Filosofia do Direito

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Montesquieu – continuação



Qual são o contexto e as circunstâncias? Recuperando a aula de ontem, o essencial é a situação de Charles, Barão de Montesquieu, é que ele nasceu na nobreza feudal, e tem uma consciência razoavelmente liberal. Mas ele tem reticências: em meio ao radicalismo iluminista, no sentido filosófico, buscando uma solução desde a razão, buscou um caminho de equilíbrio e moderação que permita a renovação da tradição feudal sem que venha a ser elidida pela mudança capitalista. O sonho de Montesquieu é dessa natureza: criar uma equação nova que permita a sobrevivência do arcaico e o advento do moderno, com o advento da câmara dos comuns e sobrevivência da câmara dos lordes.

Esse equilíbrio resultante da revolução gloriosa de 1688 é o sonho que Montesquieu pretende transpor para sua França e, se possível, universalizar. É por isso então que ele é portador de privilégios feudais, defensor de privilégios, mas proponente da renovação liberal desde que não tenha as cores radicais como querem iluministas. Deve vir vestida de equilíbrio e moderação. É em razão dessa dualidade que ele termina desacreditado pela nobreza da terra, feudal, e pelos liberais, que o consideravam um aristocrata repleto de privilégios. O fato é que esse ideal de equilíbrio e moderação vai fazer a desgraça e a aventura de moderação. Desgraça porque revolução não se faz com moderação, pois revolução é ruptura, que pressupõe necessariamente o radicalismo. Revolução, aqui, é a quebra substantiva da ordem posta. ¹

Se a ordem posta tem forma de triângulo, a revolução terá forma de círculo. Se a ordem posta é o dia, a revolução é a noite. Montesquieu queria mudança pontual, dentro da ordem estabelecida, preservando, entretanto, a estrutura geral da sociedade. Ela não deveria mudar de forma ou natureza; ao contrário, com a revolução, tem-se uma descontinuidade e o estabelecimento de uma nova realidade formal e conteudisticamente distinta. São mudanças evolucionárias e não revolucionárias. Mudanças de equilíbrio e não de estrutura. As mudanças revolucionárias estruturais existem, entretanto. A Revolução Gloriosa de 1688, a independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa, Revolução Chinesa de 1949 são as grandes. Temos uma sociedade rural que passa a ser urbana. O equilíbrio na sociedade muda sem que sua estrutura se altere. Montesquieu queria uma mudança evolucionária, reformista. Não desejava que a sociedade feudal mudasse, a rigor e em forma, para se transformar em sociedade capitalista. Desejava trazer elementos de mudança que a sociedade liberal capitalista prometia para o antigo regime.

O antigo regime, em si mesmo, foi objeto de grande polêmica, antes e depois dos iluministas. A realidade da monarquia na França foi a marca da negatividade. O antigo regime era perverso, de privilégios, moral e socialmente insensível. Levava as massas na França a um extremo de misérias.

Entretanto, um cidadão chamado Alexis de Tocqueville (1805 – 1859) escreverá, mais tarde, um clássico chamado Antigo Regime e Revolução. Inventariou uma série de estatísticas dos séculos XVI, XVII e XVIII e demonstrou que a monarquia francesa estava no melhor momento de toda a história. Apogeu social, econômico e político. Virou o jogo e o fez com dados empíricos. E aí se abriu uma celeuma sobre o que seria a França no período pré-revolucionário.

Os iluministas em geral, exceção feita a Montesquieu e a Voltaire, barões, queriam a desagregação feudal, impondo o novo regime, contraposto ao antigo regime.

Outra exceção a essa regra era a de Jean-Jacques Rousseau, que vamos estudar, que nada tinha de feudal, privilegiado, de defensor do antigo regime, proponente de uma revolução na qual se acredita. Ele considera que a atriz histórica dessa revolução, a burguesia, é totalmente traiçoeira. Trairá a revolução. Fala, em tese, do que seria se a burguesia fosse sincera. Nesse sentido histórico, Rousseau estava repleto de razão.

