ásia e África, fundamentalmente. O resto do mundo nem conta, muito
embora no Do Espírito das Leis ele se reporte às minas do Brasil, e sua
inserção periférica no comércio mundial. A tese é: todas as civilizações da
história da humanidade aconteceram no clima frio. E a única esperança da
história da humanidade decorre da exportação dos valores dos povos do frio. Os
povos do frio possuem a vocação da liberdade, a destinação, fisiográfica até,
para a liberdade. Ao contrário, todos os povos das zonas tórridas só têm
esperança se submeterem aos valores do frio. Sua esperança de liberdade é a
submissão aos povos do frio.
O projeto de Montesquieu, portanto, era reformar a monarquia
francesa. Isso significa conservá-la e conferir uma dimensão constitucional. A
Constituição passa a ser a prova dos nove da realidade política e jurídica. Vejam
que no art. XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão temos o que Montesquieu
carrega consigo: “Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está
em segurança, nem a separação dos poderes, não tem Constituição.”
Toda a expectativa jurídico-política dos iluministas reside
nisso. O mundo era um mundo mais de poder do que de norma. A lei era a vontade
do rei. A norma não é nada, pois a vontade do rei é a expressão de uma
realidade maior, chamada poder. Por isso o poder era um poder absoluto.
O que se espera dos iluministas é que se crie um mundo em
que a norma tenha tamanha significação, de tal modo que a norma valha mais que
o poder, poder esse que deveria deixar de ser absoluto e para ser
constitucional, ordenado pela lei e de acordo com a lei. Por isso a autoridade
da Revolução Francesa será politicamente responsável pelo seus atos. Até então,
a autoridade é inalcançável pela lei. A ideia seria diferenciar-se do
funcionamento dos tempos de Roma de Ulpiano, em que o rei estabelecia a lei, e
a lei só pode dirigir o povo. A lei não pode dirigir, controlar ou limitar o
rei. O propósito maior da Revolução Francesa é normatizar o poder,
constitucionalizá-lo, criando um poder segundo a norma, segundo a lei. Por isso
o Estado Constitucional Moderno é advindo da Revolução de 1789.
O que Montesquieu quer? Que essa ordem constitucional
alcance a monarquia, para que o rei não seja absoluto, e exerça o poder nos
limites e segundo as diretrizes do pacto constitucional. Essa é a grande
reforma da Constituição na perspectiva da monarquia em França segundo a perspectiva
de Montesquieu. Para isso ele escreve seu grande livro. Para que o rei se
submeta a essas relações necessárias que derivam do espírito das coisas.
Na França vigorava havia séculos uma regra chamada Convocação
dos Estados Gerais. O rei poderia convocar eleições. Elegiam representantes,
passavam um mês em Paris, discutiam os problemas da França, passavam ao rei, mas
não tinham nenhuma força cogente. A realeza não convocava os Estados Gerais havia
160 anos na França. A Convocação era um fator legitimador! O rei reinava
absolutamente, sem receber sequer sugestões.
O livro: Montesquieu, que, fazendo as contas de sua vida, se
autodefiniu como um homem essencialmente feliz, foi também alcançado pela
desdita na vida. Ficou cego. Terminou ditando o livro, e sua obra era
desequilibrada estilisticamente. Ditando, ele perdeu o controle formal do livro,
daí o motivo de haver capítulos tão menores uns que os outros. Mas terminou o
livro porque foi a obra de sua vida. Peguem a tradução de Fernando Henrique
Cardoso, a melhor tradução brasileira!
Montesquieu termina ditando o livro, e nele há uma atitude
marota: diz-se totalmente enamorado pelo iluminismo e pela liberdade. Liberdade
e igualdade antigas! Significa que
impugna a liberdade e igualdade do presente. Mundo sem servidão. Igualdade é
uma maior similitude econômica e social entre os homens. Isso na modernidade.
As antigas eram liberdade e igualdade para os aristocratas, para aqueles “do
clube”. Montesquieu compreende que está preso em seu mundo. Pensa a partir de
seu lugar social. É um advogado da nobreza e da aristocracia. Camufla como um
pano de toureiro, mas tem um fundo eminentemente conservador.
Influência intelectual maior de Montesquieu é de Isaac
Newton, o grande físico inglês. Não é incomum dizer isso por causa do espírito
científico da modernidade. Montesquieu se sentia geólogo e cientista natural,
assim como foi sentia Hobbes. Preparou-se, inclusive, para escrever uma
história da Terra. O modelo de simetria é Isaac Newton. É o ideal que quer: um
mundo geométrico, arquitetado, equilibrado.
Outro iluminista, o Barão de Voltaire, escreveu um livro
inteiro sobre Isaac Newton e a revolução que ele significa no paradigma
científico. Era gênio mesmo sendo aluno medíocre enquanto na escola. Vejam como
é a escola formal! Muitos dos grandes gênios aprenderam por conta própria ou
com mestres dedicados, e não em sala de aula.
Finalizando: Montesquieu, mesmo viajando muito, foi obrigado
a circular nos ambientes salonares da nobreza. Teve tempo para ampliar sua
fortuna. Teve sucesso como latifundiário também. Ampliou a base material de sua
vida, ainda mais depois do casamento. Como esse aristocrata e nobre termina por
se relacionar com o povo, que faria a Revolução Francesa? Montesquieu tece
palavras finais ao final de sua vida: “o povo é excelente. Excelente para
escolher quem vai ser o seu senhor. O povo é imprestável para governar.”
Mas Voltaire é muito mais desabrido em sua linguagem e, na
esteira do que disse Montesquieu, Voltaire, em ironia ácida, dirá uma coisa um
pouco mais rasgada sobre o povo: “o povo não deveria se meter a governar.” Era
exatamente o que Montesquieu estava dizendo, exceto que com elegância.
Religião: questão de alta sensibilidade em qualquer tempo, em
especial naquele, porque o tribunal do Santo Ofício estava funcionando, e teve
a sagacidade para julgar e não executar ninguém, mas entregava para o braço
civil do Estado. Montesquieu teve altos e baixos com os jesuítas. Sentiram o
cheiro do demônio n’O Espírito das Leis. Sabiam, entretanto, que uma coisa é a
fé profunda, e outra é a Igreja. Todas as instituições temporais têm seus
vícios e suas misérias. Montesquieu, ao final da vida, divide as águas e morre
cristão. Morre na fé, morre com Deus, e pede, no leito de morte, para ser
confessado e comungar. Faz uma distinção que a princípio os iluministas não
sabiam fazer: eles combatiam a fé e Deus, Deus e a fé. Voltaire até chegou a
dizer: se Deus não existisse, ele precisaria ser inventado. Não tributa a Deus
os defeitos da Igreja.
Montesquieu não serve para fazer a revolução. A agitação que
se faz é a partir das sociedades secretas, dos círculos revolucionários que vão
levando esse espírito de mudança à frente, adiante. Essas sociedades secretas,
esses clubes jacobinos jamais se alimentaram de Montesquieu, porque era
moderado. Precisavam apagar o fogo com gasolina. A inspiração deles é um
cidadão genebrino chamado Jean-Jacques Rousseau.