O ideal posto no argumento jurídico feudal é um ideal personalista, porque se entende que, no mundo feudal afora, há de se estabelecer um elo identitário entre rei e lei. Como se a lei nada mais fosse que uma emanação da vontade do rei. É a pessoa do rei que realiza o ditado da lei, respondendo, portanto, por toda ordem jurídica. É o efeito de uma causa unipessoal. Isso está concentrado na vontade real. Isso se consagra e se estabelece, é um consenso na realidade jurídica feudal. Deriva da vontade do rei.

Montesquieu quebra essa regra. É um nobre que investe contra o argumento legal da nobreza, na medida em que cria uma teoria da lei que o leva a ser considerado spinozista com uma explicação material da lei, tirando da vontade do rei. É como se Montesquieu dissesse que o rei imagina que a lei é sua vontade, mas está perpassado por vontades materiais que a condicionam. A lei não pode ser fruto da vontade singular de ninguém. Nisso, Montesquieu tira uma carta da manga e põe à mesa, e essa carta significa exatamente colidir com essa visão personalista da lei e a leva a ter raízes complexas. Leis são relações necessárias que derivam do espírito das coisas, do Direito. E o fundamental aqui é demarcarmos esses nexos frasais.

Relações necessárias: que relações são essas? Relações alistadas naquele modelo que vimos ontem, a metodologia pluricausal, com causas que se equacionam entre si, desde o clima, até o contexto histórico, a estrutura econômica, o condicionamento político, os elementos psicossociais, até a tradição, costumes, gramática, tudo que se possa compaginar nessas rubricas para mostrar que todos os elementos, em sua dinâmica, são determinantes da ordem jurídica e pactos legais estabelecidos na sociedade. Tudo é relevante. Não há fator único. “Povo de Mato Grosso, em matéria de relevância, o principal é tudo!” – disse um sujeito chamado Roberto Campos.

Montesquieu vai aos extremos na medida em que resgata uma tese do mundo antigo que defende que o clima influi na ordem jurídica. Há uma relação necessária com o ambiente físico. Considera que todos os megaestados têm uma natureza, e os microestados têm outra. Uma coisa é o megaestado União Soviética e exemplo de outro é Cuba. Isso define o sentido das instituições jurídicas e políticas. Isso é polemico. A paisagem influencia! Montesquieu resgata, subscreve e dá um sentido novo a essa tese. É fundamental que se compreenda: ele articula entre si fatores moderados e pesadíssimos. Sentido da ordem política, elementos psicossociais, elementos que são inexoráveis para a determinação da ordem jurídica. Mesmo a Geografia tem seu peso moderado, ainda que talvez não tenha a magnitude imaginada por Montesquieu. É evidente que as circunstâncias geográficas levam a um posicionamento geopolítico singular do Estado no mundo. Essas variáveis congeminadas em suas relações fazem com que a lei delas derive. É o que Montesquieu chama de espírito das coisas. Daí se tem a derivação da lei. Nisso Montesquieu dirá que descobriu a equação do Espírito das Leis. Por isso há as populares “leis que pegam” e “leis que não pegam”. Ele descobriu, ou achava ter descoberto, o motivo para leis serem vigentes e eficazes, ao passo que outras eram vigentes mas ineficazes, porém criadas pelo mesmo corpo legislativo, na mesma época, pelos mesmos atores, e às vezes voltadas para os mesmos objetos. Os valores que a lei eficaz carrega estão mais próximos da sociedade a que se destina. Outras não se batem com as aspirações sociais. Podem ser postas em vigência, mas a consciência social não as introjetará e não guiará sua mente. É a consciência social que irá permitir, afinal, à coletividade introjetar e agir de maneira diferente aos comandos legais. Eis a explicação do porquê de uma lei ser vigente e eficaz, e outra vigente e ineficaz, mesmo sendo criada pelo mesmo corpo legislativo, ao mesmo tempo, sob inclusive os mesmos objetivos; mas uma se sintoniza e retrata a consciência social e com isso a consciência social; outra tem uma relação desafinada com a consciência social e dela difrata, e não a retrata.

Aí Montesquieu considera que desconstruiu uma equação em torno da qual ninguém ainda teria chegado perto. Por isso dirá que o Do Espírito das Leis é um filho criado sem mãe e sem pai pois não haveria precedentes.

Montesquieu é etnocêntrico porque faz apologia de sua Europa para a humanidade. Criou uma teoria falsa de povos do frio e povos do calor. Calor = Ásia e África, fundamentalmente. O resto do mundo nem conta, muito embora no Do Espírito das Leis ele se reporte às minas do Brasil, e sua inserção periférica no comércio mundial. A tese é: todas as civilizações da história da humanidade aconteceram no clima frio. E a única esperança da história da humanidade decorre da exportação dos valores dos povos do frio. Os povos do frio possuem a vocação da liberdade, a destinação, fisiográfica até, para a liberdade. Ao contrário, todos os povos das zonas tórridas só têm esperança se submeterem aos valores do frio. Sua esperança de liberdade é a submissão aos povos do frio.

O projeto de Montesquieu, portanto, era reformar a monarquia francesa. Isso significa conservá-la e conferir uma dimensão constitucional. A Constituição passa a ser a prova dos nove da realidade política e jurídica. Vejam que no art. XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão temos o que Montesquieu carrega consigo: “Qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes, não tem Constituição.”

Toda a expectativa jurídico-política dos iluministas reside nisso. O mundo era um mundo mais de poder do que de norma. A lei era a vontade do rei. A norma não é nada, pois a vontade do rei é a expressão de uma realidade maior, chamada poder. Por isso o poder era um poder absoluto.

O que se espera dos iluministas é que se crie um mundo em que a norma tenha tamanha significação, de tal modo que a norma valha mais que o poder, poder esse que deveria deixar de ser absoluto e para ser constitucional, ordenado pela lei e de acordo com a lei. Por isso a autoridade da Revolução Francesa será politicamente responsável pelo seus atos. Até então, a autoridade é inalcançável pela lei. A ideia seria diferenciar-se do funcionamento dos tempos de Roma de Ulpiano, em que o rei estabelecia a lei, e a lei só pode dirigir o povo. A lei não pode dirigir, controlar ou limitar o rei. O propósito maior da Revolução Francesa é normatizar o poder, constitucionalizá-lo, criando um poder segundo a norma, segundo a lei. Por isso o Estado Constitucional Moderno é advindo da Revolução de 1789.

O que Montesquieu quer? Que essa ordem constitucional alcance a monarquia, para que o rei não seja absoluto, e exerça o poder nos limites e segundo as diretrizes do pacto constitucional. Essa é a grande reforma da Constituição na perspectiva da monarquia em França segundo a perspectiva de Montesquieu. Para isso ele escreve seu grande livro. Para que o rei se submeta a essas relações necessárias que derivam do espírito das coisas.

Na França vigorava havia séculos uma regra chamada Convocação dos Estados Gerais. O rei poderia convocar eleições. Elegiam representantes, passavam um mês em Paris, discutiam os problemas da França, passavam ao rei, mas não tinham nenhuma força cogente. A realeza não convocava os Estados Gerais havia 160 anos na França. A Convocação era um fator legitimador! O rei reinava absolutamente, sem receber sequer sugestões.

O livro: Montesquieu, que, fazendo as contas de sua vida, se autodefiniu como um homem essencialmente feliz, foi também alcançado pela desdita na vida. Ficou cego. Terminou ditando o livro, e sua obra era desequilibrada estilisticamente. Ditando, ele perdeu o controle formal do livro, daí o motivo de haver capítulos tão menores uns que os outros. Mas terminou o livro porque foi a obra de sua vida. Peguem a tradução de Fernando Henrique Cardoso, a melhor tradução brasileira!

Montesquieu termina ditando o livro, e nele há uma atitude marota: diz-se totalmente enamorado pelo iluminismo e pela liberdade. Liberdade e igualdade antigas! Significa que impugna a liberdade e igualdade do presente. Mundo sem servidão. Igualdade é uma maior similitude econômica e social entre os homens. Isso na modernidade. As antigas eram liberdade e igualdade para os aristocratas, para aqueles “do clube”. Montesquieu compreende que está preso em seu mundo. Pensa a partir de seu lugar social. É um advogado da nobreza e da aristocracia. Camufla como um pano de toureiro, mas tem um fundo eminentemente conservador.

Influência intelectual maior de Montesquieu é de Isaac Newton, o grande físico inglês. Não é incomum dizer isso por causa do espírito científico da modernidade. Montesquieu se sentia geólogo e cientista natural, assim como foi sentia Hobbes. Preparou-se, inclusive, para escrever uma história da Terra. O modelo de simetria é Isaac Newton. É o ideal que quer: um mundo geométrico, arquitetado, equilibrado.

Outro iluminista, o Barão de Voltaire, escreveu um livro inteiro sobre Isaac Newton e a revolução que ele significa no paradigma científico. Era gênio mesmo sendo aluno medíocre enquanto na escola. Vejam como é a escola formal! Muitos dos grandes gênios aprenderam por conta própria ou com mestres dedicados, e não em sala de aula.

Finalizando: Montesquieu, mesmo viajando muito, foi obrigado a circular nos ambientes salonares da nobreza. Teve tempo para ampliar sua fortuna. Teve sucesso como latifundiário também. Ampliou a base material de sua vida, ainda mais depois do casamento. Como esse aristocrata e nobre termina por se relacionar com o povo, que faria a Revolução Francesa? Montesquieu tece palavras finais ao final de sua vida: “o povo é excelente. Excelente para escolher quem vai ser o seu senhor. O povo é imprestável para governar.”

Mas Voltaire é muito mais desabrido em sua linguagem e, na esteira do que disse Montesquieu, Voltaire, em ironia ácida, dirá uma coisa um pouco mais rasgada sobre o povo: “o povo não deveria se meter a governar.” Era exatamente o que Montesquieu estava dizendo, exceto que com elegância.

Religião: questão de alta sensibilidade em qualquer tempo, em especial naquele, porque o tribunal do Santo Ofício estava funcionando, e teve a sagacidade para julgar e não executar ninguém, mas entregava para o braço civil do Estado. Montesquieu teve altos e baixos com os jesuítas. Sentiram o cheiro do demônio n’O Espírito das Leis. Sabiam, entretanto, que uma coisa é a fé profunda, e outra é a Igreja. Todas as instituições temporais têm seus vícios e suas misérias. Montesquieu, ao final da vida, divide as águas e morre cristão. Morre na fé, morre com Deus, e pede, no leito de morte, para ser confessado e comungar. Faz uma distinção que a princípio os iluministas não sabiam fazer: eles combatiam a fé e Deus, Deus e a fé. Voltaire até chegou a dizer: se Deus não existisse, ele precisaria ser inventado. Não tributa a Deus os defeitos da Igreja.

Montesquieu não serve para fazer a revolução. A agitação que se faz é a partir das sociedades secretas, dos círculos revolucionários que vão levando esse espírito de mudança à frente, adiante. Essas sociedades secretas, esses clubes jacobinos jamais se alimentaram de Montesquieu, porque era moderado. Precisavam apagar o fogo com gasolina. A inspiração deles é um cidadão genebrino chamado Jean-Jacques Rousseau.


  1. Vou transcrever aqui algo que pus nas notas de rodapé da aula de Filosofia, no terceiro semestre, no dia 18/03/09: A melhor definição de revolução strictu sensu é de Olavo de Carvalho, adaptadamente: “a promoção de um evento futuro e grandioso, visando a mudança completa do status quo, levada a cabo por um indivíduo ou um pequeno grupo, mediante a concentração ilimitada de poder nas mãos desse(s) sujeito(s) que prometem realizar a subversão. Essa concentração de poder se dá com a entrega de confiança, meios de realização, direitos subjetivos e dinheiro dos indivíduos para o revolucionário.”